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tropicalismo: movimento, mito, escola ou cafajestada sob encomenda?

tropicalismo: movimento, mito, escola ou cafajestada sob encomenda?

Historic Press

Tropicalismo: movimento, mito, escola ou cafajestada sob encomenda?
Arlette Neves
O Cruzeiro – 20 de abril de 1968

De repente todo mundo começou a falar em Tropicalismo. Gente de gabarito, escritores, compositores, jornalistas, artistas plásticos, músicos e dramaturgos passaram a orientar sua produção em função do movimento. Como sempre acontece figurinhas ávidas por novidades entraram em cena dando palpite sobre alguma coisa que não sabem bem o que é. E tudo ficou muito confuso. Mas a verdade é uma só: algo de importante está acontecendo. Porque no instante em que nomes como Hélio Oiticica, Vergara, Gilberto Gil, Carlinhos Oliveira, Caetano Veloso, José Celso Martinez aderem integralmente a alguma coisa é porque nela deve haver um conteúdo que talvez fuja à compreensão imediata. E até choque muita gente boa. A verdade, porém, é que o Tropicalismo está acontecendo. Já criou um ídolo popular e promete criar outros, origina discussões em programas de televisão e ocupa espaço nos jornais e revistas. O que estará por trás disso tudo?

Irresponsável?
O ídolo popular do Tropicalismo veste-se dentro da maior extravagância. Cabelos longos e encaracolados, ri de tudo e por tudo. Mas no momento em que começa a cantar as coisas mudam de figura. Seus fãs (e atualmente eles se encontram em todas as faixas etárias e sociais) vão ao paroxismo do entusiasmo, principalmente quando Caetano Veloso (claro que falamos dele) canta “Soy Loco Por Ti América” ou “Tropicália”, o hino do movimento.
Caetano, que chegou ao Rio apenas como um irmão de Maria Bethânia, apesar do talento que estava bem claro em músicas como “É de Manhã”, não encontrou facilidades para se firmar. Teve suas músicas gravadas, classificou-se em festivais, mas só foi descoberto pelo público num programa de televisão de São Paulo, “Essa Noite Se Improvisa”. Então descobriu-se que Caetano cantava e cantava bonito. Com sotaque e divisão deliciosamente baianos. Cantando quase sempre músicas alheias foi que Caetano revelou-se. Mas a partir daí o sucesso foi irreversível. E tudo culminou quando classificou “Alegria, Alegria” no último Festival de Música Popular Brasileira.

MPB ou iê-iê-iê?
Quando ouviram a música de Caetano os tradicionalistas da música popular ficaram irritadíssimos. O fato de Caetano havê-la apresentado com acompanhamento de instrumentos eletrônicos foi considerado até uma violação na integridade da música do Brasil. E quando surgiu a gravação de “Soy Loco Por Ti América”, a guerra foi declarada. Até a poesia belíssima de José Carlos Capinam foi chamada de “comunista”. Mas João Gilberto, lá de Nova Iorque, mandou dizer que “gostava da música, sim”. E em meio a todas as discussões Caetano só sorrindo. Vindo semanalmente de São Paulo só para fazer o do Chacrinha, considerado o protótipo do mau gosto pela intelectualidade musical do Brasil.

A essas alturas o Tropicalismo começava a ser discutido. E o público, que já estava considerando Caetano um hippie, identificou-o imediatamente com a novidade. Por sua vez o cantor, após assistir ao belíssimo trabalho de direção de José Celso Martinez Correia, em “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, que inaugurou o Tropicalismo em nosso teatro, aderiu também à novidade. Que ele garante já existia latente em si mesmo, como explicou na contracapa do disco que gravou com Gal Costa: “Cantava aquelas músicas porque quase nada mais eu tinha a ver com elas. Minha inspiração tomava novos rumos, embora eu, então, não soubesse quais seriam”.

O que é exatamente
Segundo o jornalista Nelson Motta, o chamado “teórico do movimento”, Tropicalismo é, “por enquanto, apenas uma série de idéias esparsas que anota certas tendências e determinada visão da realidade brasileira”.
Parece que o primeiro a usar a expressão foi Hélio Oiticica, arquiteto que, em fins de 66, denominava de “Tropicália” um projeto ambiental exposto no Museu de Arte Moderna. Seus “parangolés” (capas executadas em tecido e materiais diversos, repletos de cores) seriam uma experiência no sentido uma experiência no sentido de alcançar a participação direta do espectador. Que, ao usar a capa, conseguiria, através do material empregado ou das cores, alcançar a estrutura da constituição do objeto, a sua própria gênese.

“O Tropicalismo, ainda segundo Nelson, não tem exatamente uma ideologia ou uma estética. Sua preposição seria encontrar uma forma de expressão coerente com a realidade brasileira, mostrar as coisas como elas são realmente, sem manter a mistificação contínua”. Mas o professor Maurício Vinhas de Queirós, sociólogo pesquisador do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, prefere considerá-lo um “nacionalismo de epiderme consentido, um tanto para inglês ver. Uma espécie de saudosismo disfarçado dos tempos da senzala. (Ao lado do Chacrinha, o Sr. Gilberto Freyre não será também um tropicalista?)” É propor que nos comportemos como os ianques mais preconceituosos julgam que no fundo somos: “Yes, nós temos banana”.

Toda via, o sociólogo concorda que o Tropicalismo bem merecia uma pesquisa, senão houvesse antes outros assuntos mais significativos a investigar e compreender na realidade social brasileira. E como hipótese, acha que é “uma espécie de moda, craniada por um grupo de baianos originalmente radicados no privilegiado bairro de Ipanema e lançada (por que motivos?) por alguns poderosos canais de “mass media”, sobretudo em São Paulo”.

E a cafonice?
Por sua vez Nelsinho Motta afirma que no Tropicalismo nada há de nacionalismo exacerbado, mais sim uma tentativa de dar uma visão crítica de uma realidade brasileira: “Não da realidade que alguns fingem que existe, mas de alguma coisa que, se é cafona, de mau gosto, cafajeste ou grossa deve ser assumida e criticada dessa maneira e através desse caminho”. Vergara, porém, outro líder do Tropicalismo, em declarações à imprensa, contestou a validade da cafonice, achando que o movimento deveria ser aproveitado no sentido da busca do que é bonito e ao mesmo tempo popular. Mas com o que nenhum dos envolvidos no assunto concorda é com a “badalação” que alguns estão fazendo em torno do assunto. Sobre isso Nelson Motta acha que Tropicalismo corre o risco de ser transformado em artigo de consumo, perdendo o seu sentido antes mesmo de dar quaisquer resultados em termos estéticos ou ideológicos. Rui Castro diz que, em breve, “ele estará sendo vendido em butiques grã-finóides”. E o nosso sociólogo Maurício Vinhas volta a afirmar que “pode ser uma boa mercadoria que já está alcançando altos preços nos mais vulgares veículos de comunicação de massas e talvez – como querem alguns de seus profetas – algo que chegue até a produzir divisas, como parece que Carmen Miranda (aí também uma precursora do Tropicalismo?) produziu a seu tempo. Mas nada disso, nada desses cacoetes alambicados e gongóricos, tem a ver com o verdadeiro Brasil, o Brasil jovem e trabalhador, o Brasil de amanhã”.

As frases famosas
Uma série de frases populares foram propostas como uma verdadeira filosofia do Tropicalismo. São todas comuns entre determinado grupo de brasileiros. Eis algumas delas: “Dize-me com quem andas e eu te direi quem és. Eu sou um homem que trabalha há dez anos e nunca tirou férias. Desquitada e vagabunda pra mim é a mesma coisa. No meu tempo não havia disto. O petróleo é nosso. As Forças Armadas estão coesas e reina perfeita calma em todo o país”. Com isso Nelson Motta concorda. Considera-as reflexo de uma filosofia caipira da vida brasileira. E vai além: “Denunciar tal atitude, criticá-la e partir para uma desmistificação desses valores mesquinhos e falsos que prejudicam a visão mais ampla do País, é o objetivo principal do Tropicalismo. É preciso gritar bem alto: “olha, nós somos assim”. E em seguida partir para, através do ridículo, construir algo de novo”.

– Trata-se de um irracionalismo levando ao pessimismo temperado pelo espírito da avacalhação, o qual não passa muitas vezes de uma forma de autoflagelamento, coisa diversa de autocrítica – é o que garante o professor Maurício Vinhas, acrescentando ainda que tudo isso “traduz-se na desesperança de encontrarmos um modo de sair da estagnação industrial e retomar o desenvolvimento autônomo e auto-sustentado. É como se fôssemos visceralmente condenados a um falso paraíso de palmeiras, tinhorões e araras, que de fato é um inferno de misérias, doenças e analfabetismo”.

De bananas e palmeiras
Um dos manifestos Tropicalistas já divulgados prega a exaltação dessa mesma banana e de tudo o mais que é nitidamente tropical, tentando uma derrubada da cultura brasileira calcada na européia e norte-americana. O mesmo que, em 22, Oswald de Andrade concluía no seu “Manifesto Antropofágico”, quando preconizava a necessidade de reduzir todas as nossas influências culturais externas a modelos nacionais, numa defesa do colonialismo cultural. Hélio Oiticica está inteiramente de acordo com o autor. Ele também prega que só o índio e o negro brasileiro não se submeteram a influências estrangeiras e que são eles que, antropofagicamente terão que absorver tais influências, sem o que a arte brasileira será híbrida, intelectualizada ao extremo e vazia de significado. E vai mais longe: lembra que o “mito da tropicalidade é muito mais que araras e bananeiras: é a consciência de um não condicionamento às estruturas estabelecidas, portanto altamente revolucionária na sua totalidade”.

Mas outra vez o sociólogo Maurício Vinhas vem contra: — Em princípio concordo com alguém que observou ser o Tropicalismo – essa cafajestada sob encomenda – uma coincidência com os dias do governo Costa e Silva, assim como a bossa-nova correspondia ao desenvolvimentismo juscelinista, a CPB, pretensa “Cultura Popular Brasileira”, ao período Jango e o confronto de Roberto Carlos com a música de protesto aos tempos de Castelo Branco.

Deboche ou mensagem?
Certa vez, durante um dos programas da série “Um Instante Maestro”, discutiram a música “Soy Loco Por Ti América” e, no auge da polêmica, alguém a considerou uma mensagem a Guevara, enquanto que Nelson Motta retrucou defendendo-a que “é mensagem de esperança de um povo que sofre e luta”. Seria a música uma crítica, um protesto ao estado atual de toda a América Latina?

Maurício Vinhas declara que não
– É o deboche em lugar da crítica. É o anúncio escatológico de uma “definitiva noche” que estaria para baixar sobre a América Latina, ao invés de uma declarada esperança no futuro de nossos povos.

Toda via, ao lado do deboche, afirmam alguns dos líderes do movimento que existe a proposição de “assumir completamente a vida dos trópicos, contudo que ela pode nos dar, sem preconceitos estéticos, vivendo apenas a tropicalidade e o novo universo que ela encera, ainda desconhecido”, ou como quer Nelson Motta “uma possibilidade de se fazer uma série de especulações estéticas que podem resultar em coisas úteis e muito válidas em termos de arte brasileira hoje em dia”. Essa especulação poderia ser feita a partir das idéias expressas nas músicas de Veloso e Gilberto Gil, na poesia de Capinam, no filme de Glauber Rocha, “Terra em Transe”, ou na concepção de teatro de José Celso Martinez Correia.

A festa brava
Na tentativa de identificar certas vivências brasileiras, Luís Carlos Barreto imaginou fazer uma festa no Copacabana Palace. A decoração seria à base de palmeiras e vitórias-régias, abacaxis e côcos. O menu, sanduíches de mortadela e queijo de Minas. Vatapá, o prato principal e, ao final, em vez de licor, Xarope Bromil servido em pequenos copos. O que motiva o protesto de Maurício Vinhas:

– Abaixo o Bromil! Viva a boa cachaça tecnologicamente livre do metanol e do azinhavre. Tropicalismo não é uma escola, é um sintoma. Representa apenas, como tantos outros, o sinal da decadência de uma época. Não existe razão para sentirmos ufania do nosso subdesenvolvimento material e mental. Não há por que carregarmos às costas o lixo da História.

E assim vai o Tropicalismo suscitando discussões, controvérsias e polêmicas. Não nos cabe afirmar sua validade. Queremos apenas documentá-lo dentro de tantas outras coisas que se escreveu a propósito. Garante Carlinhos Oliveira, numa crônica tropicalíssima, que ele é um sintoma da maturidade psicológica a que chegamos. Que é o próprio brazilian way of life e que estamos reencontrando a nossa originalidade:

– Se a uma ordem internacional nos tornamos “hippies” ou psicodélicos, também podemos inventar a nossa própria ordem, o nosso estilo.

Se essa nova ordem chegou para ficar, impossível garantir. Mas muitas garotas de Ipanema inscreveram-se para disputar o título de “Miss Banana Real” e no próximo mês de maio o bairro vai viver 10 dias de Tropicália, numa promoção de Roberto Braga. A Praça General Osório será enfeitada com bandeiras e quadros tropicalistas e os homens estarão de terno branco de tropical, lapelas largas e chapéu de palhinha. Gravata berrante, lenço com três pontas e sapato de duas cores, além de calça vincada. As mulheres com trajes laranja, turquesa e maravilha. Vestidos rodados e cabelos cheios de laquê. E anáguas imensas e coloridas. A música famosa de Gil, Capinam e Veloso está sendo cantada em toda a América do Sul, no que parece uma excelente oportunidade de diálogo musical com nossos vizinhos. Surge o mito do tropicalismo, no qual o conformismo é alguma coisa inteiramente por fora dos seus objetivos.

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