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Pano Costurado
Regina Boni
Extraído de Tropicália 20 Anos, SESC, 1987

Éramos?

Éramos jovens e acreditávamos. Hoje, tentando transformar vivências em narrativas do passado, para que se tornem coisas de museu, lúcida e em sã consciência, digo que não tenho nada a dizer. Gostaria de encerrar aqui este depoimento. Nada a declarar. I want to be alone. Somos apenas bons amigos.

Mas talvez seja tarde demais; ou cedo. Me rendo às evidências. O reacionarismo selvagem que me força agora a colaborar com o espaço vazio deste papel, não difere em nada daquele que nos anos 60, época em que teoricamente se passou nossa história, nos capturou e nos prendeu nas celas escuras do DOI-CODI.

Será mesmo tão necessária a tortura e confissão?

Tropicalismo não é uma etiqueta vulgar como pretendem os teóricos e os burocratas em geral. Não é o movimento cultural fantástico e místico do qual participaram alguns atores de maior ou melhor fulgor.

Tropicalismo é antes de mais nada um bicho de sete cabeças, arquetípico, faminto e esplendoroso, que habita as águas profundas deste pequeno universo de todos nós. Um bicho lindo, alegórico, feito de isopor e purpurina, cujo dramático destino é desfilar eternamente.

Manso, dorme comigo, trabalha na galeria. Outras vezes, nem pensar.

Fiz sim, algumas roupas para Gal, Gil, Caetano. Estas roupas que eu fazia e minha mãe costurava não eram roupas, mas uma espécie de organização do delírio, ou melhor, uma declaração de amor e felicidade em estado bruto, com alto teor de pureza.

Foram consumidas.

Eu as considero uma criação coletiva, cuja função era “vestir” o que todos sentíamos e apenas eles diziam. Nós experimentávamos. Estávamos vivos.

Esta circunstância ocasional de dar forma concreta às idéias, emoções sensíveis, à música, era altamente excitante. Garanto que vivia naquela época muitas vidas: as das relações múltiplas que ocorrem além da comunicação verbal, e de todas as demais tão grosseiras e primárias quanto.

O Dromedário foi um prolongamento disto. Quando eu desenhava, desdenhava da “moda” que até hoje me parece ditatorial e opressora. Moda?

Tinha a impressão exata de copiar. Mas o que eu fazia era apenas retirar formas e imagens do repertório do inconsciente coletivo: viéses de Jane Harlow, cetim dos filmes da década de 30, fitas de quarenta, tecido de forrar caixinha de música, rosas matizados em fios de seda, boás de plumas, guarda-chuvas de cabo de galalite à prova de bala, malhas de metal. Peles – não de vison, mas de coelho e tintas de anilina rosas, amarelas, roxas. Jerseys drapeados, decotes, violetas, passarinhos empalhados na cabeça, plástico fazendo papel de couro, meias com papoulas no joelho, feltro no lugar de casimira inglesa, olho de bicho de pelúcia como botões, tecidos de fibra de banana bordados com fio de prata que era fabricado nas Filipinas.

Pura luxúria, brincadeira, provocação – e as mulheres ficavam lindas. Era apenas roupa. Mas quando alguém vestia, aquilo no corpo libertava a beleza. Minhas clientes atribuíam àqueles objetos as qualidades que eram delas. Afinal, tudo era pano costurado.

O Dromedário acabou em 69. Tínhamos nos dispersado. Caetano e Gil exilados em Londres. Waly sumido, Gal no Rio, Hélio Oiticica em Nova York; Torquato morreu, Ednilson desapareceu, Rosão e Péricles também se foram para longe. Deixei que morresse por asfixia e não sinto remorsos nem saudades.

É só ligar a televisão. Tá tudo aí, tá tudo azul.

O Gil tinha um apartamento na Praça da República. Numa noite, me disse que a vida era um trem, seu eu não tomasse ficava. Tomei.

E foi como mergulhar numa piscina.

Algumas frases soltas vêm à minha cabeça.

Nada mudou, nada: Tudo é igual, mas me iludo e...

Contudo...

Na estação de Tóquio pára um trem-bala a cada dois minutos.


Regina Boni vestiu os tropicalistas.
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