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Tropicália, Heranças & Herdeiros
Antonio Risério

Para lembrar Memos de Augusto de Campos - poema onde os cortes e a variação dos tipos das letras como que estilizam o jogo labiríntico da memória -, podemos  dizer que a Tropicália foi uma espécie de “instante-luz” na história da música popular brasileira. Não de uma luz clara e firme como a de João Gilberto.
Mas um “instante-luz” feito de muitas luzes, luzes caóticas e coloridas, plurifaiscando em torno do cerne daquele pensamento, que se articulou desenhando uma encruzilhada para a convergência de Oswald de Andrade e do supracitado João.

E a Tropicália irrompeu projetando o óbvio uma estética sincrética para um país sincrético, onde qualquer pretensão de “pureza” cultural nunca foi mais do que uma pobre e empobrecedora fantasia alienada, estelarmente distante do movimento real de nossas vidas. Em termos conjunturais, no entanto, aquele “óbvio” foi explosivo. Revolucionário. Uma espécie de anamnese anárquica, “brutalista” e agressiva
da cultura brasileira. Naquele momento - à exceção de  Augusto de Campos e uns poucos mais­,
a produção poético-musical brasileira era encarada pelas lentes distorcidas de um maniqueísmo ancorado na ignorância. De um lado, ficava o “bem”: a música “nacional”, “autêntica”, multiplicando protestos agrários, de feitio “nordestino”. De outro, o “mal”: o rock, as baladas, as guitarras elétricas, o “iê-iê-iê” urbano da então chamada Jovem Guarda. Tratava-se, então, de estabelecer um cordon sanitaire entre uma coisa e outra. Mas veio a Tropicália e - mobilizando simultaneamente a nossa tradição e a moderna música internacional, em função da leitura do presente brasileiro - denotou esse horizonte baixo e fechado.

Ao dizer a que veio, nesta sua investida rápida e fulgurante (1967-1968), a Tropicália teve que explicitar, ainda que fragmentariamente, a sua visão de nosso passado musical. E, aqui, duas coisas vieram à frente. De uma parte, o então chamado “grupo baiano” sublinhava que a Bossa Nova nascera ao estabelecer um diálogo formal criativo entre a linguagem do samba e uma linguagem musical internacional contemporânea o jazz. De outra, Caetano e companheiros, na pauta do poema oswaldiano, tratavam os seus antecessores com amor e humor.

Bem vistas as coisas, o “nacionalismo” não tinha onde pôr os pés. Por um motivo simples: a música
não nasceu no Brasil. Na verdade, a nossa produção artística nasce justamente da imersão de linguagens extrabrasílicas em nossa circunstância ecossocial. É o que vemos no barroco tropical de Gregório de Matos, por exemplo. A sátira mestiça do Boca do Inferno foi um produto da dialética entre uma estética internacional - o barroco, nucleado nas penínsulas ibérica e itálica - e a nossa realidade tropical sob domínio lusitano, configurando-se, naquela época, como um novo mundo antropológico.

Veja-se, agora, o caso do samba. O ritmo e a dança que formariam o samba-de-roda do Recôncavo Baiano vieram com os bantos. Kasadi wa Mukuma reconheceu a sua origem angolana. E o fato da música negra ter cruzado o Atlântico foi um acontecimento de funda conseqüência cultural. Ao se encontrarem em nossos trópicos, formas musicais africanas e formas musicais européias geraram um produto novo, original,
em relação às suas matrizes. E da mestiçagem de padrões rítmicos da África com modelos harmônicos-melódicos da Europa foi se desenhando, com o tempo, o espaço musical em que um dia viria a nascer
um poeta-compositor como Caymmi.

Além, disso, como disse, os tropicalistas trataram seus antecessores com amor e humor. A Tropicália desmente uma lenda muito difundida entre professores universitários e críticos de literatura: a de que
as gerações artísticas mais novas entram em cena negando, necessariamente, a geração anterior. Sim - porque a invenção tropicalista, além de se proclamar filha de João Gilberto, jamais desprezou ou hostilizou a tradição musical popular brasileira. Muito pelo contrário. A negação ocorreu no interior de uma mesma geração, nos contrastes e atritos entre o grupo “baiano” e a esquerda universitária de formação “cepetista”. Entende-se. Centrado na vida urbano-industrial, o próprio projeto tropicalista, além de derrubar bloqueios “esquerdofrênicos”, provocando reações previsíveis, era em si mesmo, por sua disposição ambiciosa, abarcando os extremos da sofisticação e da vulgaridade, algo ilegível para um agrupamento intelectualmente midcult, que erigiria, em “hino revolucionário” uma valsinha kitsch de um compositor apenas sofrível.

Se tratou bem os seus antecessores, a Tropicália, salvo desonrosas exceções, foi igualmente muito bem tratada pelas gerações pós-tropicalistas. Na verdade, foi possível sentir o influxo e os efeitos do tropicalismo, no ambiente musical brasileiro, já mesmo no período em que Caetano e Gil se encontravam no exílio londrino. Assistimos, ali, ao fim da estigmatização absurda da guitarra elétrica e da prevenção contra a estetização das cenas e cenários urbanos. Enfim, houve uma espécie de liberação geral. Uma rejeição de balizas elaboradas para promover qualquer tipo de demarcação das terras em que a música popular brasileira deveria abrir as suas roças e estender as suas tendas.

Quase que fatalmente, veio também, nessa época, a diluição. A apropriação superficial de estilemas da textualidade tropicalista, em vez da assimilação da informação que deu sentido e substância ao movimento. E assim tivemos, o subtropicalismo aguado de mustangues cor de sangue, tambores da paz, sons livres, américas do sul, lixos ocidentais. Mas veio também a contracultura tristetropical, o “desbunde” – e, nessa maré psicossocial de cintilações canábico-lisérgicas, um disco como Ferro na Boneca, do conjunto Novos Baianos. As coisas haviam, de fato mudado. E foi por isso mesmo que um rockeiro que vinha correndo
por fora, Raul Seixas, pôde encontrar uma ecologia estético-cultural propícia ao florescimento de suas “pirações”, como então se dizia.

Em seguida, a face mais experimental da Tropicália repercutiria, com ênfase, em criações de Walter Franco. Walter Franco avançou sob a luz dos elementos mais radicais que foram mobilizados pela Tropicália: a poesia concreta e a vanguarda musical eletrônica brasileira, formada sob signos de Boulez
e Stockhausen. Refiro-me, é claro, ao Walter de Cabeça, Me Deixe Mudo, Iara. Adiante, topamos com
as ousadias brutais e afiadas do Arrigo Barnabé de Clara Crocodilo, trabalho que o seu caminho franqueado, entre outras coisas e mais imediatamente, pelo Araçá Azul de Caetano e pelo disco da mosca, de Walter. Por fim, ainda em vinculação com o arco aberto pelo tropicalismo, chegamos à geração
do multimídia Arnaldo Antunes, do mangue-beat eco-eletrônico Chico Science, das fusões e confusões promovidas pelo talento incomum de Carlinhos Brown. São, todos, descendentes da Tropicália. Não só
da Tropicália, obviamente. Mas o fato é que se pode reconhecer, no corpo da poética de cada um deles,
as tatuagens indeléveis do tropicalismo.

De um modo bastante genérico, podemos dizer que a Topicália significou para a música popular brasileira, um momento de ampliação de horizontes e de liberdade formal. De incorporação crítico criativa
das informações internacionais. De sincretismo carnavalesco entre essas informações internacionais
e gêneros tradicionais da música brasileira, como o baião. De livre circulação entre os pólos da high culture, da cultura popular e da cultura de massa. E é pelos caminhos e descaminhos desses campos de fronteiras indecididas que se move a sua descendência - e que se inconclui o seu legado.

Exclusivo para o site Tropicália
 
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