Eubioticamente atraídos

concretos no trópico

concretos no trópico

Foreign views

Concretos no Trópico
Gonzalo Aguilar
Extraído de Poesia Concreta Brasileira, Edusp, 2005

O termo “década de 1960” costuma ser utilizado para referir-se a um período de grandes agitações sociais que inclui o predomínio das idéias de esquerda e o crescimento do Terceiro Mundo, a luta pelos direitos civis e o acesso de movimentos progressistas – por meios violentos ou eleitorais – ao poder. Na América Latina, o rótulo abrange da revolução cubana de 1959 à instalação pro gressiva de ditaduras militares, cujos casos mais dramáticos foram os golpes mi litares do Chile, em 1973, e da Argentina, em 1976. Porém, ao observar as coisas mais cuidadosamente, detecta-se – em torno de 1966, aproximadamente – uma mudança bastante abrupta que exige, pelo menos, uma denominação diferente daquela do período 1959-1966. A radicalização das opções políticas se delineia, no final da década, em um clima de enfrentamento que leva numerosos grupos a optarem pela luta armada. Nos casos do Brasil e da Argentina, por exemplo, os golpes militares de 1964 e 1966, respectivamente, haviam sido interpretados como o fracasso de uma saída democrática tradicional ou, como se diz em um filme da época, das “saídas democrático-burguesas”1. Mas essa leitura não se dava a partir da consternação, e sim da euforia: o capitalismo retrocedia, os mo­vimentos revolucionários avançavam e os golpes militares eram o último suspiro do imperialismo. Existe, além disso, outro fato que diferencia esse período do anterior: o crescimento sustentado dos meios de comunicação de massa, so bretudo da televisão, transforma definitivamente as grandes cidades latino-ame­ricanas. Maiores investimentos econômicos e um crescimento do consumo fa zem com que os discursos domass media incidam de uma maneira inovadora na vida cotidiana2. Hal Foster denomina essa mudança “a época da revolução cibernética” e Fredric Jameson se refere a ela como “a terceira revolução tecno lógica no ocidente (eletrônica, nuclear)” e ambos a situam em torno de 19673.

Estes dois fatos (convulsão política e crescimento dos meios de comunicação) não estão necessariamente vinculados um ao outro, ainda que culturalmente se combinem ou se sobreponham com freqüência. Para os grupos radicais de es querda, os meios de comunicação de massa constituíam uma acentuação das assimetrias da cena pública, e um dos instrumentos mais poderosos para alie nar os atores sociais e dominá-los. De modo oposto, os grupos que provinham do modernismo vanguardista, como é o caso dos poetas concretos, não viam esses meios somente como um instrumento do poder: para eles, eram um cená rio no qual era preciso interferir e transformar a partir de dentro, porque seu aparecimento implicava uma modificação profunda nos mecanismos da cena pública e na criação de imagens culturais. Nos concretos e neovanguardistas, esse reconhecimento foi o efeito de sua tendência a privilegiar as mudanças tec nológicas mais como processos de inovação e modernismo do que como instru mentos de dominação. Diferentemente de setores muito ativos politicamente, mas que consideravam os meios exclusivamente sob o prisma da alienação, es ses grupos conceberam uma estratégia para a qual os meios não fossem um ini­migo exterior, e sim um cenário de disputa das legitimações culturais em jogo.

Quando os poetas de Invenção se perguntavam: “o que são as revoluções, senão radicalizações da média?”, propunham que eram as próprias práticas que deveriam mudar, porque era a viabilidade histórica de conceitos como o de “revolução” que se havia transformado. Para os setores que, desde o início dos anos 1960, haviam optado pelas práticas de agitação tradicionais, ao con trário, tratava-se de aprofundar um processo de conscientização em que os meios desempenhavam o papel da alienação e da penetração imperialista. Esta era a idéia dos cpc (Centros Populares de Cultura), que se dedicavam à cons trução de um circuito parainstitucional exterior aos meios. Como afirmou Fer reira Gullar, os cpc “se propunham competircom os meios de comunicação de massa buscando formas de comunicação populares e indo com suas obras aos sindicatos, às favelas, aos subúrbios, às vilas operárias, às usinas de açúcar, às fa culdades”4. Era essa competição que os poetas concretos consideravam inviável e negadora do novo estado de coisas (com o corolário de uma visão romântica e populista dos consumidores). Entretanto, durante a época do governo de João Goulart (1961-1964), a visão dos cpc viu-se reforçada por um trabalho com os sindicatos e o campesinato, que tendeu a reverter as soluções definidas a partir de cima que, quase sempre, haviam sido aplicadas no Brasil.

No quadro do golpe de Estado e do crescimento desmesurado dos meios de comunicação, essa competição não se adaptava às novas lógicas de circula ção e consumo que, por mais capitalistas ou imperialistas que fossem, não dei xavam, por essa razão, de interferir na cultura5. De qualquer maneira, isso não deve levar à conclusão de que a crítica da revista Invenção proporcionou a ela condições práticas de participar desses conflitos: a poética de vanguarda e de alto repertório dos poetas concretos dificilmente se adequava àlógica espeta cular dos meios. A outra possibilidade da mídia, de submeter-se ao mercado do design,colocava-os frente à dissolução dos postulados centrais do movimento. Em 1967, ano em que se publicou o último número da revista Invenção, os poe tas paulistas se encontravam diante de um impasse que só se resolveu, de um modo alternativo, com a irrupção do movimento tropicalista.

Foram os músicos de massa do tropicalismo que tiveram a capacidade para in-cursionar nos meios, tanto por sua posição como por sua trajetória: sua própria experiência sociocultural, formada nos meios de comunicação e nas informações transmitidas por estes, situava-os em uma posição muito vantajosa diante da nova encruzilhada do mass media. Frente à concepção exterior dos grupos de esquerda, o tropicalismo tinha como pressuposto a interiorídade dos meios de comunicação de massa, a necessidade de compreender seu papel preponderante e de provocar – mediante uma incursão em seu interior – o desvio. Esse grupo e, em muito menor medida, o da revista Invenção conceberam os meios como espaço de negociação e crítica das imagens sociais. Os poetas concretos se mo veram, conceitualmente, com muita comodidade nesse campo, mas nas perfor mances mantiveram uma distância que, às vezes, os convertia em referências do movimento e, em outros casos, em figuras marginais. O caso dos músicos de Invenção(Júlio Medaglia, Damiano Cozzela e, sobretudo, Rogério Duprat), ao contrário, foi diferente, já que tiveram, pela primeira vez, a possibilidade de tra balhar em colaboração com músicos populares nos arranjos de seus discos.

Us músicos de Invenção, assim como os poetas, já estavam distanciados do repertório do concretismo ortodoxo e em “& se não perceberam” haviam es crito: “Erik Satie realizou no niveí semántico-pragmático o que Webern reali zou no sintático”6. A incorporação do humor e da paródia do músico francês preparava esses músicos para trabalhar no campo do consumo de massa. Mas se essa incorporação da dimensão Satie funcionava como nexo entre os artistas da revista e os tropicalistas, não por isso se deve crer que esse nexo foi unidirecional e que os músicos populares baianos oferecessem passivamente suas com­posições aos arranjadores. Ao contrário, o que se produziu nessas gravações foi um genuíno campo experimental, no qual se misturaram posições, formas e atitudes de diversas procedências. E se a destreza dos músicos de Invenção deve ser entendida como corolário da revisão à qual submeteram os critérios modernistas, o caso dos baianos explica-se de um modo semelhante ao que vi mos com os poetas concretos no capítulo “Da Bienal a Brasília” pela mediação privilegiada do contexto urbano e do museu.

Os tropicalistas baianos (Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Gal Costa) formaram-se em sua infância e adolescência escutando música de repertório popular no rádio e nas ruas7. Em 1959, surgiu a bossa-nova, e a presença de João Gilberto – pelo tratamento inovador e sofisticado de suas interpretações – sig nificou um salto qualitativo para os ouvidos desses jovens que já eram amateurs em música popular e de massa8. Mas outro fato foi também desencadeador: a princípios da década de 1960, quase todos eles se mudaram para a capital do Es tado, Salvador, e participaram de uma das experiências culturais mais intensas da história brasileira do século xx9.

No final da década de 1950, Edgard Santos, reitor da Universidade Federal da Bahia, decidiu levar a cabo uma modernização das instituições artísticas e culturais baianas e convocou uma série de artistas para diferentes cargos edu cativos de formação e difusão. As escolhas de Santos foram bastante signifi cativas e estiveram orientadas pelos critérios do alto modernismo: convocou o dramaturgo Martim Gonçalves, o músico Hans J. Koellreutter, a arquiteta e urbanista Lina Bo Bardi, e Yanka Rudzka para que se ocupasse da dança. Ademais, criou o ceao (Centro de Estudos Afro-orientais) e para dirigi-lo no meou Agostinho da Silva, professor que exerceu uma grande fascinação sobre os jovens. Martim Gonçalves foi, entre outras coisas, o diretor da montagem da Ópera dos Três Tostões, de Bertolt Brecht, um acontecimento que tanto o cineasta Glauber Rocha como Caetano Veloso consideraram decisivo em sua formação. A cargo da cenografia esteve Lina Bo Bardi, que foi muito mais do que uma arquiteta ou urbanista; sua presença na Bahia desencadeou uma sé rie de idéias sobre a modernidade no Nordeste, que podem ser encontradas hoje em dia nas obras dos artistas jovens e nas ruas da cidade. Protagonista da criação do masp, Lina Bo Bardi se transferiu para Salvador no final dos anos 1950, e ali foi encarregada de vários projetos institucionais decisivos. Em se tembro de 1959, montou para a v Bienal Internacional de Arte e Arquitetura de São Paulo, no Parque Ibirapuera, a Exposição Bahia, que, entre outras coisas, propôs uma revalorização da cultura popular baiana realizada com crité rios modernistas10. A categoria do design funcionava como nexo, mais uma vez, entre os diferentes níveis culturais. Em 1960, Lina Bo Bardi criou o Mu seu de Arte Moderna da Bahia e, pouco tempo depois, em 1963, o Museu de Arte Popular. Para instalar esse museu, Bo Bardi restaurou o conjunto ar quitetônico conhecido como Solar do Unhão que, por sua localização privile­giada na cidade, redistribuiu o tecido urbano, revalorizando uma região cen tral, mas de pouco movimento11.

Outra presença fundamental foi a do músico Koellreutter que, como já foi mencionado, compôs a música de inauguração do mam de São Paulo, e foi au tor do “Manifesto de 1946” que se opunha ao nacionalismo predominante na música erudita. Durante sua permanência na Universidade da Bahia, foi exe cutado um repertório que incluía obras dos clássicos mas também de George Gershwin, Arnold Schoenberg, Hans K. Stockhausen e John Cage. Caetano Veloso conta uma história muito significativa sobre a apresentação de uma obra de Cage a cargo de David Tudor, em 1961 ou 1962: “Uma das composi ções previa que, a certa altura, o músico ligasse um aparelho de rádio ao acaso. A voz familiar surgiu como que respondendo a seu gesto: ‘Rádio Bahia, Cidade do Salvador’. A platéia caiu na gargalhada. A cidade tinha inscrito seu nome no coração da vanguarda mundial com uma tal graça e naturalidade, com um jeito tão descuidado, que o professor Koellreutter, entendendo tudo, riu mais do que toda a platéia”12.

O cineasta Glauber Rocha, que havia participado com Lina Bo Bardi da Ex posição Bahia, de 1959, foi um dos primeiros jovens artistas que se formaram nessa experiência. Em um de seus primeiros textos, Glauber escrevia:

A guerra que as novas gerações devem abrir contra a província deve ser imediata: a ação cultural da Universidade e do Museu de Arte Moderna são dois tanques de cho que […], os clarins de batalha foram tocados pelas grandes exposições do Museu de Arte Moderna e pela montagem da Ópera dos Três Tostõesde Brecht, que provocaram grande excitação no pensamento pequeno-burguês13.

A mescla de refinamento e barbárie presente em todos os seus filmes tem suas raízes na busca de uma linguagem modernista e no reconhecimento do atraso regional. O primeiro curta-metragem de Glauber, O Pátio, participa de uma estética concreta (joga com dois corpos e a forma quadricular dos ladrilhos), o que indica sua necessidade de sair do provincianismo baiano14. A prin cípios da década, Glauber, que dirigia o suplemento cultural do Diário de Notí cias, realizou Barravento (1962), seu primeiro longa-metragem, narrado com uma dialética ideológico-formal de tipo eisensteiniano. A estética desse filme re sulta, porém, um pouco exterior ou coreográfica, se podemos dizer assim, como se o diretor se mantivesse distanciado graças a esse esquema dialético. Dois anos depois, baseando-se em uma pesquisa sobre o interior baiano, que havia realizado para o jornal, fez Deus e o Diabo na Terra do Sol, um dos marcos do cinema brasileiro, e, em 1967, Terra em Transe, filme que foi decisivo para a con solidação do movimento tropicalista. EmDeus e o Diabo na Terra do Sol, Glau ber supera essa distância, como se ele próprio se interiorizasse nos conflitos e procurasse um estilo, já não concreto nem eisensteiniano, em que a câmara se aproxima e se distancia dos personagens e dos objetos com grande violência. Com esse filme, Os Fuzis, de Ruy Guerra, eVidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, iniciou-se o movimento do Cinema Novo brasileiro. Tal movimento, que apostou em um cinema independente, promoveu a reflexão sobre as razões de se fazer cinema em um país subdesenvolvido (“uma idéia na cabeça e uma câmera na mão” era seu lema), abandonou o isolamento dos estudos e mergulhou nos problemas rurais e urbanos, utilizando procedimentos vanguardistas e um novo tipo de atuação e de montagem. O cangaceiro, que Glauber mostra nesse filme, difere do cowboy folclórico e algo hollywoodiano de O Cangaceiro, de Lima Barreto, e a paisagem desolada e paupérrima não condiz com a imagem frutada e paradisíaca de Carmen Miranda (ao mesmo tempo, algo do Eisenstein rural de O Velho e o Novo se transfere para esse filme). Nele, diferentemente do que ocorria em Barravento, a crítica aos mitos e à cultura popular se faz a par tir de dentro. Com Terra em Transe (1967), Glauber se distancia da ortodoxia da esquerda (a qual critica sem piedade) e se aproxima das vanguardas brasi leiras dos anos 1920 (principalmente da tendência “antropofágica” de Oswald de Andrade). Enquanto Deus e o Diabo… é um filme fundacional do Cinema Novo, Terra em Transe pode ser lido como um filme tropicalista que coloca em evidência as limitações da política progressista no Brasil e a necessidade de uti lizar a paródia e a sátira para refletir sobre a crise política e a herança cultural. Os concertos de música de Koellreutter, a trajetória de Glauber Rocha, a atividade de Lina Bo Bardi, o clima de um modernismo aberto que se vivia em Salvador explicam as qualidades de um grupo de jovens que se formou nesse clima e cujos representantes mais destacados foram Gilberto Gil e Caetano Veloso (que se conheceram na Faculdade de Filosofia da Universidade da Ba­hia). Esta familiaridade com o repertório popular da música e com o repertó rio do alto modernismo colocou Caetano e Gil em condições de estabelecer passagens e vínculos entre as culturas alta, popular e de massa. Por sua vez, a “explosão dos meios de comunicação de massa” como a denominou McLuhan, fez com que Caetano pudesse mover-se entre esses repertórios diversos, agora despojados de sua marca de origem15. Em sua primeira etapa, a televisão se caracterizou pela fluidez e pela inclusão dos discursos que provinham dos mais diversos níveis: com uma lógica que só o passar do tempo permitiu visualizar mais nitidamente, os meios não prolongaram a cultura popular nem de elite, mas sim criaram sua cultura específica, que aqui denomino de massa. Apoia dos nessa contingência, os tropicalistas não juntaram nem mesclaram níveis culturais diferentes, mas se colocaram acima dessas diferenças e, a partir daí, elaboraram suas obras.

A explosão tropicalista
A aparição pública do grupo tropicalista foi breve, mas sua intensidade fez com que as vanguardas da década anterior se vissem revitalizadas e passassem a fa zer parte, com diferentes modulações, do repertório dos jovens que se incorpo ravam à vida cultural.

A história do tropicalismo musical consta dos seguintes acontecimentos. Em 1967, realizou-se a competição do Terceiro Festival de Música Popular Bra sileira (mpb) de São Paulo, do qual participaram Gilberto Gil com “Domingo no Parque” e Caetano Veloso com “Alegria, Alegria” (classificadas em segundo e quarto lugares, respectivamente). Para além das posições alcançadas, essas duas canções causaram impacto não só pelo uso de instrumentos elétricos (na composição de Gil combinados com um berimbau), como também pela natu reza das letras, tanto por seu caráter caleidoscópico quanto por suas referên cias à mídia (Brigitte Bardot, Coca-Cola, televisão). Segundo a perspicaz des crição de Décio Pignatari, que cita Augusto de Campos, a composição de Gil organiza-se como uma “montagem eisensteiniana”, enquanto que a de Caetano utiliza um registro “câmara na mão” a Ia Godard16. Esses festivais eram muito importantes para a música popular e para o mercado fonográfico e também chegavam a provocar – sobretudo pelas músicas de protesto – intensas discus sões políticas.

Em 1968, começa o movimento tropicalista com a edição dos discos Caetano Veloso Gilberto Gil (este último reproduz na capa uma foto do músico vestido de acadêmico e com uma barba a Ia Machado de Assis). Do primeiro disco, participam como arranjadores Júlio Medaglia, Sandino Hohagen e Damiano Cozzela e, no segundo, Rogério Duprat. Alguns meses depois, estará à venda o disco Panis et Circensis,que reúne vários músicos do movimento (ilust. 6). O tropicalismo estava integrado, principalmente, por artistas provenientes da mú sica popular (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e a ex-bossa-nova Nara Leão) e do rock {Os Mutantes), mas também por integrantes do grupo de van guarda Música Nova, como Rogério Duprat (que aparece na capa do disco com um penico, em um gesto digno de Duchamp) e poetas provenientes do movi mento de poesia concreta (Augusto de Campos aparece na contracapa do disco entrevistando João Gilberto). Mas não houve apenas discos: o grupo também teve seu programa de televisão {Divino, Maravilhoso), e realizou várias interven ções escandalosas em shows ou festivais. Depois de diversos conflitos em torno do programa de televisão, a tempestade desabou no Festival Internacional da Canção de 1968, quando Gilberto Gil foi desclassificado e Caetano enfrentou o público que o vaiava com um discurso inflamado, enquanto interpretava a can ção “É Proibido Proibir”. Acompanhado por Os Mutantes, que vestiam roupas prateadas, feitas com sobras, Caetano enfrentou tanto os setores conservadores (que eram tema de muitas das canções do grupo) como seus detratores estudan tis de esquerda, que o acusavam de alienado:

Vocês são a mesma juventude que vão sempre, sempre matar amanhã o velhote ini migo que morreu ontem. Vocês não estão entendendo nada. […] Mas que juventude é essa? […] Vocês são iguais aos que foram à Roda Viva e espancaram os atores. Vocês não diferem nada deles […] Nós fingimos aqui que desconhecemos o que seja o festival. Ninguém nunca me ouviu falar assim, sabe como é? Nós tivemos essa coragem de en trar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês em política forem como são em estética estamos feitos! E quanto aojúri: é muito simpático, mas incompetente.

Deus está solto!
Me dê um beijo, meu amor
eles estão nos esperando
os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras, as estátuas, as vidraças, louças, livros, sim!17.
Devido a este e a outros escândalos e com o endurecimento da ditadura, no final de 1968, Gil e Caetano foram presos e obrigados a deixar o país no ano se guinte. Exilaram-se em Londres até seu regresso ao Brasil, em 1972. Uma explo são mais que um gemido, poderíamos dizer, parafraseando Eliot.

Da distância do olhar ao contato dos corpos
continuidade entre o modernismo e os movimentos iconoclastas dos anos 1960 constitui um dos aspectos mais curiosos da cultura brasileira do período. Os ne xos que se produziram entre ambas as tendências não foram unidirecionais: além da passagem – na trajetória de um autor – de uma poética do alto modernismo a uma prática que bem se poderia denominar pós-moderna, houve também um intercâmbio que se comprova tanto nas inúmeras citações e referências das can ções tropicalistas, como na participação, mais ou menos ativa, de artistas prove nientes das vanguardas dos anos 1950. Umas das razões desse encontro está na pré-história baiana do grupo tropicalista, em uma formação intelectual que inclui componentes da modernização institucional e urbana, e a presença constante da música popular nos meios de comunicação de massa e nas festas populares, como o carnaval. E, de maneira complementar, a partir da trajetória dos vanguardistas, esse vínculo ocorreu não só pelo vigor do alto modernismo brasileiro, como por que foram os próprios artistas de vanguarda que, na atividade de experimentação e evolução de seu trabalho, reconsideraram os critérios que haviam orientado seus programas iniciais. No caso dos poetas concretos, existiu, ademais, uma es tratégia de apoio e aliança com o tropicalismo, que se manifestou tanto nos ar tigos jornalísticos de Augusto de Campos, que depois integraram seu livro Ba lanço da Bossa, como em algumas ações conjuntas (conferência de Caetano e Gil na Universidade de São Paulo, entrevistas, intervenções polêmicas).

Um dos exemplos mais emblemáticos dessas passagens e intercâmbios foi o de Hélio Oiticica, cuja crítica ao modernismo foi tão contundente que o crí tico de arte Mário Pedrosa chegou a falar, referindo-se a seu caso, de “arte pós-moderna”. Apesar de que sua colaboração direta com os músicos tropicalistas foi tardia, sua obra Tropicália inspirou o nome do movimento e de uma das canções de Caetano Veloso. Esse encontro foi possível por uma série de trans formações do modernismo brasileiro, que a trajetória de Oiticica ilustra, como nenhuma outra, no uso dos meios de comunicação de massa, dos slogans e do corporal. O artista, que havia pertencido ao concretismo, colocou em cena mui tas das inquietações que o tropicalismo e outras tendências do final da década assumiriam como próprias.

Nascido no Rio de Janeiro, Hélio Oiticica participou da Exposição Nacional de Arte Concreta de 1957 e depois passou a fazer parte do neoconcretismo, a dis sidência carioca do movimento, liderada por Ferreira Gullar. Por volta de 1964, ocorreu uma mudança na obra de Oiticica (e nas de outras duas artistas neo-concretas, Lygia Clark e Lygia Pape), que foi paralela ao que realizaram os ar tistas paulistas (Waldemar Cordeiro, Augusto de Campos e Damiano Cozzela) com a exposição dos Popcretos. Mas, se nos concretos paulistas se tratou, prin cipalmente, da abertura da forma aos materiais que a homogeneização havia ex­cluído, as experiências de Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica vinculavam-se à abertura do neoconcretismo aos objetos e à fluidez do tempo (com certas marcas de subjetividade).

A experimentação que se iniciou com os “Parangolés” integrava a distância do visual e o planejamento e a racionalidade do processo de composição, mas a insistência nos corpos, nos restos e no aleatório fazia com que esses compo nentes modernistas se relativizassem em sua convivência com o predomínio das relações de contato. Nesse resgate do corporal e dos restos foi fundamen tal, como já vimos no caso de Haroldo de Campos, o resgate que os artistas brasileiros fizeram do vanguardista Kurt Schwitters18. O parangolé (termo que Oiticica tomou da gíria carioca) foi apresentado pela primeira vez no mam do Rio de Janeiro, na exposição Opinião 65, e consiste em uma série de desenhos de roupas, feitas com materiais encontrados que formam, nas palavras de Guy Brett, “estruturas semelhantes a roupas, capas, estandartes, tendas, para vestir, dançar, exibir: o corpo como núcleo central”19. Os corpos que Oiticica escolhia eram, geralmente, de integrantes da Escola de Samba da Mangueira, uma das escolas mais importantes do carnaval carioca. Em seu ensaio “Arte Ambiental, Arte Pós-moderna, Hélio Oiticica” (1966), Mário Pedrosa faz uma leitura de todas as modificações que implicava a atitude artística de Oiticica nesta “arte ambiental” que se baseia não nos “valores propriamente plásticos”, mas sim na “plasticidade das estruturas perceptivas e situacionais”20. O situacional e o ambiental somados a uma corporeidade generalizada (que envolve artista e espectadores) são os elementos que levam Mário Pedrosa a falar de “arte pós-moderna”, no sentido de que os critérios modernistas são abandonados. Este corte na obra de Oiticica começou com um “verdadeiro rito de iniciação”: “um dia, Oiticica deixa sua torre de marfim, seu estúdio, e integra-se na Estação Primeira de Mangueira”. Em termos teórico-plásticos, trata-se da passagem de uma experiência visual pura à “fruição sensual dos materiais, em que o corpo inteiro, antes resumido na aristocracia distante do visual, entra como fonte to tal da sensorialidade”21.

Esta encenação do corpo e este desfile de anti-moda que é o “Parangolé” que teve como precursor Flávio de Carvalho com seu New Look, foram lidos pela ótica do mass media pelos tropicalistas, em uma apropriação que, em um pri meiro momento, incomodou o artista carioca. Em seu ensaio “Tropicália” de 4 de março de 1968, Oiticica tentou separar-se do fenômeno do tropicalismo (por “se tornar a moda atual”)22, atitude que mudou no final do mesmo ano, quando participou com uma obra em um dos shows tropicalistas: “Hélio Oiticica, que involuntariamente dera nome a nosso movimento – escreve Caetano Veloso -, estava presente naquele próprio evento, com uma obra exposta perto do palco […] sua homenagem ao bandido favelado Cara de Cavalo, morto a tiros pela polí cia, na forma de um estandarte em que se lia, sob a reprodução da fotografia do corpo do personagem estendido no chão, a inscrição Seja marginal, seja herói”23. O uso de slogans com um caráter político, mas sempre próximo da ambigüidade e da fala cotidiana, e não a partir de uma ideologia prévia ou de um objetivo final externo, é outro aspecto que os tropicalistas reciclam. No contexto da ditadura militar, esse uso ocasionou censura e perseguição24.

Essa passagem à corporalidade está em uma dialética permanente com a imagem universal, uma dinâmica que impediu que a estética de Oiticica se tor nasse populista (como sucedeu com seu ex-companheiro de grupo Ferreira Gullar). Como nas obras de Lina Bo Bardi, o “parangolé” não faz uma celebra ção cega ou mimética do popular, mas sim pesquisa as formas de validade uni versal da cultura dominada, a partir de noções como jogo, prazer, movimento. E o que o artista aprende nesse contato com o popular é o caminho rumo a uma arte não repressiva que, em sua irrupção festiva, põe em destaque a ideo logia dominante em aspectos como, por exemplo, o contato físico entre classes (foi o que ocorreu com o “parangolé”, em sua primeira apresentação no museu: a entrada dos habitantes das favelas causou um escândalo). A saída de Hélio Oiticica do modernismo se deu por intermédio do corpo popular e foi, a partir dele, que leu as possibilidades da forma, da cultura e da política.

Na revisão que os vanguardistas fizeram dos princípios modernistas que ha viam sustentado na década de 1950, uma das figuras-chave foi – tanto para os artistas paulistas como para Hélio Oiticica – Oswald de Andrade. Entretanto, o acesso dos tropicalistas à literatura de Oswald não se deu por meio das interpre­tações de Oiticica ou dos poetas concretos, mas sim pela montagem da peça O Rei da Vela, por José Celso Martinez Corrêa no teatro Oficina25. Muitas podem ser as razões que expliquem o impacto que essa obra causou nos jovens tropicalistas: o descobrimento de um artista como Oswald, a liberdade e a audácia da montagem, o uso do sarcasmo e da paródia para se referir à sociedade bra sileira e, sobretudo, a crítica demolidora à qual a burguesia nacional é subme tida. Enquanto a tendência geral na cultura brasileira de esquerda era a crítica ao imperialismo, os tropicalistas apontaram seus dardos (e nisso O Rei da Vela foi fundamental) contra a hipocrisia da classe média brasileira e suas limitações morais, estéticas e políticas. Da mesma forma, poderia ser lido outro dos filmes que impulsionou o movimento: Terra em Transe, de Glauber Rocha.

Entre outros referentes do tropicalismo, devem ser considerados a pop art, o movimento hippie, o rock em inglês e, principalmente, a bossa-nova26. A revista Invenção e a poesia concreta também foram referências dos jovens tropicalistas, e uma de suas canções-manifesto tem como título “Geléia Geral” que é uma cita ção do texto “& se não perceberam” do último número de Invenção. Nesse sen tido, a poesia concreta fez parte de um repertório em que havia perspectivas e procedimentos incompatíveis com ela. Isso explica que se possa falar de uma con tinuidade, embora em termos estritos o tropicalismo e a poesia concreta sejam dois fenômenos de natureza muito diferente. Porém, os poetas concretos não só foram um ponto de referência; com seus ensaios e com suas estratégias de apoio e aliança, eles acompanharam o movimento e se envolveram em suas ações.

O ouvido concreto
O último número da revista Invenção, de janeiro de 1967, apresenta a “partitura-roteiro” Cidade, de Gilberto Mendes, baseada em um poema de Augusto de Campos. Pela primeira vez, um número da revista menciona – tanto em “& se não perceberam” como na partitura de Mendes – intérpretes de música de massa, como Elis Regina ou os Beatles. No entanto, a linguagem dessa com posição exige uma competência própria da música de vanguarda. Para Augusto de Campos, trata-se da “incorporação da música popular urbana, em monta gens e citações, como um dado semântico, ao contexto sintático da música eru dita”27. Minha hipótese é que essa diferença entre sintaxe e semântica, entre uma organização modernista do material e a emergência de novos dados se mânticos vinculados com os meios de comunicação de massa, desestabilizou os critérios modernistas no transcurso dos anos de 1967 e 1969. A explosão dos meios reatualizou, nesse breve lapso, vários postulados da poesia concreta, mas ao mesmo tempo tornou insuficiente a sintaxe modernista como plataforma a partir da qual se pudesse dar conta de um material de arquivo heterogêneo, multitemporal e pressionado pelas forças da política, do mercado e dos meios de comunicação de massa (ou seja, submetido a uma exposição permanente e ao juízo de um público muito mais amplo e mais diverso). O fato de que seja a música de massa o espaço onde se dirimem tanto a discussão pelo repertório quanto as lutas institucionais faz com que os critérios de homogeneidade, evo­lução e autonomia cheguem ao limiar de sua própria desaparição.

Em 1968, Augusto de Campos publicou Balanço da Bossa, em que também escreveram os músicos Gilberto Mendes, Brasil Rocha Brito e Júlio Medaglia28. Nesse livro, foram recolhidos os artigos que Augusto de Campos havia come çado a publicar em vários jornais durante 1966 (artigos que – dado nada des prezível – não haviam sido incluídos na revista Invenção). O livro é uma defesa polêmica do tropicalismo e inclui, nas guardas, uma montagem fotográfica feita pelo próprio Augusto de Campos, na qual João Gilberto e Caetano Veloso olham-se mutuamente, marcando a continuidade entre suas poéticas29. E ainda que se tenha assinalado com freqüência o caráter de defesa e aliança programática entre concretos e tropicalistas, não se sublinhou o suficiente quais foram as condições discursivas e ideológicas nas quais essa defesa foi empreendida. No livro, Augusto de Campos e seus companheiros defendem o tropicalismo, so bretudo pela continuidade que percebem com seu próprio trabalho, ao mesmo tempo que atenuam as diferenças. Na valoração das contribuições da música de massa ou popular, Balanço da Bossa utiliza quatro linhas interpretativas: a distância crítica para com o arquivo, o isomorfismo para determinar a moder nidade da obra, a homologia entre os campos e a capacidade de questionar, no novo cenário tecnológico, as instituições e o poder.

1. A distância crítica. A implementação dos critérios de homogeneidade, autonomia e evolução implica uma atitude construtiva e supõe, portanto, uma relação de distância crítica com o arquivo. Se não se possuir uma consciência mínima do estado em que os materiais herdados se encontram, é muito difícil estabelecer uma posição evolutiva.

Enquanto estava sendo preparado o último número de Invenção, Augusto de Campos escrevia seus primeiros ensaios sobre música popular. Neles, resga tou a figura de João Gilberto, a bossa-nova, a Jovem Guarda e um músico que, naquele momento, quase não possuía obra, mas cujas declarações em uma en­trevista haviam chamado sua atenção: Caetano Veloso. Em um momento de impasse (em que João Gilberto estava longe – havia sido “mandado a passeio”, como diz o texto do último número da revista – e em que a Jovem Guarda emergia como um movimento sem consciência de seu papel), a sedução que o discurso de Caetano exerceu sobre o poeta vanguardista teve como causa a dis tância crítica com a qual o músico pensava sua inserção no campo da música popular. Em uma entrevista que Caetano Veloso concedeu à Revista Civiliza ção Brasileira (n. 7, maio de 1966), afirmava:

Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. […] Aliás, João Gilberto para mim é exatamente o mo mento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na re criação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente, da música popular brasileira. Creio mesmo que a retomada da tradição da música brasileira deverá ser feita na medida em que João Gilberto fez. Apesar de artistas como Edu Lobo, Chico Buarque, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Maria da Graça (que pouca gente conhece) sugerirem esta retomada, em nenhum deles ela chega a ser inteira, integral30.

Os critérios modernistas que Caetano utiliza para organizar o arquivo são homólogos aos dos poetas paulistas. O músico baiano fala de sua “preocupação pelo novo”, da necessidade de retomar a “linha evolutiva”, de que essa prática te nha “organicidade”, de que a revisão deve ser “completa, integral”.

2. O isomorfismo para valorar a modernidade da obra. Para a valoração das obras e de seus procedimentos, o eixo fundamental foi o que nos manifestos dos anos 1950 se denominou isomorfismo,definido como o trabalho de identificação entre o conteúdo e a forma. A partir desse ponto de vista, a canção “Samba de uma Nota Só” de Tom Jobim e Newton Mendonça, era um “exemplo de texto fun­cionalmente reduzido” e a interpretação de João Gilberto era funcional porque es tava “despojada” e se negava à ornamentação31. Essa característica permitiu-lhes autonomizar a história da música popular e fazê-la correr por trilhos paralelos à evolução em outros domínios, situando João Gilberto na mesma “tradição de ri gor” que João Cabral de Melo Neto (o que implica, evidentemente, uma referên cia implícita ao projeto dos concretos de apagamento do sujeito lírico)32.

Do ponto de vista da composição, as teorizações de Augusto de Campos so bre o isomorfismo, embora se baseassem em canções já existentes, retornavam à música popular incentivando esse tipo de concepção em seus integrantes (isto é, tornando-a mais consciente). Esse é o caso dos músicos do tropicalismo, mas também o de compositores alheios a esse movimento, como Chico Buarque, cuja composição “Construção” é um excelente exemplo de isomorfismo com-posicional, no qual as palavras funcionam como tijolos que fazem erguer-se o edifício de onde o operário cai. Em Caetano e Gil, os exemplos são numerosos e não importa tanto que poemas compostos antes de que Caetano conhecesse Augusto de Campos, como “Clara”, sejam um exemplo de tratamento isomórfico dos materiais33. As leituras que Augusto de Campos realizou das canções tropicalistas inspiraram seus integrantes e até o próprio Augusto chegou a par ticipar como colaborador ou inspirador (esse é o caso de “Cademar”, de Tom Zé, ou de “Acrilírico”, de Caetano, que inclui uma releitura de seu poema “Terre moto” de 1956)34. Os músicos do tropicalismo encontraram nas teorizações dos poetas concretos um esclarecimento de seus próprios processos de composição.

3. Homologia entre os campos. Para detectar as transformações culturais ge rais (o que em seus manifestos denominaram uma “arte geral da linguagem”), os artistas de Invenção estabeleceram uma homologia entre diferentes domí nios. Escreve Augusto de Campos:

O decréscimo de interesse, não só do público em geral, mas dos aficionados da mú sica popular brasileira, de todos aqueles que acompanharam sua renovação, a partir do espetacular “salto qualitativo” da bossa-nova, em consonância com a renovação da arte brasileira em todos os seus campos, da arquitetura àpoesia concreta, não se explica por questões miúdas de liderança ou de inércia. Tem raízes estruturais, internas, que impor tam em uma momentânea queda de padrão, e que precisam ser analisadas com objetivi dade, ao lado dos fatores externos35.

Essas raízes estruturais internas e externas são a reação a um nacionalismo fechado e a postulação do acesso a uma linguagem universal (o moderno) que a presença dos meios tornava inevitável. Nesse argumento, o “nacionalismo crí tico” de Brasília e da revista Invenção tem correspondências com a bossa-nova, devido à capacidade desta para processar dados internacionais (por exemplo, o jazz) e para recuperar de forma renovadora a música brasileira do passado. Em sua tarefa crítica, os poetas concretos reproduzem – no campo da música de massa – enfrentamentos que vinham de longa data nos debates da poesia e da plástica, sob opções semelhantes: nacionalismo versus cosmopolitismo, for mas progressivasversus regressivas, isomorfismo versus conteudismo.

Nessa homologia, os integrantes de Invenção sublinham tudo aquilo que os envia ao repertório modernista,destacando desde a “forma geométrica ou abs trata” na “apresentação gráfica dos discos” como faz Júlio Medaglia, até os títu los dos discos: “Novas Estruturas” “Evolução” “Movimento 65” “Esquema 64” “Vanguarda” “Opinião” nos quais alguns, é verdade, parecem títulos de pinturas concretas36. Apesar de sua capacidade para organizar e interpretar a música po pular, a homologia acaba projetando características de um campo sobre outro, como sucede quando interpretam a história da bossa-nova em fases similares às do movimento de poesia concreta: “fase heróica” e “salto participante”37. Ou quando despojam o campo da música de massa das características que lhe são próprias. O “trabalho em equipe” da bossa-nova que, segundo essa interpreta ção, está em consonância com o postulado dos manifestos do grupo concreto (“tendo a bossa nossa se caracterizado como um movimento musical voltado contra o ‘estrelismo’ e contra o culto do ‘solista! desenvolveria, por outro lado, o sentido do trabalho em equipe”38) é, acima de tudo, uma característica do tra balho industrial em série, que a cultura de massa contemporânea impõe. A opi nião de Medaglia, sem deixar de estar baseada em dados concretos (inclusão da ficha técnica, em que são mencionados todos os instrumentistas), força, como ocorre em outras partes do livro, as analogias entre os campos. Assim, “culto do solista” pode ser lido como culto do poeta e, mais amplamente, do sujeito. Essa analogia, que tem a virtude de eliminar as fronteiras entre cultura de elite e de massa, nem sempre pode resolver o fato de que muitas dessas características são próprias do funcionamento da indústria e do mercado ou de uma lógica es pecífica da cultura de massa, à qual não podem ser aplicados critérios externos. Simultaneamente a esse movimento, opera-se outro que a própria homolo-gia torna necessário: as distinções entre os campos (a distância que legitima o artista de vanguarda e que o mantém como tal). Para estabelecer essas diferen ças, o aparato conceituai utilizado emBalanço da Bossa foi o da teoria da infor mação, que concebe a aparição do novo nos meios de comunicação de massa em seu contraste relativo com o predomínio da informação redundante. Nesse sentido, produz-se uma tensão entre a invenção como prática que atravessa to dos os setores da produção artística (baseada na noção de homologia entre os campos) e a crença de que o nível de inovação é maior na música erudita que na música de massa. A música popular – afirma Augusto de Campos – deve trabalhar na “faixa da redundância (que, em termos de teoria da informação, é o contrário da inovação)”, enquanto a música de vanguarda “trabalha exclusiva mente com a informação original”39. Essa hierarquia explica que as apreciações e a defesa da bossa-nova e do tropicalismo não sejam feitas na revista Invenção, mas sim em jornais de ampla circulação {Correio da Manhã O Estado de S. Paulo), espaço natural para as expressões da música popular. “Webern e Lupi-cínio Rodrigues – disse Augusto de Campos – podem estar juntos na minha cabeça mas não são o mesmo”40. Além disso, essa hierarquização servia como antídoto à dissolução do projeto vanguardista do grupo (ainda sustentado pelos poetas paulistas) em um movimento como o tropicalismo, que os poetas e mú sicos de invenção, devido a sua formação, não podiam deixar de ver como eclé tico e um tanto caótico. Esta afinidade, que dá a si mesma os elementos para evitar uma falsa identificação, permitiu que ambos os grupos (o de Invenção e o tropicalista) mantivessem um alto grau de autonomia, embora se concebessem como atores históricos de uma mesma estratégia de ruptura.

Os princípios de análise da “teoria da informação” permitem dar continui dade a alguns componentes da poesia concreta como a novidade (a partir de uma comprovação estatística ou, como diria Décio Pignatari,estetísticd) e uma atitude cientificista que se combina com o uso dessa teoria como instrumento polêmico. Esta combinação entre uso polêmico e cientificismo resulta em uma manipulação bastante original da teoria da informação, cuja característica prin cipal durante os anos 1960 foi garantir uma posição distanciada e objetiva41. As sim, em seus cursos acadêmicos, Décio Pignatari utilizava exemplos de poesia concreta e construía a “teoria da guerrilha artística”, na qual a teoria da informa ção oferecia um mapa para a ação estética e cultural42.

Tudo isso explica que haja uma tensão permanente entre a hierarquização dos campos e o reconhecimento de lógicas próprias de cada campo que apa gam essa hierarquização (ou a suspendem). O fato de que se tenham pronun ciado publicamente em matéria de música de massa (o que ocorre em meados da década) levou os poetas concretos (sobretudo Augusto de Campos e Décio Pignatari) a abandonar ou a flexibilizar o critério de homogeneidade (preser vando os de evolução e autonomia), que se revelou profundamente imbricado com a cultura de elite dos anos 1950. A homogeneidade que o grupo exigia de si próprio para apresentar uma posição de acordo com as posturas mais moder nistas tinha uma grande dificuldade para incorporar a heterogeneidade que era o ponto de partida dos tropicalistas em sua consideração das sociedades perifé ricas43. O caso de Augusto de Campos é exemplar nesse sentido: seu gosto, em termos privados, ia da música erudita de vanguarda à música popular. No entanto, seu gosto público durante os anos 1950 se distingue por suas afinidades com a música contemporânea (Webern, Boulez, Stockhausen). Nos anos 1960, sua paixão pela música popular torna-se pública44.

4. O novo cenário tecnológico dos meios de comunicação de massa. No sé culo XX, sempre que houve uma transformação tecnológica, também ocorreu uma tentativa de radicalizar suas significações e suas práticas, mediante as téc nicas vanguardistas do choque e da não-conciliação (“e que são as revoluções, senão radicalizações da média?” perguntou-se retoricamente na revista Inven ção). O que ocorre é um momento tecnológico aberto, em que os agentes lu tam para impor certas práticas e pontos de vista: nesse processo de apoderação do sentido da produção tecnológica, os atores culturais consideram que nem o Estado nem o próprio público conseguiram ainda hegemonizá-lo. Tam bém costuma ocorrer que – em consonância com os hábitos, o mercado e o poder – os processos tecnológicos consigam dissolver ou anular os efeitos dessas práticas.

Já na etapa ortodoxa do concretismo, os poetas do grupo haviam começado a realizar – como parte de sua variada experimentação cultural – algumas in cursões neste momento aberto, que exigia uma modificação das formas tradi cionais da poesia e, complementarmente, que se pusesse à prova os limites do cenário tecnológico-cultural. Como sustenta Flora Süssekind:

Foi também em fins dos anos so, em pleno otimismo desenvolvimentista, que se iniciou um dos diálogos mais proveitosos entre poesia, tecnologia e espetáculo no Bra sil. Porque, sem medo de olhar de frente publicidade, outdoors, televisão, foram os poe tas concretos paulistas que, na virada da década, redefiniram o livro enquanto objeto, procuraram modificar o olhar do leitor de poesia, agora também um espectador do poema. E trabalharam e recriaram logotipos, objetos industriais, recursos de media. Às vezes comercialmente até. O nome Lubrax, por exemplo, como se sabe, é criação de Décio Pignatari45.

Augusto de Campos recupera essa experiência quando afirma que o tropicalismo é “um nacionalismo crítico e antropofágico, aberto a todas as nacionalida des, deglutidor e redutor das mais novas linguagens da tecnologia moderna”46. Este cenário tecnológico no qual confluem ambas as práticas (a do concretismo e a dos tropicalistas) não só é o lugar da devoração, da mistura e do espetá culo; a antropofagia possui – além de suas conotações de incorporação do ou tro – um caráter de subversão moral47. Nessa perspectiva, asperformances dos baianos se opõem ao moralismo estreito do público brasileiro, incluídas tanto a direita católica como a esquerda militante. O cenário tecnológico ocupa um papel central e é nele que se distribuem as posições.

Nesse contexto, ao que se somam as agitações políticas, o tropicalismo foi uma tentativa de disputar o discurso social com o poder militar instalado no Bra sil desde 1964, por meio da espetacularização. “Com o Tropicalismo – afirma Flora Süssekind – a crítica à indústria cultural e às imagens arcaizantes ou desenvolvimentistas do país se dá no espetáculo, se torna espetáculo”48. Durante o breve lapso de dois anos, os tropicalistas se alimentaram das práticas vanguardistas e seus critérios mostraram uma grande eficácia para valorar os compo nentes culturais e utilizar as obras como não-conciliação com um sentido crí­tico e iconoclasta. A distância crítica não será a do corte absoluto e transversal, que implica a postura deInvenção, mas sim a que se processa em uma atitude paródica que possa dar conta da heterogeneidade e das temporalidades super postas. Uma lógica paródica e de pastiche e não uma lógica da exclusão. Os tro­picalistas trabalharam com o choque violento que se produzia com a sobreposi ção da sintaxe modernista e da sintaxe dos meios de comunicação de massa, e seus músicos – sobretudo Caetano Veloso – encarnaram, ainda que por apenas quinze minutos, o mito do artista popular e de massa de vanguarda.

O corpo como lugar
Das inumeráveis facetas que as mudanças tecnológicas tiveram, os tropicalistas processaram sobretudo dois aspectos: a tecnologia como arquivo de imagens e a tecnologia como prótese dos corpos. À medida que sua intervenção cultural tornava-se mais persistente, compreenderam que não só a renovação musical estava em jogo: as imagens da cultura brasileira eram objeto de disputa e, nesse processo, as atitudes corporais se convertiam em fenomenais construções se-mióticas49. No caso do novo estatuto das imagens, tanto tropicalistas como concretos interpretaram a explosão dos meios como a crise dos arquivos na cionais e folclóricos, e a impossibilidade do nacionalismo como resposta artís tica e sociocultural (a defesa de uma cultura popular e nacional não adulterada pela presença estrangeira havia sido muito vigorosa ao longo de toda a década). Os meios se sobrepõem aos arquivos e os reabrem: como no museu imaginário, nada que não se possa reproduzir lhes é alheio. Essa crise dos arquivos fecha dos ou incontaminados foi aprofundada pelos tropicalistas, que realizaram em suas canções todo tipo de associações, cruzamentos, sobreposições e citações. A imagem que sobrepõe objetos de natureza diversa foi o procedimento mais evidente do tropicalismo e quase não há composição em que não se possa ob servar essa característica.

A partir do modernismo, Augusto de Campos e Roberto Schwarz buscaram revelar o mecanismo de construção dessas imagens, nas quais se combinavam o contemporâneo e o arcaico, a novidade e o resíduo, os materiais nobres e o mau gosto. Na linha do que propusera Haroldo de Campos em seu ensaio so bre Kurt Schwitters, Augusto de Campos lê “uma presentificação da realidade brasileira – não a sua cópia – através da colagem criativa de eventos, citações, rótulos e insígnias do contexto. É uma operação típica daquilo que Lévi-Strauss denomina de bricolage intelectual […] técnica empírica, sobre um inventário de resíduos e fragmentos de acontecimentos”20. Roberto Schwarz, por sua vez, em “Cultura e Política, 1964-69”, encontra o procedimento básico na alegoria, a qual, mediante as sobreposições, o anacronismo e a convencionalidade, cons trói imagens paródicas da classe média brasileira51. A partir dessas interpreta ções, podem desenvolver-se múltiplas linhas de leitura: a partir da interpreta ção de Augusto de Campos, é possível rastrear todas as ampliações da obra ao mundo dos fenômenos excluídos do que se considera artístico, e, a partir da leitura de Schwarz, pode-se desdobrar uma propriedade da alegoria que o en saísta não considera em relação com o movimento, como: a afeição pelo fúne bre ou pelo sex appeal do inorgânico52. Canções como “Panis et Circensis”, de Caetano e Gil, “A Voz do Morto” e “Tropicália”, de Caetano, e “Marginália 11”, de Torquato Neto, são algumas das composições em que a morte hipnótica re­solve imaginariamente os enfrentamentos sociais (algo que também pode ser aplicado à interpretação de “Coração Materno”, de Vicente Celestino). Como em uma estampa alegórica, sob os coloridos hippiesaparecem, aqui e acolá, os ossos de um esqueleto. Ou em uma interpretação mais social, é o cadáver no ar mário de uma burguesia repressiva e reprimida:

Mandei fazer de puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer.

“Panis et Circenses” de Caetano Veloso e Gilberto Gil
Ou em “Tropicália” em que é o sopro da morte – e não o da vida – que anima a estátua alegórica, rodeada de urubus e fossas:
O monumento não tem porta
a entrada é uma rua antiga e torta
e no joelho uma criança sorridente feia e morta
estende a mão.
[…]
senhoras e senhores ela põe os olhos grandes
sobre mim.

“Tropicália” de Caetano Veloso
Mas tanto a alegoria como a bricolage nos remetem ao mundo dos procedi mentos, quando a força do tropicalismo residiu em uma relação mais ampla. Há algo mais do que uma piada ou uma boutade na seguinte resposta de Cae tano a Augusto de Campos:
ac: Para encerrar. Que é o Tropicalismo? Um movimento musical ou um comporta mento vital, ou ambos?
cv: Ambos. E mais ainda: uma moda. Acho bacana tomar isso que a gente está querendo fazer como Tropicalismo. Topar esse nome e andar um pouco com ele. Acho bacana53.

Ao observar o tropicalismo com os olhos da moda, a complexidade de suas práticas se revela com a ambigüidade e a violência simbólica que são duas de suas características. O tropicalismo foi, entre outras coisas, uma moda, e suas obras e histórias extraem sua força do contato com esta. Mas, correlativamente, também foi um movimento que pôs a moda em tensão com a arte e a cultura. Suas composições musicais extraíram os objetos de seu contexto e os puseram diante do peso da transitoriedade da moda, convertendo-os em “relíquias” (a religião é substituída pela moda como horizonte de sentido da alegoria):

e quem não dança não fala
assiste a tudo e se cala
não vê no meio da sala
as relíquias do Brasil:
doce mulata malvada
um elepê de Sinatra
maracujá mês de abril
santo barroco baiano
superpoder de paisano
formiplac e céu de anil

“Geléia Geral” de Torquato Neto
Por meio da moda, as obras tropicalistas se unem ao tempo: um tempo que está marcado pelo mais atual, pela presença das tecnologias de comunicação na sociedade brasileira dos anos 1960, e por sua linguagem internacional, que põe em crise os arquivos fechados. Segundo Adorno, a moda, em seu “instinto pelo atual e em sua aversão ao provincianismo e a tudo que lhe é subordinado” cum pre o “desejo do artístico de se apropriar do material mais avançado”54.

A verdade do tropicalismo está no consumo e, com relação a este, não lhe in teressa distanciar-se e denunciá-lo (o que seria fazer música de protesto), mas sim mergulhar nele. Frente ao cinismo do músico de protesto que deve subme ter-se ao mercado musical, ao mesmo tempo que o rejeita, o cinismo dos tropi calistas é o preço que devem pagar para experimentar com seus próprios cor pos no cenário dos meios de comunicação de massa da sociedade de consumo (seus corpos como encarnação da moda e da mercadoria).

Na segunda metade da década de 1960, a moda não só manteve sua natu reza mercantil, como adotou também, no contexto de uma sociedade repres siva, caráter expressivo e significante. Segundo Georg Simmel, a moda conjuga duas tendências sociais: nivelamento social e diversificação e variedade. Seu uso serve para formar grupos que se distinguem por certos estilemas da moda que, por sua vez, os separam do resto56. Essas duas forças de agregação e distin ção dependem dos contextos históricos: no final dos anos 1960, serviram para a construção de uma identidade juvenil contracultural que pôs em destaque, de um modo espetacular, uma diferença. Os jovens não só usavam roupa colorida – rejeitando a tendência de vestir-se de preto ou de cinza – como pintavam o corpo com signos e emblemas grupais como o símbolo da paz. Essa “moda” foi tomada pelos tropicalistas, e seu contraste com o Brasil desses anos tornou as discrepâncias – com o estilo metropolitano e com o periférico – mais eviden tes (é sabido que Caetano, por exemplo, casou-se em um evento hippie em Sal vador). Em um típico gesto cosmopolita, a imitação – que se usa para marcar uma diferença fronteiras adentro – é um gesto dinâmico: ativa discursos, define identidades, produz escândalos.

Nos corpos encarnaram-se as novas formas de poder: reprimir ou liberar, falar ou calar, expandir-se ou contrair-se, reafirmar o prazer ou internalizar as ameaças do terror. Daí que a política à que recorreram as ditaduras desses anos (transformando os modos tradicionais de repressão) fosse o seqüestro e a desaparição dos corpos57. Para os tropicalistas, a possibilidade de irromper nos meios consistiu sobretudo em poder exibir o corpo, pondo em destaque, ao mesmo tempo, seu poder. A importância do cabelo, dos trajes, das pinturas no corpo é similar à que ocupa no movimento hippie norte-americano, mas suassignificações sociopolíticas são absolutamente diferentes, já que as condi ções dadas pelos contextos são diversas (um sistema democrático parlamenta rista, no caso norte-americano; uma ditadura militar que se endurece no final da década, no caso brasileiro). A moda, em outra de suas versões, proporcio nava também essa localização.

Mas se o tropicalismo pôde fazer esse uso dinâmico da moda foi porque os materiais que trouxe ao palco eram sua antítese. Os objetos de mau gosto (o formiplac), os despojos do mundo industrial (em suas roupas), os artefatos degradados do mundo cultural (“Coração Materno”, de Vicente Celestino), os testemunhos da ingenuidade provinciana (interpretação do “Hino de Nosso Senhor do Bonfim”) são incluídos junto à atualíssima música elétrica ou “iê-iê-iê” (na qual também não era alheio o mau gosto) e à sofisticação da bossa-nova, da poesia concreta e das citações mais insólitas. Nessa mescla do que se considera alta cultura (“high” ou de elite) e baixa cultura (“low” ou popular), a inovação mais inquietante não consistiu em que os tropicalistas eliminassem as fronteiras, mas sim que se colocassem acima delas e de suas classificações. A idéia de que, em seus gestos e escolhas, utilizavam o mau gosto contra a be leza como bem cultural é verdadeira, mas ainda traz consigo as perspectivas de um olhar modernista, seguro daquilo que é o bom gosto e o alto repertó rio. Esta foi a interpretação dos poetas concretos, que mantiveram um critério único (que abastecia a teoria da informação) para valorar as contribuições do novo movimento. A partir da teoria da informação, interpretaram essa mescla como uma “ampliação do repertório”, da mesma maneira realizada pela pop art: “a cultura popular – afirmou Décio Pignatari – é crítica em relação com a cultura superior e o kitsch é sua vanguarda de choque”58. Algo similar ao que defen deu Haroldo de Campos em seu ensaio “Vanguarda e Kitsch” com os conceitos de “informação nova” e “fator crítico”: o circuito do pop como “vingança contra a indústria cultural” que se recupera, por sua vez, utilizando estilemas popS9. A visão modernista captava a eficácia da operação, embora o fizesse a partir de uma sensibilidade que não era – ou era apenas em parte – a que os jovens tropicalistas punham em jogo. As escolhas tropicalistas tinham um duplo valor: seu uso, alternadamente e no mesmo objeto, podia ir da paródia à identificação amorosa, da distância e inversão violenta que supõe a paródia à aproximação ar rebatadora que sugere o amor.

O novo tipo de sensibilidade trazido à cena por Caetano Veloso e seus com panheiros (formados, como já dissemos, em uma cultura em que os repertórios mais diversos se sobrepunham com freqüência) privilegiava mais o uso do que a origem, e mais as energias liberadas do que os fins polêmicos ou a suprema cia da forma. A ambigüidade de seus movimentos estava em que, por um lado, eram conscientes da rejeição despertada por uma canção como “Coração Ma terno”, de Vicente Celestino, e a utilizavam em um sentido sarcástico e provo cativo60. Mas, por outro lado, não se tratava exclusivamente de um uso do mau gosto, e sim que essa canção os comovia independentemente de ser classificada como de “bom” ou de “mau” gosto61. O movimento, ainda com o risco de cair na ambigüidade ideológica, teve a virtude de criar as condições para a recupe ração de uma memória e uma sensibilidade que, caso se sujeitasse às classifi cações, teria que reprimir esse gosto que, para além da valoração degradante, fazia parte de sua história. Não se escolhem os objetos porque sejam de “mau” gosto, mas porque, ao liberá-los da perspectiva do mau gosto, podem recuperar suas energias criativas.

Outro dos aspectos da moda que entra em tensão com a arte é que, nela, a imitação não está condenada62. A imitação da moda está, de qualquer maneira, camuflada pelas pequenas variações e por seu desejo de distinção. Uma vez que esse elemento imitativo é tratado em termos artísticos, é liberado e pode transformar-se em um elemento dinâmico. A imitação, que em termos textuais é citação, é o modo de relacionar-se com o que o rodeia: o tropicalismo imita não só o estrangeiro, como também o nacional (com o que a acusação de estrangeirismo se torna absurda). Imitação em um extremo e paródia no outro tensionam o arco do tropicalismo. Este duplo valor (imitação e paródia, amor e sarcasmo) manifesta-se na linguagem dos meios, na utilização extremista e complementar da distância espetacular e do contato corporal. Como fazer com que o corpo visto na tela pudesse tocar esse novo sujeito espectador criado pe­los meios de comunicação de massa?

A “estimulação erótica” (Fuchs), que está diretamente relacionada com o ca ráter sensual (visual e tátil) da moda quando se trata de vestimentas, desenvol veu esse duplo valor até fazê-lo despontar. Esta intensa dimensão tátil sugerida pelas roupas feitas com materiais estranhos (como as que usavam Os Mutantes),os cabelos e as plumas e as exibições de partes do corpo, complementa-se com a distância dos brilhos e dos meios eletrônicos. O corpo, ao ser entregue à espetacularização, converte-se em uma extensão da tecnologia, que passa a funcionar como uma prótese. Os tropicalistas – com suas vestimentas hippies e suas guitarras elétricas, com suas fotos, em que a pose e a provocação eram os elementos dominantes – experimentaram em si mesmos a tese de McLuhan de que os meios são uma “extensão do corpo” Nessa extensão, os tropicalistas utili zaram a violência e a agressividade do movimento hippie e da performancepara sensibilizar tatilmente a distância que os meios impunham.

Segundo Silviano Santiago, “Caetano percebeu esse caráter contraditório e sintético que estava sendo apresentado pela arte de Glauber Rocha ou de José Celso Martinez Corrêa, de Hélio Oiticica ou de Rubem Gerschman, e quis que seu corpo, qual peça de escultura, no cotidiano e no palco, assumisse a contra­dição, se metamorfoseasse na contradição que era falada ou encenada pelos outros artistas mas nunca vivida por eles”63. Este é o caráter experimental do tropicalismo: servir o corpo na mesa das famílias brasileiras, por meio da televi são. O exílio de Caetano e Gil é, a partir desse ponto de vista, o corolário dessa experimentação e a exibição das forças repressivas que tal consumo gozoso do corpo havia despertado.

Poetas na selva selvagem
Na triangulação entre modernismo, novas práticas vanguardistas e meios de comunicação de massa, os critérios modernistas do programa concreto chega ram à sua própria dissolução. O olhar evolutivo continuou funcionando como esquema interpretativo, mas agora já não em torno do eixo da “desaparição elocutória do eu” nem do fim da era do verso, nem de nenhum outro conceito deri vado da autonomia do poema. A homogeneidade, na operação pop dos Popcretos ou nas Galáxias, de Haroldo de Campos, havia sido questionada a partir da incorporação de novos materiais, mas o que o tropicalismo punha em dúvida não era a passagem entre os repertórios, e sim o fato de que estes pudessem manter suas distinções. A auto-suficiência dos critérios modernistas enfren tava uma contrariedade insolúvel quando ingressava em um repertório –como sucedia nas canções do tropicalismo – junto aos nomes de Roberto Carlos e Gonçalves Dias. Os meios de comunicação de massa incorporavam estilemas das vanguardas, sem que isso afetasse sua forma ou constituísse um elemento não-conciliador. Nesse aspecto, o tropicalismo significou a consolidação da poe sia concreta como parte do repertório da música de massa e da cultura letrada, mas também marcou o início de sua desintegração como movimento orgânico (fato que se comprova, ademais, na produção poética desses anos), porque o tropicalismo foi, entre outras coisas, um movimento de crítica paródica e, complementarmente, o sinal de que a cultura de massa desestabilizava tanto as cul turas populares como as culturas de elite ou de alto repertório.

Um bom exemplo disso é a canção “Batmacumba” de Caetano Veloso e Gil berto Gil, incluída em Tropicália ou Panis et Circensis:

batmacumbaieiê batmacumbaobá
batmacumbaieiê batmacumbao
batmacumbaieiê batmacumba
batmacumbaieiê batmacum
batmacumbaieiê batman
batmacumbaieiê bat
batmacumbaieiê ba
batmacumbaieiê
batmacumbaie
batmacumba
batmacum
batman
bat
ba
bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaie
batmacumbaieiê
batmacumbaieiê ba
batmacumbaieiê bat
batmacumbaieiê batman
batmacumbaieiê batmacum
batmacumbaieiê batmacumba
batmacumbaieiê batmacumbao
batmacumbaieiê batmacumbaobá

A mistura sincrética de “Batman”, “ieiê” e “macumba” (o Brasil como “ma cumba para turistas”, segundo Oswald) resume-se em uma espécie de grito tri bal (“ba”) que pode ser interpretado como “um reduto ‘ba’, que guarda o nome africano do pai-de-santo do ritual do candomblé”64, ou uma das onomatopéias usadas nas canções de rock, cujo sentido reside, sobretudo, em expressar uma sensação corporal, de canto e movimento físico (uma das palavras formadas é “bat” pronunciada “bate”, que significa bater no sentido de agredir, mas também no sentido de tocar um tambor ou um instrumento musical de percussão). Se não fosse pela musicalização percussiva popular e pelo repertório do mass me dia e religioso a que se refere, “Batmacumba” poderia ser um poema concreto. Mas não o é: a letra da canção recupera a espacialidade concreta como mais uma relíquia, em um clima festivo que a desvincula de toda eficácia programática65.

Se a poesia concreta pôde oferecer toda uma série de técnicas na manipula ção de imagens, não podia fazê-lo com relação a um corpo que havia excluído, tanto sob formas subjetivas como de referência ou de performance corporal66. E se pôde acompanhar – e até detectar com mais perspicácia que outros – a crítica ao nacionalismo e inclusive à esquerda (dada sua falta de isomorfismo entre conteúdo revolucionário e forma revolucionária), quase não foi capaz de oferecer algo quando se tratou das questões de identidade e de heterogeneidade temporal (e aqui, a poesia concreta não estava em condições, ainda com seus critérios modernistas em crise, de incluir o arcaísmo ou as formas folclóricas em retrocesso). No plano da estratégia crítica e cultural, a presença dos concretistas foi fundamental, mas no plano das composições sofreu as conseqüências de compartilhar o espaço com outras formas que eram incompatíveis com seu programa.

Nos anos 1960, a instância modernizadora girou em torno das mudanças tecnológicas com todos os riscos que isso representava: no final de 1968, o po der militar endureceu e os meios deixaram de ser um espaço de intervenção, de bate e negociação cultural. Despojado dos meios (e de seus próprios corpos), o tropicalismo já não teve possibilidades de seguir a estratégia que havia traçado. Ademais, e em um sentido mais geral, o fim de toda possibilidade de mudança política tornava irrisório qualquer projeto cultural vanguardista.

NOTAS

  1. Refiro-me a La Hora de los Hornos, de Fernando Solanas, filme de militância política de circulação clandestina, realizado entre 1966 e 1968.
  2. Embora, no Brasil, o crescimento da rede televisiva, em termos nacionais, tenha ocorrido na década de 1970, o primeiro impacto forte se deu nos grandes centros urbanos como São Paulo e Rio de Janeiro, em meados dos anos 1960, quando a proporção de domicílios com televisão cresceu de 12,44%, em 1960, para 38,4%, em 1970. Tomo os dados do artigo de Esther Hamburger, “Diluindo Fronteiras: A Televisão e as Novelas no Cotidiano”, em Lilia Moritz Schwarcz (org.), História da Vida Privada no Brasil: Contrastes da Intimidade Contemporânea, 1998, vol. 4> pp- 453-454-
  3. Ambas as referências foram extraídas do livro de Fredric Jameson, Los Sesenta, 1996.
  4. Vanguarda e Subdesenvolvimento (Ensaios sobre Arte), 1969, p. 6 (grifo meu).
  5. Predominou nesses anos, sobretudo nos grupos politicamente mais radicais, uma leitura da cultura de um ponto de vista colonial, em que a “consciência nacional” funcionava como núcleo de resistência e de garantia frente à interferência estrangeira. Tal concepção levou a uma consideração maniqueísta que politizou todas as esferas da vida cotidiana em função desse esquema.
  6. Teoria da Poesia Concreta, op. cit., p. 171.
  7. É preciso somar a este grupo Capinam e o poeta Torquato Neto, que compuseram muitas das letras do grupo. Torquato Neto nasceu em Teresina, mas passou sua juventude em Salvador e em São Paulo. Augusto de Campos lhe dedicou o poema “Como é Torquato” em Balanço da Bossa e Outras Bossas, op. cit., pp. 307-310.
  8. As primeiras aparições de Caetano Veloso na televisão foram no programa “Esta Noite se Improvisa” que consistia em um concurso sobre música popular, no qual o participante tinha que lembrar e cantar uma canção a partir de uma palavra qualquer. Caetano, que era então muito jovem, demonstrou que tinha na memória um verdadeiro arquivo de música brasileira e uma capacidade de associação surpreendente.
  9. Sobre este tema, é indispensável consultar, de Antônio Risério, Avant-garde na Bahia, 1995. As memórias de Caetano Veloso, Verdade Tropical, 1997, também são bastante ilustrativas deste período.
  10. Lina Bo Bardi afirmou: “A nossa reação não é uma reação romântica. Nem conservadorismo obtuso, de múmias. Nem anti-modernismo. Nem ‘reação! Se algum resmungador do passado des fraldasse a nossa bandeira para fins da mumificação, nós ficaríamos profundamente ofendidos; se algum amante da cor local e do folclore barato se colocasse ao nosso lado, seríamos obrigados a lhe pedir que nos deixasse só. Somos modernos” (citado em Antônio Risério, 1995, op. cit., p. 116; ver também pp. 118-119).
  11. As salas do Museu de Arte Moderna se localizavam no moderníssimo Teatro Castro Alves, no centro da cidade. Ali foram montadas exposições sobre Degas, Le Corbusier, a Petrobrás e, como já havia ocorrido no masp, uma exposição sobre a cadeira, o objeto que melhor representa as inquietudes de Lina Bo Bardi: design e vida cotidiana, uso de materiais do ambiente e cálculo racional. O Museu de Arte Popular se localizava entre a zona baixa e a zona alta da cidade, porém do lado da costa, e é, ainda hoje, um lugar de difícil acesso (atualmente sedia o Museu de Arte Contemporânea). É possível que na escolha do edifício tenham pesado a necessidade de redistribuir os núcleos urbanos e a possibilidade de trabalhar, em um lugar privilegiado, com a arquitetura co lonial de um modo moderno (para a escada, por exemplo, com um projeto claramente moderno, Bo Bardi utilizou, segundo Antônio Risério, um “sistema de encaixes de carros de bois”).
  12. A história, relatada na “Apresentação” do livro de Risério, 1995, op. cit., também foi incluída em Caetano Veloso, op. cit, p. 60.
  13. Citado em Antônio Risério, 1995, op. cit., p. 14.
  14. Caetano Veloso parece inspirar-se neste curta-metragem quando faz uma adaptação cinematográfica do poema “Organismo”, de Décio Pignatari, para seu filme Cinema Falado (1986).
  15. 0 repertório de Caetano é heterogêneo e surpreende também por sua Iiteralidade. Além dos casos mais conhecidos (como a inclusão de uma frase de Les Mots, de Sartre, em “Alegria, Alegria”), há citações, por exemplo, muito extensas: todo um parágrafo da canção “Terra” (cd Muito, 1978) foi tomado de uma canção de Ary Barroso, assim como “Eu Te Amo” do mesmo disco, extrai versos completos de “Boneca de Piche” (também de Ary Barroso, com Luiz Iglesias); um trecho de “Its a Long Way” (cd Transa, 1972) reproduz outro de uma canção popular, cantada no filme O Cangaceiro, de Lima Barreto (1953); em “Sampa”, também de Muito, as referências à São Paulo cultural dos anos 1960 são inúmeras; o cantor Orlando Silva é homenageado em “Festa [modesta” e em “Onde Andarás” (que musicaliza um poema de Ferreira Gullar) etc. Muitas outras evocações podem ser encontradas nas canções de Caetano, mas as citadas servem como exemplo.
  16. Sobre a colaboração ativa de Augusto de Campos e Décio Pignatari no movimento, pode-se consultar meu trabalho “Augusto de Campos y Caetano Veloso: La Dimensión Verbivocovisual”, Actas (ix Jornadas de Investigación), Buenos Aires, Instituto de Literatura Hispanoamericana, Facultad de Filosofia y Letras – uba, 1993.
  17. Trecho da canção “É Proibido Proibir” reproduzida no lp A Arte de Caetano Veloso. Roda Viva foi uma peça teatral baseada em composições de Chico Buarque apresentada no Teatro Oficina e que teve de ser suspensa devido aos ataques empreendidos por grupos que contestavam sua moralidade. A obra foi dirigida por José Celso Martinez Corrêa que, como veremos, foi fundamental no nascimento do movimento.
  18. Escreve Oiticica em seu texto “Bases Fundamentais para uma Definição do Parangolé”, de novembro de 1964: “A palavra [parangolé] aqui assume o mesmo caráter que para Schwitters, p.ex., assumiu a de Merz e seus derivados (Merz-bau etc), que para ele eram a definição de uma posição experimental específica, fundamental à compreensão teorética e vivencial de toda a sua obra”. Em Hélio Oiticica, 1997, p. 85 (esse livro inclui uma entrevista com Haroldo de Campos).
  19. “The Experimental Exercise of Liberty” Idem, p. 226.
  20. “Arte Ambiental, Arte Pós-moderna, Hélio Oiticica” publicado no Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 26 jun. 1966, e reproduzido em Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília, 1981, e em Acadêmicos e Modernos (Textos Escolhidos 111), 1998, pp. 355-366.
  21. Mário Pedrosa, 1998, op. cit., pp. 356-357.
  22. Em seu texto, Oiticica se refere assim ao Tropicalismo: “(Em Tropicália) invoco Oswald de Andrade […] antes que se converta em uma moda, o que sucedeu após a apresentação de O Rei da Vela” {Hélio Oiticica, op. cit, p. 46). Posteriormente, o artista carioca mudaria de atitude (ver, a propósito dessa mudança, a carta que enviou a Lygia Clark, em 15 de outubro de 1968, em Lygia Clark – Hélio Oiticica: Cartas, 1964-1974), 1996.
  23. Caetano Veloso, op. cit, pp. 306-307. Nesta obra, Oiticica retoma as fotos de seu amigo Cara de Cavalo, um bandido dos morros cariocas assassinado pela polícia. Em sua primeira obra sobre esse personagem, Oiticica colocou uma foto em uma caixa com palavras de ordem, na qual se reconhece o corpo do bandido como um herói. Nessa “bandeira”, Oiticica recorre à iconografia religiosa para converter o herói em mártir popular.
  24. Ver Wally Salomão, Hélio Oiticica: Qual é o Parangolé?, 1996, p. 46. E também o relato de Caetano Veloso, op. cit., p. 308.
  25. No Teatro Oficina, produzia-se um teatro experimental que pesquisava o espaço cênico (transgredia a “quarta parede”) e a relação entre atores e espectadores, geralmente sob a forma de agressão. Pode-se ver uma comparação com o Teatro Arena em Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969” op. cit., pp. 85-89.
  26. No cd Tropicália 25 anos (1993) de Caetano Veloso e Gilberto Gil, o movimento dos anos 1960 é recuperado e revisado a partir de uma visão panorâmica e enumeradora. “Haiti”, composição que abre o disco, recupera o caráter de crítica social do movimento, enquanto “Cinema Novo” é uma homenagem ao cinema brasileiro que precedeu e acompanhou o tropicalismo. A canção “Wait Until Tomorrow”, de Jimi Hendrix, põe em cena o élan vital de alguém que oferendou seu próprio corpo como símbolo desses anos. Duas canções fazem referência à poesia concreta ou se inspiram nela: “Dada” de Gilberto Gil (que cruza concretismo e misticismo pagão) e “Rap Popcreto”, de Caetano Veloso, canção feita com uma única palavra (“Quem?”) e construída com samples de fragmentos de canções da música popular. Neste cruzamento entre vanguarda e música popular, Caetano marca o que o diferenciou do grupo concreto, isto é, uma reafirmação do “eu” ou uma percepção diferente do sujeito poético (a pergunta é retórica e contém em si mesma a resposta: “eu” ou “meu”, lido ao contrário em sua única palavra).
  27. Augusto de Campos, Balanço da Bossa e Outras Bossas, op. cit, p. 13, grifo meu.
  28. Gilberto Mendes é um dos músicos contemporâneos mais importantes do Brasil e participou do grupo Música Nova (realizou inúmeras adaptações de poemas concretos). Brasil Rocha Brito e Júlio Medaglia foram alunos da Escola Livre de Música de Koellreutter (o segundo participou como arranjador de várias composições do segundo disco de Caetano Veloso). O artigo de Brasil Rocha Brito foi publicado na página “Invenção” do Correio Paulistano, o que significava, como diz o próprio Augusto de Campos, ser “divulgado meio clandestinamente” (p. 12).
  29. O jogo entre as fotos ilustra as palavras que João Gilberto havia dito a Augusto de Campos em uma entrevista que foi incluída no disco-manifesto Panis et Circensis: “Que tenho para dizer a Caetano? Diga-lhe que eu o estou olhando”. Em edições posteriores do livro, Augusto de Campos acrescentou o poema “Viva Vaia” (1972), dedicado a Caetano Veloso.
  30. Balanço da Bossa e Outras Bossas, op. cit, p. 63. É preciso levar em conta que, no momento em que fez essas declarações, Caetano ainda não havia gravado nenhum lp próprio, apesar de ser conhecido por algumas interpretações de composições suas. Maria da Graça é nada mais nada menos que Gal Costa, com quem Caetano gravou seu primeiro disco em 1967, Domingo, na linha da bossa-nova.
  31. Idem, pp. 38-39.
  32. Nesse ponto, as homologias atuam em todos os níveis: o estilo cool de João Gilberto minimiza a ênfase que seria característica da poesia romântica, o surgimento da bossa-nova ocorre nos mesmos anos que o da poesia concreta etc. Para além de que essas homologias possam ser consideradas frágeis a partir de um ponto de vista teórico, é preciso considerar que elas também possibilitaram aproximações produtivas, cujos resultados não dependem necessariamente da arbitrariedade das relações.
  33. Cito as palavras de Caetano porque acrescentam algo sobre a difusão do concretismo no início dos anos 1960: “E, aliás, quando fiz ‘Clara! não conhecia nada, quase nada do que vocês faziam. Dedé [esposa de Caetano], sim. Das aulas de Estética do Yulo Brandão no Curso de Dança que ela fazia na Universidade da Bahia” {Balanço da Bossa e Outras Bossas, op. cit, p. 206).
  34. No disco de Caetano Veloso, Araçá Azul (1972), composto depois de seu regresso do exílio, as referências à poesia concreta ou a aspectos relacionados com ela são inumeráveis: a canção “Gilberto Misterioso” é baseada em um fragmento de Sousândrade, poeta redescoberto e reeditado pelos poetas paulistas, e “De Palavra em Palavra” está “inspirada por/dedicada a Augusto de Campos”, baseando-se em um trecho de uma entrevista que o poeta fez com João Gilberto, e incluída em Idem, p. 255.
  35. y^.ldem, p. 53 (grifo meu). E Brasil Rocha Brito assinala, em seu artigo “Bossa-Nova” incluído no mesmo livro: “Assim, as realizações e soluções oferecidas pela bossa-nova são semelhantes, homólogas a outras ocorridas nas artes contemporâneas, ou, pelo menos, enquadradas na mesma conceituação generalizada que elas estabelecem” (p. 27).
  36. /c/era, pp. 98-100. Medaglia chega a apontar também o fato de que “cada uma das três firmas gravadoras [da bossa-nova] possuem, como símbolo comercial, uma simples figura geométrica”.
  37. Idem, p. 61. Em seu artigo “Balanço da Bossa-Nova” (17 dez. 1966), Júlio Medaglia divide a música popular em “cor local” (com frases coloquiais) e “participante” (op. cit, p. 86).
  38. Júlio Medaglia, em “Balanço da Bossa-Nova”, Idem, p. 97.
  39. ldem, pp. 154-155-
  40. “El pulsar casi mudo dei poeta Augusto de Campos” em Augusto de Campos, Poemas, op. cit, p. 101. O compositor e cantor popular brasileiro Lupicínio Rodrigues, nascido em Porto Alegre, em 1914, faleceu em 1974.
  41. Jesus Martín-Barbero faz uma boa descrição crítica do cientificismo da “teoria da informação” em De los Médios a Ias Mediaciones (Comunicación, Cultura y Hegemonia), 1997, pp. 220-224.
  42. Ensaio publicado em Contracomunicação, 1973.
  43. Segundo Caetano, a palavra-chave para definir o tropicalismo é sincretismo, termo que pode ser considerado o reverso de homogeneidade. Cf. Caetano Veloso, op. cit, p. 292.
  44. A segunda edição ampliada de Balanço da Bossa e Outras Bossas é de 1974 e os últimos textos modificam bastante a visão que Augusto de Campos tinha em 1968, ano da primeira edição. No posfácio “Balanço do Balanço” (texto não datado, mas redigido por volta de 1974), Augusto de Campos afirma: “Sou contra a especialização, a compartimentação da cultura. O especialista. Em literatura. Em música popular. Em música erudita. Em música pop. Em folquilore. A invenção, sim, sem hierarquias” {Balanço da Bossa e Outras Bossas, op. cit, p. 347). Além disso, nesse texto, coloca a música popular ao lado de John Cage, enquanto que, nos ensaios do período 1966-68, eram mais freqüentes as vinculações entre a música popular e a linha “césar-franck-debuss-yana” e Stravinski (Idem, pp. 163,164,165), considerada de menor densidade que a da escola vie-nense de música. Parecem haver sido fundamentais nessa mudança de Augusto de Campos um conhecimento mais detalhado da obra de Cage e a experiência dos happenings dos tropicalistas, em que, segundo o poeta, “levaram em conta o que aconteceu na primeira metade do século, de Stravinski e Webern a Stockhausen e Cage, fazendo explodir na faixa do consumo os happenings, os ruídos e os sons eletrônicos e praticando uma poesia de montagens, viva e cheia de humor, poesia-câmara-na-mão, moderníssima” (Idem, p. 265). Em 1972, Rogério Duprat começa a tradução de A Yearfrom Monday, supervisada por Augusto de Campos, que só seria editada em 1985. A presença de Cage é fundamental para o abandono dos postulados modernistas, no final dos anos 1960, e sua presença cresce com o passar dos anos. Veja-se como Augusto de Campos enfoca o conceito de “utilidade”, tão importante nos manifestos dos anos 1950, em seu poema “cage rain”, dedicado ao músico norte-americano: “Uma boa notícia/para os artistas:/A utilidade do inútil”, em Música de Invenção, 1998, p. 125. Escrevi um ensaio sobre a recepção de Cage na poesia concreta, “CoIIage”, Abyssinia, revista de poesia, n. 1, Buenos Aires, Eudeba, 1999.
  45. “Poesia & Media”, em Papéis Colados, 1993, p. 231.
  46. Balanço da Bossa e Outras Bossas, op. cit., p. 161.
  47. Este questionamento da moral burguesa, que adquiria uma grande força quando era encenado nos meios de comunicação, era o componente que nesses momentos predominava na interpretação da antropofagia oswaldiana que, durante os anos posteriores, foi substituída por uma leitura textualista do conceito.
  48. Literatura e Vida Literária, 1985, p. 15.
  49. As duas canções de Caetano Veloso mais populares do período (“Alegria, Alegria” e “Tropicá-lia”) têm como tema o corpo como construção semiótica: na primeira, os deslocamentos corporais definem o sujeito poético mediante a percepção e, na segunda, o corpo se transforma em um monumento que adquire diferentes significados à medida que é descrito/vestido.
  50. Balanço da Bossa e Outras Bossas, op. cit, p. 163.
  51. Em 1978, op. cit, pp. 74-78.
  52. Consideremos a seguinte observação de Benjamin: “o fetichismo que sucumbe ao sex appeal do inorgânico é o nervo vital da moda”. “Fashion”, em The Arcades Project, 1999, P- 79-
  53. Balanço da Bossa e Outras Bossas, op. cit., p. 207 (grifo meu).
  54. Em um duplo movimento, os tropicalistas viram os objetos culturais e artísticos à luz da mercadoria (que, para satisfazer o consumo, deve renovar-se constantemente) e os objetos de consumo, a partir da elaboração artística (que, para satisfazer sua intervenção na atualidade, renova-se constantemente). Consumo e arte: “panis et circensis”, no latim macarrônico que deu título ao disco. A contradição entre obra de arte e mercadoria remonta, pelo menos, ao século xix, mas no tropicalismo adquiriu um significado específico: o da explosão dos meios em uma sociedade periférica e o do avanço da mercadoria sobre os bens culturais.
  55. Theodor Adorno, Teoria Estética, 1971, p. 253. Na canção “Geléia Geral” os objetos são dispostos de tal forma que remetem, simultaneamente, ao museu, a uma vitrine comercial e a um altar religioso. O mais moderno se torna antigo (“formiplac”), o arcaico, midiático (“superpoder de paisano”), e o estrangeiro, nacional (o lp de Sinatra como relíquia brasileira).
  56. “La Moda”, em Cultura Femenina y Otros Ensayos, 1999, p. 38. Eduard Fuchs, citado no “livro das passagens” de Benjamin, aponta três características da moda: sua segregação das classes, a margem de lucro que produz no capitalismo e sua estimulação erótica (1999, op. cit, p. 77).
  57. Seria possível pensar em quatro tipos de corpos para a política dos anos 1960 e 1970: o corpo em rebeldia das manifestações de rua; o corpo clandestino que busca não ter visibilidade; o corpo espetacular que se constrói com o olhar dos outros no espaço dos meios, e o corpo exilado que deve abandonar seu espaço de pertença. Essas quatro tendências se opõem a uma última que, impulsionada pelo autoritarismo do poder dominante, é o corpo desaparecido, suprimido ou torturado. Penso que essa distribuição difere daquela dos anos anteriores e também da que se produziu nos anos 1980, com o retorno generalizado da democracia nos países latino-americanos.
  58. Contracomunicação, op. cit, p. 100.
  59. A Arte no Horizonte do Provável, op. cit, p. 198. E Augusto de Campos, em Balanço da Bossa: “do bom ao mau gosto (mas um mau gosto intencional, crítico, como nas criações da pop art)” (op. cit, p. 162). A visão de Hélio Oitícica se aproximou mais da dos tropicalistas, talvez porque seu desprendimento dos critérios modernistas tenha sido mais acentuado que nos poetas paulistas: “A reação cultural – escreveu Oiticica em 1973 – que tende a estagnar e se tornar ‘oficial’ […] p. ex., a crítica que as idéias de Tropicália geraram ao culto do ‘bom gosto’ (isto é, a descoberta de elementos criativos nas coisas consideradas cafonas, e que a idéia de ‘bom gosto’ seria conservadora) foi transformada em algo reacionário pelos diluidores da mesma [Oiticica se vale aqui da classificação poundiana]: institui-se a ‘cafonice’ estagnatória” (“Brasil Diarréia” Arte Brasileira Hoje, em Hélio Oiticica, op. cit., p. 19).
  60. “Coração Materno” é uma composição de Vicente Celestino, que conta a melodramática e extravagante história de um camponês que mata a mãe por amor a sua mulher. Quando volta para casa com o coração da mãe, a fim de oferecê-lo à amada, o camponês se acidenta e o coração ressuscitado da mãe o consola, apesar do crime que o filho cometeu. Sobre a recepção dessa canção em 1967, quando foi escolhida para o disco Panis et Circensis, Caetano escreveu: “Em 67 Vicente Celestino estava praticamente esquecido e seu estilo – o extremo oposto do que viera dar na bossa-nova – era indefensável” {op. cit., p. 293).
  61. Esta inclinação por certas obras consideradas de mau gosto ou de baixo nível desorientou os críticos formados nos valores modernistas, que só perceberam o componente paródico (e não o mimético). O fato de que Caetano Veloso, em uma gravação de 1999, tenha voltado a gravar “Coração Materno” confirma minha hipótese de que nessas escolhas havia também um componente de afirmação (ver o cd Omaggio a Federico e Giuliettd).
  62. Siegfried Kracauer afirma a propósito do ensaio “A Moda” de Simmel: “a essência da moda reside em sua capacidade para satisfazer a necessidade das pessoas de imitar as demais, assim como sua necessidade de se diferenciar das demais” (“Georg Simmel” em The Mass Ornament (Weimar essays), 1995, p. 246).
  63. Silviano Santiago, “Caetano Veloso enquanto Superastro” em Uma Literatura nos Trópicos, 1978, p. 150.
  64. Ver Gilberto Gil, seleção de textos, notas, estudo biográfico e exercícios, de Fred de Góes e Lauro Góes, 1982, p. 57 n. 82.
  65. A versão visual corresponde a uma transcrição criativa de Augusto de Campos e, desde então, “Batmacumba” tem sido impressa dessa forma.
  66. Segundo uma sugestiva descrição feita por Paulo Franchetti, a colaboração entre Augusto de Campos e Caetano Veloso poderia ser vista nestes termos: “Há quem veja, na escolha da música de Lupicínio [refere-se à utilização de uma melodia deste na adaptação do poema “dias, dias, dias,”], uma intenção crítica de Caetano: ele estaria sugerindo a Augusto algo como a conveniência de uma volta ao corpo, ao ritmo, um jogo com o comum e o costumeiro. Certa ou errada, essa é uma leitura sugestiva do trabalho conjunto de Caetano e Augusto” {Alguns Aspectos da Teoria da Poesia Concreta, 1989, p. 128 n. 4). Essa interpretação, porém, esquece que a citação de Lupicínio Rodrigues implica o sinal de um gosto compartilhado (Augusto é fã de Lupicínio Rodrigues, como se narra detalhadamente em Verdade Tropical) e que esse poema pertence a Poetamenos, reunião de poemas na qual não se pode afirmar que o corporal não apareça. De qualquer forma, tomamos a leitura de Franchetti porque nos parece acertada para o período mais ortodoxo dos concretistas.
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