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A Escola de Teatro na UFBA
Fragmento de  “Tope a parada ‘mr’ Francis”
(carta de Glauber Rocha para o crítico de teatro carioca Paulo Francis)
Glauber Rocha

As Três Irmãs foi o início. Falei, Ratto viu a contradição, o terreno falhou sob seus pés. Mas não foi por isso que conheci o trabalho de Martim Gonçalves de perto. Tempos depois vi os espetáculos da Escola e não nego, inclusive, a excelência de Tesouros de Chica da Silva, montada pelo Ratto. Mas acontece que não fui eu. Todos os jornalistas, escritores e artistas da Bahia cercaram Martim do prestígio necessário, prestígio que não chegou à custa de relações públicas, concessões ou outros métodos habituais. Prestígio que veio das peças, da evolução da Escola, do sucesso perante o povo da Bahia, dos aplausos repetidos.

Prestígio do teatro que nascia infeliz e melancolicamente. Paulo Francis é um verdadeiro diletante, produto típico de cultura importada que se profissionalizou em ataques ao teatro brasileiro e fez a demagogia do nacionalismo e do esquerdismo tão indeciso quanto suas reais possibilidades humanas. Um amigo seu particular e que vive aqui na Bahia já me havia confessado, várias vezes, esta incapacidade do referido crítico para enfrentar sua região como ela é, e ter coragem de, por exemplo, ser um diretor teatral. Experiência mais tarde lamentavelmente frustrada.

Por isto, meu caro Francis, é muito fácil dizer que não liga para um teatro de província. Eis o primeiro sintoma de sua alienação pseudometropolitana, do seu esnobismo tupinambá, e sua covardia em se olhar no espelho sem retoques. Culturalmente, uma Escola de Teatro, neste Nordeste, é de importância fundamental. Desejamos, então, apenas um teatro burguês para Rio e São Paulo? É este o teatro brasileiro pelo qual os senhores se batem tão arduamente? Você mais uma vez errou e nunca um artigo seu foi tão infeliz: se chamei sua atenção, saiba que sempre o tive como crítico de respeito. E caso você viesse à Bahia, teria comprovado mais esta eficiência e este caráter enfaticamente evidenciado em seu estilo. Desconhecer a Escola de Teatro da Bahia significa desconhecer os movimentos culturais de todo o Norte, o teatro de Pernambuco, de Porto Alegre, os vários grupos que tentam e fazem peças pelas veredas destes imensos sertões. Desconhecer o resto do País. Assim, Martim Gonçalves não é alienador. Seu trabalho cresceu de tal maneira que - e isto é importante - mesmo os movimentos antiuniversitários posteriores omitiram a Escola de Teatro. Líderes da esquerda podem ser as melhores testemunhas do fato. E, como eles e os demais homens da Bahia, eu também admiti a Escola como fato. Por sermos baianos não somos cretinos como você pensa. A fonte da juventude não está nos bares e muito menos nesta angústia diária de ler jornais estrangeiros e aspirar Nova Iorque ou Paris e se frustrar novamente em sua profissão de crítico, que seria digno caso fosse honesta e interessada pelo País. Como pode, então, uma pessoa acusar outra de diletante e alienada, se ela mesma acha que o centro do mundo é Rio e São Paulo?

Não direi que fui caluniado por Ratto e Ana Edler. A eles eu deixaria a conversa com a consciência. Ana Edler hoje é uma atriz graças a Martim Gonçalves. Ela recusou ser Jenny, porque não queria aparecer ao lado de uma aluna no papel de Poly. Trabalhou com alunos quando não tinha curso nos Estados Unidos. Aqui foi cercada de todas as gentilezas, e seria a primeira atriz a ser lançada pela Escola. Obedeceu a outros interesses e não a condeno por isto. Apenas acho desleal usar métodos escusos para provocar um rompimento. E continuar na campanha pessoal, sem outros méritos a não ser aqueles fáceis da destruição. Como podem muito bem verificar, não houve a menor indisposição pública contra O Teatro dos Novos, da Bahia, grupo originário da cisão com a Escola. Eu mesmo fui quem lançou as primeiras publicidades deste grupo na imprensa, e quem abriu, junto aos outros jornais, um crédito de confiança que não seria conseguido sem a minha interferência. Deixei os motivos pessoais de minha amizade com Martim Gonçalves e prestei, como todos da Bahia, os mesmos aplausos. Embora discorde dos pontos de vista, sempre reconheci o talento de Othon Bastos, Carlos Petrovich e Nevolanda Amorim.

Creio que, diante disso, os profissionais mais sinceros do teatro brasileiro não podem duvidar das qualidades da Escola da Bahia: Martim Gonçalves sempre deu dias e noites totais ao trabalho e nunca fez a menor concessão de favoritismo, motivo geral de uma série de discordâncias. O vedetismo nunca viveu na Escola, e nunca o diretor permitiu as menores atividades amadorísticas. É claro que a Escola teve falhas. A primeira delas foi Martim tentar atrair nomes como o de Ratto e Domitília do Amaral. Eles não aproveitaram a oportunidade porque desejaram destruir a quem os recebera. Afinal, o dormitório de cama vermelha com tapete verde era coisa da assistência universitária e de muitos outros professores, e Martim não era culpado de peculiaridades.

Como podem ver, tudo não passa realmente de intrigas, algumas deprimentes. O mais vergonhoso, porem, é tentar destruir uma obra única no Brasil, que não se esconde dos críticos, nem do público, nem dos escritores que vêm à Bahia. Está aberta a todos. Paulo Francis, como crítico, deveria inclusive vir verificar de perto, fosse ou não convidado. Era seu dever. Do contrário, não passa de um amador, sem maiores preocupações. Enquanto Gianni Ratto estava em Ouro Preto, ao lado “da calma tranqüilidade de uma senhora que foi lindíssima e que hoje, alcançada a idade na qual as paixões estão apagadas, pode, com uma serenidade velada de melancolia, olhar sem azedume o mundo no qual está vivendo”, eu andava pelos longes sertões Cocorobó & Canudos, tentando realizar um documentário que foi impedido pelas chuvas. Não sendo o Nordeste uma senhora decadente, sou obrigado a encarar a vida com certa inquietude. Daí, embora seja cineasta e não tendo nada a ver com o teatro, voltar novamente à cena guanabarina, que vive sob o jugo do Sr. Paulo Francis.

Disse no fim do meu artigo passado que Francis deveria vir até à Bahia: aqui ninguém iria agredi-lo (como é rotina...) e que até mesmo passagem e estadias seriam pagas. Não estava brincando e muito menos fazendo artigo sob encomenda do Sr. Martim Gonçalves. Disse que, sendo viril e honesto não deveria ir para as tocaias atacar mais a Escola. Abrindo baterias, provou que não tem coragem mesmo. A coragem que eu tive quando, assistindo à montagem de As Três Irmãs, dizer que Ratto nada havia feito além de um espetáculo “desenhado, acadêmico, segundo as normas gramaticais”. Realmente escrevi contra a Escola em tempos idos, e estes artigos existem sem que deles tenha vergonha. O mais difícil, pois, seria ficar ao lado de Martim Gonçalves, não do homem, mas da obra que realizou, vencendo as minhas próprias dúvidas. Dúvidas semelhantes àquelas de Francis. Eu, porém, entrei na Escola e vi coisas de perto, vi também de longe e notei que o clima provinciano era formado pelo grupo de professores, cuja orientação cultural era alienada e disponível a olhar “sem azedume o mundo no qual está vivendo”. Um diálogo pode resumir uma história:

- Não durmo em cama vermelha num quarto de tapete verde!

Isso foi o que disse Ratto a Martim Gonçalves, na primeira noite de briga, narrada pela atriz Ana Edler. Ou foram outros os motivos? Todos dizem que Martim é “ultravaidoso, temperamental, invejoso e ditatorial”. Outros alunos da Escola não confirmam isto. Originariamente o senhor Ratto teve condições excepcionais de trabalho aqui na Bahia, como também todos os outros. Revoltado contra o espírito literário (no sentido do sub...) que regia os ensaios de As Três Irmãs, o diretor da Escola recusou uma produção longa. Afinal a Escola nunca foi órgão promocional para determinados atores. Nesta mesma época saiu um artigo meu que, movido por orientações políticas sectárias, investia contra a Reitoria da Universidade da Bahia e, por tabela, contra a Escola. Ratto aproveitou-se deste artigo para difundir falso esquerdismo e tentar o bote: a direção da escola! Pessoas do grupo foram as primeiras a bater palmas. Expliquei então que, numa campanha política, pouco me interessava ambições pessoais, salientando ainda que “não gostava de teatro e sempre fui produtor independente de cinema”. Meus filmes não recebem verbas: são comerciais.

A mais grave, porém, de todas as argumentações improvisadas por Francis, é aquela de que uma “Escola financiada pelo Estado só poderia servir ao Estado": que a Escola monta Claudel e Brecht apenas porque são nomes importantes, que a Escola é um núcleo acadêmico.

Em primeiro lugar, a Escola de Teatro da Universidade da Bahia recebe orientação livre e nunca o reitor Edgard Santos recomendou esta ou aquela peça. Aliás, alguns autores da velha geração baiana, de baixo nível literário, tentaram várias vezes introduzir peças na Escola e foram recusados, não valendo os grandes prestígios nos corredores da reitoria. Por isto, Martim Gonçalves não serve ao Estado, isto prova muito bem o Jornal da Bahia, órgão de esquerda (eu sou dos Diários Associados), que apontou Martim Gonçalves como professor universitário do ano, justamente pela sua independência frente à Universidade, totalmente desprovida de preconceitos. Como, então, poderia ser núcleo acadêmico uma entidade cultural que não estabelece programas, mas visa, exclusivamente, levar a um povo que não conhecia teatro todas as manifestações importantes seja de esquerda ou de direita, Claudel ou Brecht? A função da Escola é formar profissionais e por isso convida profissionais para o trabalho ao lado dos alunos. Não se poderia nunca criar uma verdadeira consciência isolados na distância dos espetáculos comerciais (no bom sentido) das metrópoles. Errado seria estabelecer um programa demagógico, restrito e pensado dentro de perspectivas pessoais. Como poderiam ser formados atores e diretores que conhecessem apenas uma face do teatro? Assim, desde Suassuna, Francisco Pereira da Silva, Antonio Callado, Artur Azevedo a Tennessee Williams, Strindberg, Tchecov, Claudel e Brecht foram montados como neste ano irão à cena Beckett, Camus, determinado autor nacional esquecido pelos nacionalistas, um autor baiano novo, Paulo Gil Soares, e possivelmente Shakespeare. Nunca a Escola esteve ausente do teatro brasileiro moderno: Chapetuba F.C. foi ensaiado e teve cenas representadas para o público interno da Escola, assim como Pedro Mico e várias peças curtas de Pereira da Silva. Não foi, Francis, idéia de Martin, lembrar A Moreninha, para caracterizar o teatro brasileiro. Você entendeu meu amigo e não é tão bobo para não saber que fez um veneno feio? A Moreninha foi um exemplo que citei de minha cabeça para lembrar que o público conservador da Bahia preferia espetáculos desta natureza, não porque a peça seja ruim (funciona até dentro de seu espírito), mas porque o lirismo molhado é o que infelizmente caracteriza aquilo contra que Martim lutou e venceu, impondo Claudel e Brecht para um público do povo, de gente da rua, de operários. Aqui, pela primeira vez no Brasil, se realiza um teatro verdadeiramente antiburguês.

Quem viu, não nega! O interesse pelo teatro brasileiro sempre foi princípio básico. A pesquisa e a integração cultural deste trabalho estiveram provocantes na última Bienal, quando a Exposição Bahia, da Escola, foi um sucesso, principalmente junto aos melhores críticos europeus que lá estiveram.

Você escreveu: “Não acredito que o teatro sério (o grifo é nosso), possa florescer em comunidades provincianas, em virtude do complexo sócio-econômico que suga o destino destas comunidades. A exceção é o trabalho de dente como Planchon, na França, que se coloca contra a mentalidade provinciana, embora atuando na província”. Não sabe você, em sua pseudo-sociologia, o que seja complexo sócio-econômico. Se soubesse, veria que é justamente aqui onde pode florescer este teatro sério. Porque a produção é mantida pelo estado, todo o baixo sentido comercial é conseqüentemente queimado. E o público não é aquele de gente bem, porque o operário, pela primeira vez neste País, pode assistir a Brecht, de graça, quantas vezes quiser. Assim, o teatro se desenvolve. Em segundo lugar posso lhe assegurar que Martim Gonçalves fez na Bahia mais do que Planchon, porque uma província brasileira é pior do que uma francesa, e aqui a Escola enfrentou a mentalidade provinciana, daí a irritação de alguns redatores do jornal A Tarde, principalmente um, que é uma espécie de Mário Nunes baiano.

Todavia o seu desenvolvimentismo foi longe demais, andando de marcha à ré. Em outro momento infeliz, escreveu: “Antes de mais nada, quero esclarecer que esta Escola me desperta um mínimo de interesse (esnobismo fácil demais para um jornalista antigo...). É somente uma aventura provinciana, destinada a satisfazer vaidades e a dar carreiras a quem não as tem nas cidades do País onde existe um certo movimento cultural”. Esta sua analise é idêntica àquela formulada pela melhor classe dos reacionários políticos brasileiros que, em 11 de agosto, formularam o “esquecimento do Nordeste. Seco como está, melhor deixar pegar fogo, logo”. Quer dizer que uma escola é aventura, porque se destina a dar carreiras? Então vamos considerar aventuras as faculdades de Medicina, Politécnica, Direito e outras? Ou para o ilustre crítico teatral, teatro não é carreira digna? Deveríamos então viver sem teatro, pelo fato de ser na Bahia? E por que aventura? E por que vaidades?

Sinceramente, Francis, eu estou fazendo perguntas estabelecendo o debate que, você disse, Martim recusou. Afirmo que ele não sabe desta minha participação no problema. Disse você, ainda, que se a Escola desmentir certas coisas, você informa, cônscio de que cumpriu seu dever. Por isto eu reafirmo meu convite: venha à Bahia. Ninguém vai agredi-lo, ou você tem medo de enfrentar uma verdade e não admiti-la? Eu também fui vencido pelo impacto da Escola. Por isto, repito, não me envergonho do artigo que fiz, movido, como você, por antigas erupções juvenis. Apenas estava seguindo um programa político, o que, na pior das hipóteses, é mais digno do que seguir um programa de intrigas. E sou muito mais jovem que você.

Insistindo para que você venha à Bahia – o clima é excelente, as mulheres são belas, a comida excitante: uma boa semana de férias – logo que a Escola reinicie suas atividades, eu, particularmente, assumo a responsabilidade pública de lhe demonstrar o que digo. Mas a sua responsabilidade de crítico também está em jogo, porque acredito que mesmo outros inimigos de
Gonçalves e todos os escritores brasileiros que conhecem a Escola também o teatro sério do Brasil, não poderão admitir a sua infantil negação de uma evidência. Tope a parada, por favor!

 

Extraído de Avant-Garde na Bahia, de Antonio Risério, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995

Publicado originalmente no Jornal do Brasil, 11 de fevereiro de 1961
 
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