Leituras complementares

atrás do trio elétrico

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Atrás do Trio Elétrico
Antonio Risério
Extraído de Carnaval Ijexá, Editora Corrupio, 1981

Tempos atrás, em entrevista a uma luxuosa publicação underground, a revista Bondinho, Caetano Veloso, com sua habitual fluência discursiva, disse coisas interessantes sobre o carnaval, principalmente o carnaval baiano. Depois de apontar a existência de uma estreita relação formal entre a estética tropicalista e o carnaval da Bahia, ele disse: “o problema do carnaval é um problema estético fundamental da criatividade brasileira.”. Em especial, o carnaval baiano é visto aí como “um exemplo de solução estética, de expressão do povo brasileiro, um exemplo de saúde criativa”. Particularizando sua análise, Caetano vai ver, no trio elétrico, “uma solução estética que o povo de Salvador encontrou pra continuar se manifestando ativamente”. Ok. E pensar o trio elétrico desta perspectiva geral nos levará a uma conclusão inevitável: o trio representa, às maravilhas, esta dinâmica disposição para um sincretismo cultural sem inibições nostálgicas, que tanto encontramos no Brasil, da poesia de Gregório de Matos ao chamado candomblé-de-caboclo.

Pra começo de conversa, o trio elétrico foi criado graças ao estímulo de um clube carnavalesco pernambucano, o Vassourinhas. Logo, a base é o frevo do Recife, em si mesmo uma criação cultural sincrética. Embora Ruy Duarte declare não haver nenhuma participação negroafricana no nascimento do frevo, sua afirmação é obviamente negada pelos fatos. O frevo, enquanto gênero musical, é criação brasileira, mas repousa na tradição européia. Ele foi criado por músicos mestiços da classe média pobre do Recife, cuja formação musical se processou entre bandas marciais e fanfarras populares, vale dizer, entre marchas e dobrados, basicamente. Acontece ainda que o frevo não é somente música, mas também o passo, uma dança de firulas e filigranas, show de virtuosismo corporal. E esta dança tem sua origem na capoeira que os escravos africanos levaram até Pernambuco. Esta curiosa associação entre músicos e capoeiristas data do século 19. Como se sabe, as bandas militares pernambucanas, como as do Quarto e a do Espanha, eram precedidas, em suas passeatas pelas ruas do Recife, por grupos de capoeiristas que, com seus golpes, facas e cacetes de quiri, iam abrindo o caminho em ágeis coreografias.

Pensemos um pouco na capoeira, antes de pensarmos em sua interação com a música. A capoeira é uma luta, um jogo de destreza corporal, cujas raízes remontam a Angola. Uma luta que tem todo o aspecto de uma dança. E sempre vinculada à música. Quando um círculo de pessoas desenha uma roda de capoeira, delimitando a área do jogo, soam pandeiros e berimbaus. Música rítmica, percussiva, determinando o movimento dos capoeiristas. É assim que se desenvolve a luta, uma luta malestrosa, cheia de chinfra, jogo de manha e malícia, evoluindo entre avanços e negaças, e tendo, como elemento principal, os pés, num combate livre, à distância – os corpos não se atracam, como no judô, e a função das mãos é basicamente a de dar apoio para o impulso do corpo, além de, eventualmente, servirem para distrair ou desnortear o adversário. Luta, jogo, arte. A estetização total da capoeira, no passo do frevo pernambucano, teria sido uma sublimação da luta, dizem os especialistas, tendo em vista a forte repressão oficial desencadeada contra os capoeiristas, que volta e meia estouravam algum comerciante português residente trapaceiro no Recife.

Pois bem. Capoeiristas e músicos entraram em contato íntimo no Recife. Estabeleceram um diálogo de formas de tal modo interativo que querer saber se o que veio primeiro foi o passo ou a música é mais difícil do que matar a velha charada do ovo e da galinha. De um lado, a metaleira incendiando; de outro, músculos a mais de mil. Quantas vezes uma improvisação ou uma composição musical não terá sido inspirada ou mesmo extraída na ou da figuração de um capoeirista? Em que medida ritmo e melodia não sofreram o influxo direto das seqüências de aús, meia-luas, rasteiras e rabos-de-arraia? Do mesmo modo, o passo do frevo, com seus movimentos enraizados ao repertório de golpes da capoeira angolana. Não é difícil imaginar um capoeirista deixando seus golpes seguirem à mercê das sugestões musicais, ou passos brotarem a partir de rápidos e sinuosos caminhos melódicos.

“Sucedeu, assim, um trabalho recíproco de ajuda, de colaboração, que esteve longe de ser feito premeditadamente. Tudo de palpite, de improviso, para pegar ou não, e pegando”, como bem disse Valdemar de Oliveira. Ocorreu, em suma, um encontro semiótico de linguagens, estruturas, formas. Dessa trama, nasceu o frevo. Lenta gestação entre artistas populares. E não há lugar, aqui, para se falar em “geração espontânea”, como gostam de fazer alguns especialistas no assunto. Para usar a velha metáfora marxista, o frevo não foi um raio caído de um céu azul. A tese da “geração espontânea” é ainda mais improvável em sociologia do que em biologia. O que os experts querem dizer, com o clichê populista, é que eles não conseguiram localizar a certidão de nascimento do frevo, para registrá-la devidamente no cartório da cultura.

Recriação de dobrado e da capoeira resultando em inédita manifestação estética e cultural, o frevo ganhou sua forma definida, em termos de música e dança, já na primeira década do século 20. Um processo relativamente rápido, pode-se dizer, já que seus momentos iniciais são contemporâneos da retórica inflamada de Castro Alves e das teses abolicionistas de Joaquim Nabuco, ambos, Alves e Nabuco, vivendo no Recife, nesta época. E já na década de 40 o frevo chegaria na Bahia, levado pelo Vassourinhas. Se, em sua passagem pelo Rio de Janeiro, o Vassourinhas não obteve maior repercussão pública, ou sequer mobilizou a comunidade artístico-musical carioca, nem mesmo com sua orquestra executando o hoje famoso frevo do clube, na Bahia a coisa foi diferente. Dodô e Osmar – “dois baianos sem compromisso” – ficaram irresistivelmente fascinados, resolvendo trabalhar em cima do lance, Criaram, então, o trio elétrico, tocando em cima de um velho ford, a chamada “fobica”, em desfile pelas ruas de Salvador, durante o carnaval. Com isso, e a partir daí, o frevo passaria por uma grande transformação, ganhando novo sotaque: o “frevo baiano”.

Dodô e Osmar não fizeram simplesmente uma cópia ou uma contrafação do Vassourinhas. Pelo contrário, eletrificando o frevo pernambucano (com um trio básico substituindo a orquestra, e instrumentos de corda em vez de naipes de metais), foram fundo, criando algo absolutamente original na arte brasileira. E nada mais justo que tenha surgido o verbo “trieletrizar” na língua brasileira. A eletrificação do frevo é um dos mais instigantes capítulos da história da música popular brasileira, pra desespero dos tinhorões da vida (a eles, um aviso: barco encalhado não ganha frete). Sem ter conhecimento da guitarra elétrica, então já existente nos EUA, mas inexistente no Brasil, os baianos como que inventaram pela segunda vez este instrumento, aqui batizado de “pau elétrico”, que evoluiria para a chamada “guitarra baiana”, de som próprio, característico, diverso do das guitarras norte-americanas (quem quiser comparar, ouça as faixas dos discos de Moraes Moreira, onde Toni Costa e Aroldinho Macedo tocam, lado a lado, uma guitarra gibson e uma “guitarra baiana”, respectivamente). A decisão de tocar num carro passeando pelas ruas gerou, por sua vez, um novo modo de brincar carnaval. O passo original do frevo pernambucano não vingou na Bahia – baiano não dança, pula atrás do trio elétrico, em movimentos simples e livres. Da fobica à moderna “caetanave” (nome do veículo de um dos trios baianos, em homenagem a Caetano Veloso), o trio se tornou um espalhafatoso veículo sonoro-visual, cheio de luzes e amplificadores, alguns até mesmo dotados de luminosas plataformas giratórias. Atrás do trio, instaurou-se uma espécie de zona liberada, território livre onde todas as distinções vão por água abaixo, principalmente a social (a impossibilidade de manter a hierarquia social em tal espaço vai levando a uma crescente privatização de trios – blocos carnavalescos de pessoas economicamente privilegiadas contratam pequenos e péssimos trios para tocar dentro do bloco, na área balizada e protegida por cordões; além de social e racialmente discriminatórios, esses trios são esteticamente prejudiciais ao carnaval baiano, não só pela baixa qualidade musical, como pela forma intoleravelmente deselegante com que se comportam em relação aos afoxés, sufocando o som dos atabaques).

A evolução do frevo baiano não parou aí e nada, no momento, indica estagnação. Com a entrada em cena da nova geração trielétrica do Dodó & Osmar – o baterista Ari Dias e os irmãos Betinho, André e Aroldinho Macedo, todos sob o comando desse músico espetacular que é Armandinho Macedo, integrante do conjunto A Cor do Som –,mais uma virada musical ocorreria. Além das variadas formas híbridas que foram pintando, incluindo o frevo-rock, Armandinho, em ousados e belos solos trielétricos, partiu para o mais franco experimentalismo eletrônico, em pleno carnaval, tirando sons de spatial ou acid rock, provavelmente sob a influência de Jimmi Hendrix e conjuntos tipo Pink Floyd (curiosa era a reação popular àqueles acordes prolongados e distorcidos; havia gritos, pulos, correrias desordenadas, improvisos coreográficos). Com a aparição do trio dos Novos Baianos, Pepeu Gomes na guitarra, a pauleira do rock comeu solta, com Gilberto Gil celebrando a rolling-stonização do trio elétrico (Caetano, tempos antes, num de seus shows, cantara “Let it Bleed”, dos Stones, com uma roupagem tipicamente carnavalesca). Os Novos Baianos, de resto, se responsabilizaram por mais uma cartada: a introdução do sintetizador eletrônico no trio, tocado pelo excelente tecladista Luciano Alves.

Nascendo do dobrado e da capoeira, o frevo, portanto, acabou incorporando o rock e o sintetizador eletrônico. Diante desse panorama, não há como não pensar sobre o quanto é desnorteante o modo pelo qual as coisas podem acontecer nesse país, pelos caminhos da absorção cultural criativa. O trio justifica perfeitamente a fórmula que o filósofo alemão Max Bense encontrou para caracterizar a inteligência brasileira. Segundo Bense, somos os felizes proprietários tropicais de uma “consciência espermática” – consciência “predisposta e dirigida para aproximações contatos penetrações”, cujas criações se direcionam exatamente para uma história positiva e geradora, jamais se deixando prender à inércia da “história-recordação”. E o trio elétrico tipifica, às maravilhas, esta adequação criativa ao presente, em leque aberto para o futuro.

Pois bem: depois de eletrizar o frevo e incorporar o rock, o trio elétrico já se encontra em nova viagem musical, incorporando o reggae e eletrizando o ijexá. A bem da verdade, a música popular brasileira, em sua representação baiana, sofreu, na década de 70, um influxo triplo. Em termos tecnológicos estritos, foi da maior importância a disseminação do ovation, espécie de reciclagem do design do alaúde trovadoresco em tempos industriais. E este violão-guitarra elétrico de feitio medieval caiu bem demais, maravilhando os músicos brasileiros. No terreno propriamente musical, a introdução do ovation ocorreu num contexto em que assistíamos à projeção do reggae jamaicano e à “reafricanização” do carnaval, com a proliferação de novos afoxés e blocos afro e o conseqüente reflorescimento de uma musicalidade essencialmente afrobaiana. Importante notar, ainda, que todo mundo percebeu, de imediato, o parentesco estrutural, rítmico, existente entre o reggae e a música dos afoxés. Caetano, por exemplo, vindo de uma filtragem sutil do som levemente suingado da Jamaica, acabaria, depois de passar por “Beleza Pura”, desaguando nesta espécie de afro-reggae ou reggae-ijexá, que é “Sim/não”, parceria com o percussionista Bolão. Do mesmo modo, Chico Evangelista encontraria um caminho para o seu estilo percussivo de tocar violão, trazendo, para os fios de nylon do ovation, toques de reggae e afoxé. Lance que seria explicitado na música “Rastapé” (Chico-Jorge Alfredo-Risério): “RASTApé… no passo dessa dança, barra mansa, de AFOXÉ” (devendo-se ver, em “rastapé”, palavra-montagem trocadilhesca, a expressão “rasta”, forma abreviada de “rastafari”, grupo negro jamaicano ao qual pertencia Bob Marley).

Também os compositores dos novos afoxés e blocos afro sentiram esse nexo existente entre o reggae e o ijexá, para além do fato de reconhecerem, nos crioulos jamaicanos à la Bob Marley e Peter Tosh, com suas tranças enormes e seus não menores morrões de maconha, as imagens vivas de emergência geral de uma nova negritude. É assim que vamos encontrar uma composição como “Reunião da Negrada”, de Alírio, onde a crioulada é vista dançando reggae, numa noite de sexta-feira, na quadra de ensaio do afoxé Olodum. Mais explicitamente ainda, a nova onda artística jamaicana vai repercutir na composição “Linda Jamaica”, de Juracy de Jó, do bloco afro Malê Debalê, em cujo refrão ouvimos: “canta reggae, meu povo:/ ê ê que linda jamaica/ que linda jamaica/ que linda jamaica”. Nos bairros da periferia, do Curuzu a Itapuã, a soul music cedeu lugar ao reggae. E várias vezes vi, em tais festas e bailes, a moçada dançar ijexá ao som black-jamaicano de Bob Marley e similares. De outra parte, penso que o reggae teve seu papel na aproximação entre as estrelas da música popular e o som dos afoxés. Me lembro mesmo de Jorge Alfredo e Chico Evangelista cantando: “Bahia – Jamaica/ um ponto de encontro/ entre eu e você”. E é claro que o trio elétrico, já tocando reggae no carnaval, não passaria ao largo do ijexá.

Foi Moraes Moreira o responsável pela introdução do ijexá no trio elétrico, com a música “Assim Pintou Moçambique”(Moraes-Risério). O que Moraes fez, em “Moçambique”, foi descobrir um caminho rítmico, uma batida que, estilizando o ijexá, pôde transportá-lo para as cordas do ovation. E ele tinha perfeita consciência da novidade do lance, muito bem esclarecida, aliás, por Caetano Veloso: “Esse toque de violão de Moraes Moreira, de ijexá. O modo como ele estilizou o ijexá pro violão e fez essas composições, que agora o Armandinho está fazendo com “Zanzibar”, eu acho isso um acontecimento importante na transa de música popular no Brasil. Tão importante quanto as experimentações de Arrigo Barnabé ou a soltura existencial de Ângela RoRo, porque tem vários canais em que a coisa anda. A coisa não anda linearmente. Eu me impressiono muito, eu adoro essas coisas, o jeito de Moreira puxar doxé-cum-xé, doxé-cum-xé. Ele faz lindo, aquilo é lindo… quando ele toca essas músicas, ‘Moçambique’no ano passado aqui, quando ele começou a fazer esse tipo de ritmo no violão, eu disse: ‘porra, foi descoberto todo um continente’, entendeu?, que é óbvio, mas é o ovo de Colombo. Sempre o importante é o óbvio, né?”

Enfim, o som dos afoxés chegou em cima do trio. E poucas coisas foram tão bonitas, no carnaval da Bahia, quanto ver a multidão colorida, na Praça Castro Alves, dançando ijexá ao som da música “Afoxé do Garcia”(Pepeu-Charles-Camafeu), tocada pelo trio dos Novos Baianos. E quando me lembro que a capoeira de Angola está lá, nas origens primeiras do frevo, não posso deixar de sorrir ao ver, cerca de um século depois, já em pleno reinado dos trios elétricos, a projeção de uma forma cultural de extração igualmente negroafricana. Como bem disse Caetano, a coisa não anda linearmente: da capoeira ao sintetizador, do sintetizador ao ijexá. Interessante, ainda, notar que o Afoxé Filhos de Gandhi e o Trio Elétrico Dodô & Osmar nasceram, ambos, no mesmo ano – 1949. Durante 30 anos, portanto, eles se cruzaram pelas ruas de Salvador, nos dias de carnaval, mas percorrendo caminhos paralelos, sem que nada, nada mesmo, sugerisse a menor possibilidade de uma convergência. E isso apesar deles serem, exatamente, as duas grandes criações originais do carnaval da Bahia. Foi só em 1979, a partir de “Assim Pintou Moçambique”, que o encontro se deu. Ano seguinte, carnaval de 1980, pudemos ver, finalmente, o afoxé trieletrizado pelo Dodô & Osmar, com Moraes Moreira vestido de badauê em cima do trio (embaixo, Caetano idem, um moço lindo, como se viu), enquanto a moçada do Badauê, resguardando atabaques e ressoando caxixis, dançava ijexá não exatamente atrás, mas, muito justamente, em torno do trio – afroelétrico.