Leituras complementares

poetas na selva selvagem

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Poetas na Selva Selvagem
Gonzalo Aguiar
Extraído de Poesia Concreta Brasileira, Edusp, 2005

Na triangulação entre modernismo, novas práticas vanguardistas e meios de comunicação de massa, os critérios modernistas do programa concreto chega ram à sua própria dissolução. O olhar evolutivo continuou funcionando como esquema interpretativo, mas agora já não em torno do eixo da “desaparição elo-cutória do eu” nem do fim da era do verso, nem de nenhum outro conceito deri vado da autonomia do poema. A homogeneidade, na operação pop dos Popcre-tos ou nas Galáxias, de Haroldo de Campos, havia sido questionada a partir da incorporação de novos materiais, mas o que o tropicalismo punha em dúvida não era a passagem entre os repertórios, e sim o fato de que estes pudessem manter suas distinções. A auto-suficiência dos critérios modernistas enfren tava uma contrariedade insolúvel quando ingressava em um repertório –como sucedia nas canções do tropicalismo – junto aos nomes de Roberto Carlos e Gonçalves Dias. Os meios de comunicação de massa incorporavam estilemas das vanguardas, sem que isso afetasse sua forma ou constituísse um elemento não-conciliador. Nesse aspecto, o tropicalismo significou a consolidação da poe sia concreta como parte do repertório da música de massa e da cultura letrada, mas também marcou o início de sua desintegração como movimento orgânico (fato que se comprova, ademais, na produção poética desses anos), porque o tropicalismo foi, entre outras coisas, um movimento de crítica paródica e, com-plementarmente, o sinal de que a cultura de massa desestabilizava tanto as cul turas populares como as culturas de elite ou de alto repertório.

Um bom exemplo disso é a canção “Batmacumba” de Caetano Veloso e Gil berto Gil, incluída em Tropicália ou Panis et Circensis:
batmacumbaieiê batmacumbaobá
batmacumbaieiê batmacumbao
batmacumbaieiê batmacumba
batmacumbaieiê batmacum
batmacumbaieiê batman
batmacumbaieiê bat
batmacumbaieiê ba
batmacumbaieiê
batmacumbaie
batmacumba
batmacum
batman
bat
ba
bat
batman
batmacum
batmacumba
batmacumbaie
batmacumbaieiê
batmacumbaieiê ba
batmacumbaieiê bat
batmacumbaieiê batman
batmacumbaieiê batmacum
batmacumbaieiê batmacumba
batmacumbaieiê batmacumbao
batmacumbaieiê batmacumbaobá

A mistura sincrética de “Batman”, “ieiê” e “macumba” (o Brasil como “ma cumba para turistas”, segundo Oswald) resume-se em uma espécie de grito tri bal (“ba”) que pode ser interpretado como “um reduto ‘ba’, que guarda o nome africano do pai-de-santo do ritual do candomblé”, ou uma das onomatopéias usadas nas canções de rock, cujo sentido reside, sobretudo, em expressar uma sensação corporal, de canto e movimento físico (uma das palavras formadas é “bat” pronunciada “bate”, que significa bater no sentido de agredir, mas também no sentido de tocar um tambor ou um instrumento musical de percussão). Se não fosse pela musicalização percussiva popular e pelo repertório do mass me dia e religioso a que se refere, “Batmacumba” poderia ser um poema concreto. Mas não o é: a letra da canção recupera a espacialidade concreta como mais uma relíquia, em um clima festivo que a desvincula de toda eficácia programática.

Se a poesia concreta pôde oferecer toda uma série de técnicas na manipula ção de imagens, não podia fazê-lo com relação a um corpo que havia excluído, tanto sob formas subjetivas como de referência ou de performance corporal.

E se pôde acompanhar – e até detectar com mais perspicácia que outros – a crítica ao nacionalismo e inclusive à esquerda (dada sua falta de isomorfismo entre conteúdo revolucionário e forma revolucionária), quase não foi capaz de oferecer algo quando se tratou das questões de identidade e de heterogeneidade temporal (e aqui, a poesia concreta não estava em condições, ainda com seus critérios modernistas em crise, de incluir o arcaísmo ou as formas folclóricas em retrocesso). No plano da estratégia crítica e cultural, a presença dos concre-tistas foi fundamental, mas no plano das composições sofreu as conseqüências de compartilhar o espaço com outras formas que eram incompatíveis com seu programa.

Nos anos 1960, a instância modernizadora girou em torno das mudanças tecnológicas com todos os riscos que isso representava: no final de 1968, o po der militar endureceu e os meios deixaram de ser um espaço de intervenção, de bate e negociação cultural. Despojado dos meios (e de seus próprios corpos), o tropicalismo já não teve possibilidades de seguir a estratégia que havia traçado. Ademais, e em um sentido mais geral, o fim de toda possibilidade de mudança política tornava irrisório qualquer projeto cultural vanguardista.