Leituras complementares

antimoda

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Antimoda
Gonzalo Aguiar
Extraído de Poesia Concreta Brasileira, Edusp, 2005

I

Ao observar o tropicalismo com os olhos da moda, a complexidade de suas práticas se revela com a ambigüidade e a violência simbólica que são duas de suas características. O tropicalismo foi, entre outras coisas, uma moda, e suas obras e histórias extraem sua força do contato com esta. Mas, correlativamente, também foi um movimento que pôs a moda em tensão com a arte e a cultura. Suas composições musicais extraíram os objetos de seu contexto e os puseram diante do peso da transitoriedade da moda, convertendo-os em “relíquias” (a religião é substituída pela moda como horizonte de sentido da alegoria):

e quem não dança não fala assiste a tudo e se
cala não vê no meio da sala as relíquias do
Brasil: doce mulata malvada um elepê de
Sinatra maracujá mês de abril santo barroco
baiano superpoder de paisano formiplac e
céu de anil

“Geléia Geral”, de Torquato Neto

Por meio da moda, as obras tropicalistas se unem ao tempo: um tempo que está marcado pelo mais atual, pela presença das tecnologias de comunicação na sociedade brasileira dos anos 1960, e por sua linguagem internacional, que põe em crise os arquivos fechados. Segundo Adorno, a moda, em seu “instinto pelo atual e em sua aversão ao provincianismo e a tudo que lhe é subordinado” cum pre o “desejo do artístico de se apropriar do material mais avançado”.

A verdade do tropicalismo está no consumo e, com relação a este, não lhe in teressa distanciar-se e denunciá-lo (o que seria fazer música de protesto), mas sim mergulhar nele. Frente ao cinismo do músico de protesto que deve subme ter-se ao mercado musical, ao mesmo tempo que o rejeita, o cinismo dos tropi calistas é o preço que devem pagar para experimentar com seus próprios cor pos no cenário dos meios de comunicação de massa da sociedade de consumo (seus corpos como encarnação da moda e da mercadoria).

Na segunda metade da década de 1960, a moda não só manteve sua natu reza mercantil, como adotou também, no contexto de uma sociedade repres siva, caráter expressivo e significante. Segundo Georg Simmel, a moda conjuga duas tendências sociais: nivelamento social e diversificação e variedade. Seu uso serve para formar grupos que se distinguem por certos estilemas da moda que, por sua vez, os separam do resto. Essas duas forças de agregação e distin ção dependem dos contextos históricos: no final dos anos 1960, serviram para a construção de uma identidade juvenil contracultural que pôs em destaque, de um modo espetacular, uma diferença. Os jovens não só usavam roupa colorida – rejeitando a tendência de vestir-se de preto ou de cinza – como pintavam o corpo com signos e emblemas grupais como o símbolo da paz. Essa “moda” foi tomada pelos tropicalistas, e seu contraste com o Brasil desses anos tornou as discrepâncias – com o estilo metropolitano e com o periférico – mais eviden tes (é sabido que Caetano, por exemplo, casou-se em um evento hippie em Sal vador). Em um típico gesto cosmopolita, a imitação – que se usa para marcar uma diferença fronteiras adentro – é um gesto dinâmico: ativa discursos, define identidades, produz escândalos.

Nos corpos encarnaram-se as novas formas de poder: reprimir ou liberar, falar ou calar, expandir-se ou contrair-se, reafirmar o prazer ou internalizar as ameaças do terror. Daí que a política à que recorreram as ditaduras desses anos (transformando os modos tradicionais de repressão) fosse o seqüestro e a desaparição dos corpos. Para os tropicalistas, a possibilidade de irromper nos meios consistiu sobretudo em poder exibir o corpo, pondo em destaque, ao mesmo tempo, seu poder. A importância do cabelo, dos trajes, das pinturas no corpo é similar à que ocupa no movimento hippie norte-americano, mas suassignificações sociopolíticas são absolutamente diferentes, já que as condi ções dadas pelos contextos são diversas (um sistema democrático parlamenta rista, no caso norte-americano; uma ditadura militar que se endurece no final da década, no caso brasileiro). A moda, em outra de suas versões, proporcio nava também essa localização.

Mas se o tropicalismo pôde fazer esse uso dinâmico da moda foi porque os materiais que trouxe ao palco eram sua antítese. Os objetos de mau gosto (o formiplac), os despojos do mundo industrial (em suas roupas), os artefatos degradados do mundo cultural (“Coração Materno”, de Vicente Celestino), os testemunhos da ingenuidade provinciana (interpretação do “Hino de Nosso Senhor do Bonfim”) são incluídos junto à atualíssima música elétrica ou “iê-iê-iê” (na qual também não era alheio o mau gosto) e à sofisticação da bossa-nova, da poesia concreta e das citações mais insólitas. Nessa mescla do que se considera alta cultura (“high” ou de elite) e baixa cultura (“low” ou popular), a inovação mais inquietante não consistiu em que os tropicalistas eliminassem as fronteiras, mas sim que se colocassem acima delas e de suas classificações. A idéia de que, em seus gestos e escolhas, utilizavam o mau gosto contra a be leza como bem cultural é verdadeira, mas ainda traz consigo as perspectivas de um olhar modernista, seguro daquilo que é o bom gosto e o alto repertó rio. Esta foi a interpretação dos poetas concretos, que mantiveram um critério único (que abastecia a teoria da informação) para valorar as contribuições do novo movimento. A partir da teoria da informação, interpretaram essa mescla como uma “ampliação do repertório”, da mesma maneira realizada pela pop art: “a cultura popular – afirmou Décio Pignatari – é crítica em relação com a cultura superior e o kitsch é sua vanguarda de choque”. Algo similar ao que defen deu Haroldo de Campos em seu ensaio “Vanguarda e Kitsch” com os conceitos de “informação nova” e “fator crítico”: o circuito do pop como “vingança contra a indústria cultural” que se recupera, por sua vez, utilizando estilemas pop. A visão modernista captava a eficácia da operação, embora o fizesse a partir de uma sensibilidade que não era – ou era apenas em parte – a que os jovens tropicalistas punham em jogo. As escolhas tropicalistas tinham um duplo valor: seu uso, alternadamente e no mesmo objeto, podia ir da paródia à identificação amorosa, da distância e inversão violenta que supõe a paródia à aproximação ar­rebatadora que sugere o amor.

II

Outro dos aspectos da moda que entra em tensão com a arte é que, nela, a imitação não está condenada. A imitação da moda está, de qualquer maneira, camuflada pelas pequenas variações e por seu desejo de distinção. Uma vez que esse elemento imitativo é tratado em termos artísticos, é liberado e pode transformar-se em um elemento dinâmico. A imitação, que em termos textuais é citação, é o modo de relacionar-se com o que o rodeia: o tropicalismo imita não só o estrangeiro, como também o nacional (com o que a acusação de estrangeirismo se torna absurda). Imitação em um extremo e paródia no outro tensionam o arco do tropicalismo. Este duplo valor (imitação e paródia, amor e sarcasmo) manifesta-se na linguagem dos meios, na utilização extremista e complementar da distância espetacular e do contato corporal. Como fazer com que o corpo visto na tela pudesse tocar esse novo sujeito espectador criado pe­los meios de comunicação de massa?
A “estimulação erótica” (Fuchs), que está diretamente relacionada com o ca ráter sensual (visual e tátil) da moda quando se trata de vestimentas, desenvol veu esse duplo valor até fazê-lo despontar. Esta intensa dimensão tátil sugerida pelas roupas feitas com materiais estranhos (como as que usavam Os Mutantes),os cabelos e as plumas e as exibições de partes do corpo, complementa-se com a distância dos brilhos e dos meios eletrônicos. O corpo, ao ser entregue à espetacularização, converte-se em uma extensão da tecnologia, que passa a funcionar como uma prótese. Os tropicalistas – com suas vestimentas hippies e suas guitarras elétricas, com suas fotos, em que a pose e a provocação eram os elementos dominantes – experimentaram em si mesmos a tese de McLuhan de que os meios são uma “extensão do corpo” Nessa extensão, os tropicalistas utili zaram a violência e a agressividade do movimento hippie e da performancepara sensibilizar tatilmente a distância que os meios impunham.