Leituras complementares

carmen miranda – hermano vianna

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Carmen Miranda
Hermano Vianna
Revista O Carioca, nº. 2, julho/agosto de 1996

Nem sempre o Rio foi uma cidade partida. Até o início deste século, os bairros cariocas misturavam gente de todas as raças e origens sociais. Os palacetes eram vizinhos dos cortiços e havia uma circulação intensa de informações entre os vários mundos culturais. Essa geléia geral foi o fundamento de um dos períodos mais criativos da vida da cidade. As primeiras décadas deste século produziram a “cara” da cidade e quase tudo aquilo que veio a ser considerado, e ainda é considerado, como a essência do estilo de vida carioca. O interessante é ver que isso aconteceu no processo mesmo em que a cidade se dividia.

Depois dos anos 30, o Rio se descobriu partido entre asfalto e morro, entre zona norte e zona sul, entre praia e subúrbio. Parecia que os cariocas sabiam que alguma coisa séria, definitiva, estava para acontecer, que alguma coisa iria se perder para sempre. A invenção do samba era um alerta contra o apartheid social/cultural que podia se instaurar, mas também era a celebração, apesar de tudo que estava por vir (e que os sambista intuiam), da mistura que continuaria dominando a arte da cidade.

O repertório da recém-lançada e excelente caixa de CDs de Carmen Miranda, contendo todas suas gravações – realizadas entre 1935 e 1940 – para a Odeon , pode ser encarado como uma crónica das transformações que sacudiram o Rio daquela época. Carmen atua como a encarnação das conquistas e contradições que nos deram a cultura carioca que temos hoje. Sua procura de uma “autenticidade” sambista beira a obsessão. Carmen canta o morro, afirma ser do samba de morro, de um morro que se afastava cada vez mais do resto do Rio. O samba cantado por Carmen era – ao mesmo tempo – a descrição do processo de criação/exclusão dos morros e a tentativa quase subversiva de trazer o morro para o centro da cultura carioca.

Carmen Miranda era portuguesa de nascimento, mas passou sua infância e adolescência na Lapa e nos arredores da Praça XV, na época exata em que o centro do Rio se ajustava às reformas urbanísticas que expulsavam a gente pobre para a “periferia” e a gente rica para o que viria a ser a Zona Sul. O Rio sempre teve morros, mas a vida no morro não estava associada à forte simbologia das favelas atuais. O morro começou a ser o que é hoje a partir do final dos anos 20, quando muitas favelas tiveram início. A vida e a cultura “do morro” passaram a serem vistas como distintas e distantes da vida na “cidade”.

O samba não foi exatamente criado no morro, e sim em algum recanto das terras baixas entre a Praça Onze e o Estácio. Mas logo o novo ritmo carioca passou a ser chamado de música de morro, até pelos próprios sambistas, vários deles moradores da “cidade”. Em muitos de seus sucessos, Carmen Miranda exaltava a vida nas favelas, como o território da pureza, da simplicidade e da alegria . Em “Essa cabrocha “(de Portelo Juno e Jeová Portela, 1939)””, é descrita a seguinte hesitação de uma favelada pioneira: “Lá da cidade / já mandaram uma proposta / convidando a cabrocha / pra num rádio ir cantar / Abandonar o morro / ela tem pena / pois lá não existe antena / a luz que tem lá é o luar”. Em “Mulato anti-metropolitano” (Laurindo de Almeida, 1939) surge um outro personagem pró-morro: “Sei de um mulato / que não gosta da cidade / diz que isso aqui por baixo / não é para ele não”, pois no morro “o povo é mais igual”. Em “Gente bamba “(Synval Silva, 1937)””, Carmen diz que “no morro se tem alegria de viver.”

Mas nem tudo no morro é uma maravilha. Pelo menos não em todas as canções. A obra de Carmen Miranda é radicalmente polifónica. Não é o ponto de vista coerente de um indivíduo diante do mundo. São muitos pontos de vista contraditórios convivendo num mesmo disco. Carmen chegou mesmo a gravar canções e as canções contra essas canções. Em “Sai da toca Brasil “(Joubert de Carvalho, 1938)””, Carmen elogia a “gente branca e forte” e dá o seguinte conselho: “Brasil, deixa a favela / pois o arranha-céu é o que se recomenda”. A resposta veio rápida em” Quem condena a batucada “(Nelson Petersen, 1938)””: “Quem condena a batucada / dessa gente bronzeada / não é brasileiro.”

Essas polêmicas musicais explicitam as opiniões divergentes da época, sobre os mais variados assuntos, mas principalmente sobre o recém-nascido batuque do samba. Em algumas canções é necessário fazer a defesa da nova música “autenticamente” carioca diante do “preconceito contra o samba de morro” (“Isso não se atura” – “”Assis Valente, 1935) ou daqueles que falam “que o samba do morro não tem cotação” (“Quem condena a batucada”). Mas em outras canções, Carmen afirma que “O morro já foi aclamado / e com um sucesso colossal / E o samba já foi proclamado / Sinfonia nacional”. (“Sambista da Cinelândia “- Custódio “”Mesquita e Mário Lago, 1936)

Apesar da polifonia e das vozes discordantes que aparecem aqui e ali, ao se escutar os cinco CDs que formam a caixa Carmen Miranda é impossível não perceber que há uma voz dominante, aquela que durante as próximas décadas iria se tornar uma espécie de Voz do Brasil, ou Voz do Rio de Janeiro, o que por muito tempo parecia significar a mesma coisa. Quase todas as canções de amor do disco (por exemplo” Triste sambista”, “Meu rádio e meu mulato”, “Moreno batuqueiro” ou “Amor ideal”) são dedicadas a mulatos ou moreninhos “da cor de guiné”. Isso apenas poucos anos depois do lançamento de “Casa-grande e senzala”, o livro de Gilberto Freyre que provocou uma reviravolta no pensamento brasileiro ao transformar a mestiçagem de causa de todos nossos males em símbolo do orgulho nacional.

Além dessa paixão por mestiços, Carmen Miranda também deixa claro o lugar que o samba, a música agora tida como do morro, vai ocupar na definição da brasilidade e do espírito carioca: “Brasil, ó meu Brasil! / Terra boa pra gente morar / Brasil, do meu samba e batuque / e quem é da batucada / no Brasil tem seu lugar”. (“Foi embora pra Europa “- Nelson Petersen, 1938″”) Dois anos depois de gravar essa música, Carmen foi morar definitivamente nos Estados Unidos, casou com um louro norte-americano, e nunca mais cantou para o público brasileiro. Nada disso tira a força desses sambas (e não importa se são realmente do morro). Podemos ouví-los como atalhos para uma utopia morena que o Rio de Janeiro um dia inventou. No samba de nossa eterna Embaixatriz do Samba, podemos sempre viver o “sonho carnavalesco” de uma cidade que nunca se partiu e que um dia afirmou orgulhosa que “o mundo é um batuque”.