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A Universidade na Bahia
Tom Zé
Extraído de Verdade Tropical, Companhia das Letras, 1997

É impressionante como o que os baianos chamam de “menina mordida de cobra" paradigmatiza a metodologia de ensino implantada naquela Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, onde estudei de 62 a 67.

(...)

Na escola o estudo de cada estilo era exigido e observado com rigor. Mas quando nós, alunos, entregávamos a Koellreutter ou a Ernst Widmer um exercício de composição, eles pouco estavam se lixando se o trabalho era realizado em linguagem dodecafônica, contraponto clássico à Palestrina ou qualquer outra opção.

O que lhes interessava era a linha assintótica entre técnica e imaginação.

Olhem, linha assintótica é uma tal igualzinha ao tipo de moça que fica arrodeando, assanhando, e quando você tenta dar uma simples encostadela a gata pula de lado. Muitas vezes dando até um gritinho. É a “menina mordida de cobra”.

Pois essa mesma linha assintótica, que nunca consegue tocar na curva que a atrai, é um arrastão, um plágio da entrevista de Max Bense a Haroldo de Campos em 64. Modifiquei a resposta de Bense para revelar o cuidado que aqueles mestres, invadindo a Bahia dos orixás com as loucuras da Escola de Viena e pirações ainda mais cabeludas – para revelar o cuidado que eles tomavam para formar alunos independentes.

Era como se dissessem: "Nós ensinamos técnicas. Mas não façam delas correntes e grilhões." Fernando Cerqueira, meu colega de quarto, talvez por sua educação religiosa, fazia um comentário: "Eles provocam a matéria da mente, mas deixam nossa alma livre."

Indo adiante, pode-se dizer que nossa escolha era um experimento de desconstrução. Pois são bem conhecidos os fundamentos do pensamento do prof. Koellreutter e, entre outras coisas, o peso que ele dá aos princípios da música-filosofia-oriental – estranhos ao Ocidente e ainda naquele tempo olhados aqui pelo círculo culto com desconfiança. Falo também em contracultura porque o prof. Koellreutter só aceitou ir para a Bahia com a liberdade de igonorar completamente o currículo oficial do ensino de múisca do Ministério da Educação, independência que praticou com cuidado e perseverança.

Tanto que, quando os alcançamos, nossos diplomas oficialmente não valiam nada, mas todas as escolas do Brasil lutavam para nos contratar: Fernando Cerqueira foi pescado pela Universidade de Brasília; Lindembergue Cardoso ganhou uma Bienal de Veneza, mas a Escola o reteve em Salvador; Rinaldo Rossi foi para o Rio, e acabou diretor da Rádio Ministério da Educação; Jamary Oliveira era disputado para lecionar; eu ensinei na própria Universidade da Bahia durante o último ano de curso.

Na Escola, mesmo o dodecafonismo e o serialismo não eram tratados como estilos a serem praticados, mas sim como estruturas de adestramento, menos viciadas que as velhas linguagens sobrecarregadas de hipóteses obsoletas.

(...)

No caso de Widmer, ele abria-se à influência dos alunos e dos modos, escalas e música do Recôncavo. Compunha baiões que me pedia para harmonizar, fez até uma versão de “2001" antes de Rita Lee musicá-la, partitura que ainda tenho. É uma tentativa de canção popular mesmo, um dia vou gravar.

Acabou radicalizando as influências, naturalizou-se brasileiro e, de paletó cinza, mão direita no peito, cantou na cerimônia o “Hino Nacional”, na Fonte Nova, diante do comando do Exército.

Nossa Naturalização

Nada combinado entre nós, mas aquela casa de ensino, como pátria, também nos naturalizou. Nossa vida diária era um apostolado. Às sete da manhã estávamos na reitoria para o ensaio da orquestra. A seguir, aulas. Almoço no restaurante universitário, a dois quilômetros, no Corredor da Vitória; às duas da tarde, novas aulas e/ou estudos; às seis, jantar no restaurante. Na volta, às sete da noite, estudávamos na escola até as dez, quando o porteiro fechava o prédio.

No sábado não havia ensaio de orquestra e íamos diretamente para nossa sala, onde, tirantes os intervalos para as refeições, ficávamos até o fechamento regular da casa, às dez da noite. No domingo havia um problema: era permitido estudar durante o dia, mas às seis horas encerrava-se o expediente dos funcionários. Tomamos a providência de instituir uma caixinha para o vigia, que nos permitia entrar à noite e nos fechava lá dentro. Às dez horas, numa espécie de toque de recolher, ele estrilava um apito de guarda-noturno. Quem não saísse em cinco minutos ficava preso.

 
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