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Tropicalismo: Intervenção e Inclusão
Luiz Tatit

A influência do tropicalismo na canção brasileira pode ser avaliada sob dois ângulos igualmente importantes no quadro geral de nossa cultura artística. O primeiro considera o tropicalismo como um ato de intervenção brusca – e até certo ponto inesperada – num momento crucial de ebulição da música popular no Brasil.
O segundo ângulo examina o movimento como um gesto de inclusão que se tornou perene no âmbito
da canção e que tem sua contrapartida no gesto de triagem introduzido pela bossa nova. Vamos a eles.

Tropicalismo como intervenção

Em 1967, toda a música brasileira de expressão cabia num único canal de televisão. Todas as facções,
da MPB mais engajada ao iê-iê-iê mais alienado (como se dizia na época), passando pelo samba de raiz
do jovem Chico Buarque, pela velha guarda de Elizeth Cardoso, pela farta musicalidade de Elis Regina
e Wilson Simonal, todas tinham sua sede na TV Record. O Estado brasileiro, sob a custódia dos militares, caminhava para a mais férrea ditadura de sua história com a assinatura do A.I. 5 no ano seguinte.
O movimento estudantil atingia o seu apogeu no contrafluxo das decisões oficiais. Para enfrentar o discurso tirânico dos governantes, quase toda a classe intelectual e artística do país tinha de adotar uma postura
de esquerda: esquerda radical, esquerda moderada ou esquerda “festiva”, mas sempre esquerda.
Era difícil manter uma atividade intelectual ou artística que, depois de algum tempo, não fosse enquadrada ideologicamente como manifestação de esquerda (tendendo ao “comunismo”) ou de direita (tendendo
ao “imperialismo” norte-americano). O maniqueísmo era então a única forma de pensamento devidamente autorizada por ambos os lados.

Empresa tipicamente capitalista, a TV Record mantinha-se aberta a todas as tendências da época desde que os artistas representantes assegurassem um nível aceitável de audiência. Formaram-se então,
por afinidade ideológica, diversos agrupamentos de artistas que se responsabilizavam, cada um, por seu programa semanal e que disputavam, entre si, os índices de acolhimento popular. Para acirrar ainda mais
a concorrência e consolidar a música popular como o produto que ganhava a preferência do público consumidor, o velho canal 7 passou a organizar, anualmente, os célebres festivais da música popular brasileira que contribuíram ainda mais para o confronto das tendências e para a revelação de novos líderes e representantes.

É dessa época a constituição da sigla MPB à imagem das forças políticas (MDB, por exemplo) que estavam em cena fora da televisão. Oriunda do período da bossa nova, a então moderna música popular brasileira foi trocando paulatinamente seu projeto estético pelo engajamento político. Tom Jobim e João Gilberto,
os principais artífices do movimento bossa-nova, haviam fixado residência nos Estados Unidos e mal tomavam conhecimento da nova realidade brasileira e muito menos das trajetórias assumidas por seus antigos companheiros de trabalho. Nara Leão, Carlos Lyra, Sérgio Ricardo e tantos outros que ficaram
no Brasil já não falavam mais do amor do sorriso e da flor e sim das condições subdesenvolvidas do povo brasileiro, de sua gente do campo, do morro e das favelas, fazendo alusão especialmente às mudanças situadas num “dia que virá”.

A nova geração de “continuadores da bossa nova” já pegaram o barco da música engajada em movimento e, por contingência histórica, acabaram se tornando representantes maiores da intensa luta estudantil travada fora da televisão. Quando participavam dos festivais da Record, os compositores como Edu Lobo, Dori Caymmi, Gilberto Gil, Marcos Valle, Chico Buarque, Caetano Veloso e Geraldo Vandré representavam a voz da juventude que não tolerava a ditadura militar e que queria o país longe da influência capitalista.
Não há dúvida que a empresa de Paulo Machado de Carvalho tirava proveito financeiro das investidas
dos talentosos compositores sobretudo em época de disputa nos festivais. Entretanto, a verdadeira mina
de ouro que, desde 1965, assegurava a liderança de audiência da Record, era o programa Jovem Guarda, comandado por Roberto Carlos, que, desprovido de ideologia doutrinária, seguia à risca, sem o saber,
a única ideologia que interessava aos patrões: a dos números.

A essa altura, o maniqueísmo próprio da época já tinha sido incorporado pela ala engajada da emissora. Quem não fazia MPB “de protesto”, estava de algum modo a serviço do imperialismo americano,
por adoção, omissão ou alienação. Nesta última categoria estava inserida a jovem guarda, adorada pela maioria silenciosa, mas desprezada – quando não hostilizada – pela minoria militante. A participação
de Roberto Carlos como intérprete no festival da música popular, incentivada pelos dirigentes da Record, foi motivo de indignação para a chamada “linha dura” da MPB que o recebeu sob vaia e, de certo modo, atiçou a revolta de seus simpatizantes. Afinal, a jovem guarda era uma pálida, mas eficiente, reprodução nacional do rock anglo-saxão que já havia produzido megaartistas como Elvis Presley e os Beatles, exportados para todo o mundo. Mas a força pop da música representante do capitalismo mundial
já tinha ido muito além do rock ingênuo do início da década. Em 1968, a cena musical internacional
já havia sofrido o impacto do álbum Sargent Peppers Lonely Hearts Club Band, já havia assistido
à ascensão dos Rolling Stones e estava em plena era hippie consubstanciada em expressões como
Jimi Hendrix, Janis Joplin e Joe Cocker.

Dessa efervescência do rock e da contracultura internacional e do quadro maniqueísta que caracterizava
a vida política e cultural do Brasil e, muito particularmente, as relações entre os grupos musicais
no microcosmo da TV Record, surge o tropicalismo como intervenção. Seus principais líderes, Gilberto Gil
e Caetano Veloso, egressos da mais pura MPB, sentiram a chegada do momento ideal de proclamar
a insignificância de nossa ditadura doméstica, tão mesquinhamente prejudicial à população do país, diante da grandeza dos acontecimentos culturais (e sobretudo musicais) do resto do planeta e, principalmente,
de denunciar a reprodução invertida do maniqueísmo nacional na ideologia que cercava os consagrados festivais de música (em transferência, a essa altura, da Record para a Globo). Sem se dar conta
do que estava ocorrendo, artistas e público, considerados de esquerda, criavam um consenso sobre
a forma musical e poética da “verdadeira” MPB, restringindo-se a instrumentos acústicos, a ritmos regionais, a temas ligados à terra ou a mensagens de esperança num futuro próximo. Admitia-se,
no máximo, a dicção do samba tradicional que, de um modo ou de outro, cantavam o Brasil. De forma
sub-reptícia, e provavelmente inconsciente, estava em curso um projeto despótico de seleção da música
e da estética brasileira.

Nesse contexto, não foram os discos pessoais de Caetano Veloso e de Gilberto Gil e não foi também a obra coletiva, “Tropicália” ou “Panis et circensis”, os responsáveis maiores pelo impacto da intervenção tropicalista. Esses discos caracterizaram, na verdade, a forma duradoura do movimento que até hoje influencia músicos e artistas de modo geral. O feito mais sensível da intervenção se deu no dia
15 de setembro  de 1968, no palco do teatro do Tuca, em São Paulo, durante a apresentação da canção
“Proibido proibir” por Caetano, acompanhado pelos Mutantes, em uma das eliminatórias do III Festival Internacional da Canção. O contexto se completava com a desclassificação, em exibição anterior,
da música “Questão de ordem” de Gilberto Gil.

Ambas as composições incorporavam em suas letras aspectos do forte movimento estudantil da época deslocando-os das cenas previsíveis nas quais, em geral, estavam inseridos. “Questão de ordem” já abordava em seu título a expressão exaustivamente reiterada nas assembléias dos alunos, toda vez que
os representantes disputavam a palavra. A seriedade sóbria que reinava nesses encontros era tratada pelo compositor sob um enfoque anarquista (“Por uma questão de desordem”), temperado com pitadas de erotização. O compromisso obstinado com a “causa” era substituído pelo impulso em direção aos objetos de desejo (“Quem sair demora / O quanto for preciso / Em nome do amor”). “Proibido proibir” referia-se
ao movimento estudantil que em maio de 1968 havia feito os automóveis arderem em chamas em Paris.
O slogan que deu nome à canção estava estampado nos muros da capital francesa, demonstrando
a insatisfação dos jovens diante do interminável e já exaurido gaullismo que controlava a nação desde
o término da segunda guerra. Caetano fez uso do paradoxo contido na expressão, que pratica aquilo
que coíbe, para escancarar a contradição da esquerda brasileira que reproduzia em suas fileiras uma certa censura tácita a todos os trabalhos menos afinados com as “metas revolucionárias”.

Portanto, a adoção do mesmo tema geral pelas duas canções serviu para implantar o vírus tropicalista
no âmago da cruzada empreendida pela esquerda militante, denunciando o seu caráter unidirecional
e, ao mesmo tempo, testando sua capacidade de suportar as diferenças. Os indícios flagrantes dessa postura estavam nas atitudes programadas para o evento: guitarras elétricas, símbolos do pop-rock alienígena, roupas extravagantes e irreverentes, pouco compatíveis com o ideal de seriedade da esquerda revolucionária, comportamento ambiguamente sexualizado, formato de happening (gritos, participações inesperadas, intervenções poéticas) etc. Mas a atuação fundamental e menos óbvia sucedeu no plano
da própria sonoridade das canções apresentadas: “Questão de ordem” e  “Proibido proibir” são casos
de decomposição da canção em fala prosaica. Isso requer alguma explicação.

A canção brasileira erigiu-se sobre uma base entoativa sem a qual é difícil compreender a sua história. Criada no início deste século por representantes de uma cultura totalmente oralizada, essa prática
de estabelecer relação entre melodia e letra foi se configurando melhor à medida que se consolidavam
os meios técnicos para a sua fixação. A formação do compositor popular, como se sabe, correspondia
à de qualquer falante da língua materna: sabia se expressar com unidades lingüísticas e entoativas, naturalmente compatibilizadas entre si. Ou seja, praticava a nossa simples linguagem coloquial. No entanto, tinha aptidão para extrair dessa fala cotidiana combinações de melodia e texto que mereciam ser preservadas por adquirirem alguma conotação estética. Produziam formas reiterativas, refrãos, gradações regulares e tudo que pudesse contribuir para a memorização do material criado. Todos sabemos que sem esses recursos o produto da fala se perde logo após a transmissão da mensagem. Claro que as primeiras gravações em cilindros, cuja tecnologia chegava ao Brasil na passagem do século, também foram decisivas para a fixação dessas obras que só raramente recebiam transcrição em partitura.
A mesma fala cotidiana que deu origem à canção popular passou a ser, com o correr dos anos, fonte
de ameaça aos seus processos de estabilização. Se a efemeridade da fala não fosse suficientemente camuflada no interior da canção por recursos “musicais” de memorização (fixação das alturas, configuração dos temas rítmicos etc.), a composição final poderia ter o mesmo destino sonoro de nossas conversas do dia-a-dia: o desaparecimento. Nesse sentido, podemos dizer que os compositores recalcaram, consciente ou inconscientemente, a presença da linguagem oral que, entretanto, independentemente de sua vontade, respondia pela força persuasiva de qualquer canção. Evitaram sempre compor na tangente das entoações puras para não correr o risco se deixar impregnar por sua instabilidade natural.

Apesar de tudo, a presença indisfarçável dessa linguagem coloquial acaba vazando em sambas estilizados (Coversa de botequim, Palpite infeliz etc.), nos breques dos sambas-de-breque, em diálogos no interior
de canções (Sinal fechado, Sem fantasia etc.), em interjeições ou expressões cotidianas inseridas
na música ou em gêneros que a adotam como fator de identidade (rap, hip-hop etc.). Se, em princípio,
a composição popular pode ser definida como um processo de depuração e fixação estética da fala cotidiana, o percurso inverso, da canção para a fala, pode ser tomado como um processo de decomposição e de mergulho na instabilidade. A prova disso é que composições que permanecem na tangente
da linguagem coloquial são de difícil execução do ponto de vista técnico, pois não bastam recursos musicais. Há que se cuidar de cada expressão em suas sugestões entoativas.

Pois bem, as canções de Gilberto Gil e de Caetano Veloso atingiram o auge de sua transgressão quando
se dissolveram, por assim dizer, em fala. Em “Questão de ordem”, Gil transportou o tema da assembléia estudantil, com toda a sua carga nacionalista, para o limiar mais histérico do rock internacional, convertendo a sonoridade da letra em gritos de transe que, ao final, se desfaziam numa espécie
de agonia em que voz e corpo pareciam constituir um só elemento em decomposição. Só pela atitude,
e independente de qualquer avaliação musical, a canção foi sumariamente desclassificada na primeira eliminatória do festival.

“Proibido proibir”, embora estivesse inserida no mesmo contexto anárquico da primeira, reforçado
pela irreverência do intérprete Caetano Veloso e do som intensamente eletrificado dos Mutantes, apresentava um perfil melódico mais “amistoso”, entre a marchinha e o iê-iê-iê, o que tornou viável
sua classificação inicial, apesar dos veementes protestos do público. Na segunda apresentação, sob vaia incessante da platéia engajada com a música de definição ideológica – Geraldo Vandré era então o modelo a ser seguido –, Caetano Veloso canta até um determinado ponto, a partir do qual desfere um longo pronunciamento sobre os conflitos envolvidos naquele exato momento, sobre a atitude esteticamente conservadora dos adeptos da revolução política, sobre a semelhança dos métodos truculentos utilizados pela direita e pela esquerda, sobre a incompetência e pouca isenção dos membros do júri para fazer
as escolhas certas etc. Esse extenso “breque”, que mergulha o compositor nas entranhas da linguagem oral, acaba determinando a impossibilidade de retorno ao canto. Ao tentar retomar a melodia da música,
a voz de Caetano – que a essa altura mal ouvia o som dos instrumentos – titubeia nas afinações, até que adota de vez as inflexões da fala e se situa propositadamente “fora do tom” e da melodia. Este é o ponto central da dissolução tropicalista que se traduziu em decomposição da própria canção em instabilidades próprias da linguagem cotidiana. O compositor ofereceu a obra em holocausto para denunciar um estado de coisas que se tornara insustentável.

Essa intervenção tropicalista teve sua contrapartida 25 anos depois com o lançamento, pelos dois expoentes do movimento, do CD Tropicália 2. Agora, vivendo em plena democracia, o Brasil precisava demonstrar que tinha capacidade para equacionar os próprios problemas e para corrigir as incontáveis distorções, quando não perversões e vícios, que mantinham (e que ainda hoje mantêm) o país
na retaguarda da nova ordem mundial. Os compositores perfizeram então a trajetória inversa: iniciaram
o disco com a fala crua em ritmo de rap (Haiti) e saíram em busca de “espaços” de ordenação representados por longas durações vocálicas estáveis presentes em refrãos (como no caso do próprio Haiti) ou em composições integrais (como em Aboio ou Desde que o samba é samba). A direção se invertera: agora era da decomposição (a fala) para a composição (o canto).

 

Tropicalismo como inclusão

O projeto extenso do tropicalismo define-se pela inclusão. Trata-se aqui de um gesto de longo alcance, desses que vieram para ficar, mas que também teve origem no contexto específico retratado anteriormente. Já deixamos entender que houve um momento na TV Record em que a MPB engajada acolhia ou desqualificava uma produção pelo coeficiente ideológico apresentado. A conseqüência
imediata dessa avaliação, geralmente maniqueísta, era a exclusão conduzida por um processo
de depreciação dos artistas pouco comprometidos com a “causa”. Caetano Veloso revela em Verdade tropical (pág. 282) um fato altamente representativo da conduta de exclusão que cercava os artistas naquele final dos anos sessenta.

Conta o autor que Geraldo Vandré, depois do sucesso de Disparada, propôs ao empresário Guilherme Araújo que apostasse todas as suas fichas na promoção de seu nome (Vandré), o mais genuíno representante brasileiro da música engajada latino-americana, e que descartasse naquele momento qualquer aposta nos músicos tropicalistas, já que, segundo o compositor de Caminhando, o ritmo
do mercado só admitia um expoente de cada vez. Deixando de lado as ambições pessoais do artista,
seus métodos desbragadamente exclusivistas contribuíram para definir em todos os detalhes a aspiração  tropicalista: em sentido diametralmente oposto ao do líder da canção de protesto, os artistas baianos acenavam para a inclusão da mais ampla diversidade possível, assimilando gêneros de maior ou menor prestígio tanto no campo da música brasileira como no da música internacional.

Como Caetano Veloso e Gilberto Gil sempre foram profundos admiradores da bossa nova de João Gilberto e Tom Jobim, é de se supor que já intuíam naquele momento a necessidade de um gesto que complementasse a contribuição fundamental desses dois músicos. A bossa nova havia eliminado alguns excessos na canção brasileira – particularmente o excesso passional que tomara conta da música popular nos anos 1950 – e havia chegado a uma espécie de canção absoluta, interpretada com ritmo, harmonia
e volume de som precisamente calculados para a audição da compatibilidade entre melodia e letra. Havia, portanto, promovido uma triagem na música popular que, aliás, tornou-se para sempre um modelo de saneamento do repertório nacional. Desde então, são raros os artistas de renome que não tenham banhado seu próprio repertório nas águas da bossa nova (considerada como gesto e não como estilo). Os projetos “acústicos”, tão em voga atualmente, ilustram bem o recolhimento e a triagem sugeridos pela bossa nova.

O tropicalismo salienta que a canção brasileira precisa de todas as dicções que já a influenciaram para
se configurar plenamente. Precisa do bolero, do tango, do rock, do rap, do reggae, dos ritmos regionais,
do brega, do novo, do obsoleto, enfim, de todas as tendências que cruzam, ou já cruzaram, o país em algum momento de sua história. Aparentemente irresponsável – ou até leviano – pela falta de critério seletivo, na verdade o gesto tropicalista pressupõe o gesto bossa-nova. Aquele inclui enquanto este
faz a triagem. Ambos são gestos extensos que tendem a perdurar na cultura brasileira como “régua
e compasso” que regula a produção musical.

 

Exclusivo para o site Tropicália

 
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