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A Temática Noturna no Rock Pós-Tropicalista
Paulo Henriques Britto
Extraído de Do samba-canção à tropicália, Santuza Cambraia Naves e Paulo Sergio Duarte (organizadores). FAPERJ / Relume Dumará

Em 1965 — dois anos antes do mítico “verão do amor” de San Francisco, em que a figura do hippie se define e é divulgada pelos meios de comunicação — um obscuro conjunto chamado The Fugs (eufemismo para “The Fucks”) lança o disco Virgin Fugs. Na faixa “My bed is getting crowded”, o poeta beat Tuli Kupferberg argumenta que sua cama está ficando superlotada, que ele não tem tempo para uma dúzia, “seis de vocês têm que ir embora”; em “New amphetamine shriek”, Peter Stampfel anuncia as virtudes da anfetamina (“é quase tão inofensiva / quanto a cocaína velha de guerra”); e “CIA man” (também de Kupferberg), que  contém uma menção direta à guerra do Vietnã, acusa a CIA de derrubar governos (“quem derruba ditadores quando são comunas? / O homem da CIA”). Os Fugs — um conjunto de rock proto-punk que foi um dos elos de ligação entre a geração beatnik e a dos hippies — já prenunciam nesse disco pioneiro o que viria mais tarde se denominar “contracultura” ao combinarem três temas: o uso de drogas, a liberdade sexual e a crítica ao sistema político americano. No final dos anos sessenta, o período paradigmático das manifestações contraculturais nos Estados Unidos, essa convergência de atitudes rebeldes comportamentais e políticas se generaliza. Para dar apenas um exemplo, entre as canções de um dos conjuntos mais representativos do chamado “San Francisco Sound” desse período — o Jefferson Airplane — encontramos “White rabbit” (Grace Slick, Surrealistic pillow), uma releitura da história de Alice no País das Maravilhas como fábula psicodélica; “Triad” (David Crosby, Crown of creation), a história de uma jovem que resolve viver simultaneamente com os dois rapazes que gostam dela, já que gosta de ambos; e “Volunteers” (Marty Balin–Paul Kantner, Volunteers), um chamado veemente para uma vaga “revolução” política contra o complexo industrial-militar. Exemplos semelhantes poderiam ser multiplicados. A contracultura começa como uma reação ao serviço militar obrigatório na época da guerra do Vietnã, mas a partir daí desenvolve uma proposta positiva de sociedade, uma contra-ideologia utópica em que entram pacifismo, hedonismo, um neo-romantismo de sabor rousseauniano, versões do zen-budismo derivadas dos livros de Alan Watts e naturismo dos anos vinte, com pitadas de feminismo e marxismo em suas vertentes maoísta e frankfurtiana — tudo isso expresso na língua franca da geração, o rock. Na prática, é claro, havia sérias incompatibilidades entre as posições do membro de uma comuna naturista, do usuário de ácido lisérgico e do guerrilheiro urbano. No próprio movimento havia quem criticasse essas incoerências ideológicas: Frank Zappa, principalmente em seu disco We’re only in it for the money (gravado em 1967 mas lançado apenas no ano seguinte), zomba da contracultura ainda nascente com total irreverência, ao mesmo tempo que faz uma crítica devastadora das instituições americanas das quais os hippies optaram por excluir-se. Mas apesar dessa diversidade, de modo geral tanto os seguidores quanto os opositores do movimento aceitavam o construto “contracultura” como um dado real: aderir a uma comuna budista, vegetariana e pacifista, tomar drogas ou entrar para um grupo que utilizava táticas de guerrilha urbana eram maneiras alternativas de rejeitar um sistema que enviava jovens para lutar uma guerra inexplicável na Indochina.

No caso do Brasil, a contracultura começou depois — é mais um fenômeno do início dos anos setenta, do período que podemos chamar de pós-tropicalista — e veio a exibir algumas características análogas às do original californiano: as posturas em relação a política, sexualidade e drogas, as roupas e cabelos, o misticismo oriental, e também a importância do rock como linguagem musical. Porém alguns dos melhores cancionistas que utilizaram a linguagem do rock nesses primeiros anos, vários deles egressos da tropicália ou herdeiros direto dos tropicalistas, exprimiram em suas criações uma visão da realidade muito diversa da ideologia contracultural norte-americana, a qual continha, como já vimos, uma proposta utópica. No caso brasileiro, o som das guitarras serviu de pano de fundo para letras que falavam de desespero, fracasso, solidão e loucura. Nada poderia ser mais distante do “verão do amor” de 1967 que a ressaca instalada do Brasil após a alegria esfuziante do momento tropicalista.

A Tropicália havia surgido num momento em que a esquerda brasileira adotava palavras de ordem patrióticas, identificando a causa nacional com a redenção das massas. Havia no ar um certo ufanismo de esquerda, nacionalista e triunfalista, popularizado pelos CPCs. Era o momento do teatro agitprop à Brecht, dos filmes politizados do Cinema Novo e da guinada engajada da MPB, que teve em Nara Leão uma das figuras centrais. A tropicália soube apossar-se desse vocabulário e dessa temática, acrescentando-lhes diversos outros ingredientes, entre eles elementos da linguagem musical do rock e uma atitude em relação à realidade brasileira bem diferente da adotada pela música engajada. O rock que mais interessava aos músicos do movimento — em particular ao principal conjunto a ele associado, os Mutantes — era o novo rock progressivo criado pelos Beatles a partir de Revolver (1966) e Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967). Quanto à questão da atitude, a dicção da tropicália nada tinha a ver com o tom de indignação moral e certeza ideológica dos cancionistas engajados, porém favorecia uma abordagem irônica e afetuosa. Havia, além disso, uma mudança significativa de alvo: se a vertente engajada da música popular criticava acima de tudo as estruturas de poder, cujo arquétipo era o latifúndio — pensemos, por exemplo, em “Carcará” (João do Vale–José Cândido), lançada por Maria Bethânia (Maria Bethania), e “Terra de ninguém” (Marcos e Paulo Sérgio Vale), popularizada por Elis Regina (Dois na bossa) — nas canções tropicalistas a crítica era dirigida mais ao conservadorismo como atitude comportamental. Nos primeiros discos do movimento, tanto “as pessoas na sala de jantar” de “Panis et circensis” (Caetano Veloso–Gilberto Gil, Tropicália ou Panis et circensis) quanto os que se sentam “em volta da mesa / longe do quintal” em “Eles” (Caetano Veloso–Gilberto Gil, Caetano Veloso [1968]) são muito mais representantes de um determinado tipo de comportamento conservador do que paradigmas de uma classe dominante. Faz mais sentido ver essas canções como críticas à caretice a partir de um ponto de vista contracultural do que como ataques ao sistema de poder segundo uma ótica marxista. A imagem da família reunida em torno da mesa como ícone da caretice vai reaparecer em “Deus vos salve esta casa santa” (Caetano Veloso–Torquato Neto), gravada por Nara Leão (Nara Leão): “ó deus vos salve esta casa santa / onde a gente janta com nossos pais”. Em “Namorinho de portão”, Tom Zé (Tom Zé) desfere suas farpas contra a mesma instituição: “Namorinho de portão, / Biscoito, café, / Meu priminho, meu irmão [...] O blusão do vovô, / Aquele tempo bom que já passou / e eu, de ‘é’, de ‘sim’, de ‘foi’”. É bem verdade que não há na tropicália um rompimento abrupto com a tradição esquerdista da canção popular; podemos identificar várias marcas de continuidade entre a música engajada anterior e a nova postura tropicalista: exemplos disso, em Tropicália ou Panis et circensis, são o hino ao pan-latino-americanismo de “Soy loco por ti América” (Gilberto Gil–José Carlos Capinam), com a referência bem transparente a Che Guevara (“el nombre del hombre muerto”), e a alusão cifrada às passeatas estudantis (“vamos passear / escondidos”), incluindo algumas notas da “Internacional”, em “Enquanto seu lobo não vem” (Caetano Veloso). Mas a mudança de ênfase e de enfoque é clara, no sentido de uma afirmação solar do aqui e agora, exemplificada em canções como “Alegria, alegria” e “Superbacana” (ambas de Caetano Veloso, Caetano Veloso [1968]), e “Domingou” (Gilberto Gil, Gilberto Gil [1968]). A tropicália, pois, apontava para uma atitude positiva, de alto astral, semelhante à que era proposta pela contracultura norte-americana.

O Ato Institucional no 5 de 13 de dezembro de 1968 pôs fim a tudo isso. O chamado “golpe dentro do golpe” foi o evento político marcante na configuração específica que veio a ter a anêmica contracultura brasileira. Com o controle quase total dos meios de comunicação nas mãos do regime militar, o discurso nacionalista passa a ser monopolizado pelos militares e seus asseclas, privando os dissidentes até mesmo de um vocabulário utilizável. Torna-se impossível defender um projeto para o Brasil que não seja o da ditadura; o projeto cepecista, como qualquer outra alternativa, está definitivamente excluído: a censura não permite mais a formulação de uma contra-ideologia reativa. Pouco tempo depois, alguns dos principais nomes da música popular, como Chico Buarque, Caetano e Gil, seguem o caminho do exílio. Nesse momento, os grandes temas nacionais ou pan-latino-americanos são substituídos por uma temática subjetiva e intimista. A indignação ideológica dos engajados e a crítica social irônica dos tropicalistas dá lugar a uma postura de desencantamento e desânimo. No exato momento em que uma parcela da juventude de classe média urbana brasileira adota os cabelos longos e trajes coloridos que assinalam a identificação com a “nação Woodstock” do primeiro mundo, alguns dos mais significativos músicos populares do período produzem um punhado de canções que, longe de tematizar o amor livre, o psicodelismo ou a contestação do sistema político, privilegiam temas como o medo, a solidão, a derrota, o exílio, a loucura.

Não se está negando que tenha havido também, na música popular dos primeiros anos da década de setenta influenciada pelo rock, algumas afirmações do advento da “era de Aquário” e da libertação que supostamente viria com ela. São exemplos desse lado solar da contracultura brasileira diversas canções de Raul Seixas, dos Novos Baianos e dos Mutantes, bem como da posterior carreira solo de Rita Lee. Mas o que podemos denominar de temática noturna é talvez a que melhor caracteriza o período, e vamos encontrar sinais dela até mesmo na produção dos artistas mais identificados com a visão positiva do momento. Assim, “Dê um rolê”, canção da dupla novo-baiana Morais e Galvão, memoravelmente gravada por Gal Costa (Gal a todo vapor), afirma o tema básico do flower power: “Eu sou amor da cabeça aos pés”, mas os versos iniciais da letra atentam para o que há de espantoso numa tal afirmação no contexto brasileiro: “Não se assuste, pessoa / se eu lhe disser que a vida é boa.”

Os motivos da exclusão, do medo e da partida representam a inversão da temática social da canção dos anos 60; é a transformação em pesadelo da idéia utópica de instauração de uma nova ordem social mais justa. Em “Nostalgia” de Caetano Veloso (Transa), a associação entre contracultura e exclusão é categórica: a letra (em inglês) afirma: “você tem uma aparência totalmente diferente daqueles caretas que andaram na lua”, e conclui que a “vaga sensação de orgulho” sentida ao ouvir “Aqui você não pode entrar — cai fora” é o próprio significado do rock ’n’ roll. Ser contracultura, ser rock ’n’ roll significava justamente isto: estar excluído do sistema, ser um outsider. É esse também o tema de “Let’s play that” (Jards Macalé), canção de Jards Macalé e Torquato Neto que relê o tema drummondiano do “gauche na vida” combinando-o com uma citação de Sousândrade, como já observou Tárik de Souza: “quando eu nasci / um anjo louco [...] / veio ler a minha mão [...] / E eis que o anjo me disse [...]: vai bicho / desafinar o coro dos contentes”. O medo, muitas vezes sob a forma de paranóia generalizada — uma característica marcante da nova ordem instituída pelo AI-5 — é tematizado com freqüência no período, mesmo por artistas nada politizados. Ninguém mais distante de considerações políticas e ideológicas que Raul Seixas, que em “Sociedade alternativa” afirma a possibilidade de fazer-se o que se quiser, pois “é tudo da lei” (“Sociedade alternativa”, Raul Seixas–Paulo Coelho, Gita). No entanto, são de sua autoria os seguintes versos (da canção “Para Nóia”, Novo Aeon): “Se eu vejo um papel qualquer no chão / Tremo, corro e apanho para esconder / Medo de ter sido uma anotação que eu fiz / Que não se possa ler / E eu gosto de escrever / Mas, mas eu sinto medo”. Sérgio Sampaio, que começa sua carreira num disco coletivo que inclui a participação de Raul Seixas, capta de modo exemplar, sem fazer qualquer alusão direta à situação política do país, a atmosfera de medo em suas canções, como “Filme de terror” — “dura o ano inteiro, o filme de terror [...] / quem ousar sair de casa / passe a tranca e feche o trinco [...] o meu sangue jorra e borra de terror” — e “Labirintos negros” — “os labirintos negros / espalham nuvens cinzas [sic] / de desesperança” (Eu quero é botar meu bloco na rua).

O motivo da partida, da viagem sem volta, já aparece nas canções tropicalistas, mas se compararmos o modo como o tema é tratado nelas com a abordagem adotada no período pós-tropicalista, o contraste é óbvio. “No dia em que eu vim-me embora” (Caetano Veloso –Gilberto Gil, Caetano Veloso [1968]), “Clarice” (Caetano Veloso–Capinam, Caetano Veloso [1968]) e “Mamãe coragem” (Caetano Veloso–Torquato Neto, Tropicália ou Panis et circensis) são retomadas do clássico “Peguei um Ita no Norte” de Caymmi: o jovem se afasta da família para ir começar vida nova na cidade grande, “sozinho pra capital” (“No dia em que eu vim-me embora”); a dor da separação é atenuada pela consciência de estar se tornando adulto: “mamãe mamãe não chore / a vida é assim mesmo / e eu quero mesmo / é isso aqui” (“Mamãe coragem”). No período pós-tropicalista, porém, a partida aparece associada ao exílio, e não a qualquer projeto de futuro. No disco gravado em inglês por Caetano Veloso em Londres, ouvimos em “A little more blue”, primeira faixa do álbum: “Um dia eu tive que partir do meu país [...] / naquele dia, não consegui nem chorar” (Caetano Veloso, Caetano Veloso [1971]). Num registro mais leve, com o humor que lhes é característico, os Mutantes abordam tema semelhante em “Cantor de mambo” (Elcio Decário–Arnaldo Baptista–Sérgio Baptista, Mutantes e seus cometas no país do Baurets). O exilado brasileiro nos Estados Unidos consegue algum sucesso financeiro, mas ao preço de se descaracterizar como brasileiro e lusófono, cantando mambos em “portunhol”. “Eu não volto mais pra cá não [...] / Hoje eu vivo aqui na América / Ganho bem cantando mambo [...] / Eu já tenho um Cadillac / Moro aqui em Hollywood.”

O eterno tema da separação, do fim de caso, é comum nas canções do período, como em todas as épocas. Porém no momento pós-tropicalista ele adquire uma dimensão política específica: aliás, toda a temática amorosa ganha nas canções desse período uma acepção que é precisamente o inverso do que ele tem na contracultura americana. Enquanto o rock do Jefferson Airplane e de tantos outros celebra o amor livre como metonímia da liberdade política, os roqueiros pós-tropicalistas elaboram o tema do amor fracassado, tão caro ao tradicional samba-canção de dor-de-cotovelo, de modo a expressar uma sensação de derrota coletiva. Em 1969, os Mutantes fechavam seu segundo álbum com “Caminhante noturno”, em que já apareciam as imagens noturnas: “No chão de asfalto / Ecos, um sapato / Pisa o silêncio caminhante noturno” (Arnaldo Baptista–­Rita Lee, Mutantes). Ouvimos em “Movimento dos barcos”, de Jards Macalé e Capinam (Jards Macalé): “Estou cansado / e você também / vou sair sem abrir a porta / e não voltar nunca mais / desculpe a paz que eu lhe roubei”. A separação também evoca idéias de solidão e vazio existencial. A imagem da cidade noturna vazia é recorrente: “Desta janela sozinho / olhar a cidade me acalma / estrela vulgar a vagar / Rio e também posso chorar” (“Hotel das estrelas”, Macalé–Duda, Gal a todo vapor). Em seu LP londrino, Gilberto Gil trabalha o tema em “One o’clock last morning, 20th April, 1970”: “Tanta tristeza / à uma hora da madrugada de ontem” (Gilberto Gil [1971]). Uma bela abordagem do tema da solidão na cidade noturna vazia é “Três da madrugada”, uma canção pouco conhecida de Carlos Pinto e Torquato Neto (incluída no álbum-tributo Torquato Neto): “três da madrugada / quase nada / na cidade abandonada [...] saiba: meu pobre coração não vale nada”.

A idéia de derrota pessoal é por vezes associada explicitamente ao fim dos tempos utópicos: temos aí o tema do fim do sonho, enunciado de modo paradigmático por John Lennon e retomado por Gil em “O sonho acabou” (Expresso 2222). No álbum duplo Clube da esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges, um dos discos emblemáticos do período, esse tema aparece em ao menos três momentos: “Coração americano / acordei de um sonho estranho” (“San Vicente”, de Milton Nascimento–Fernando Brant); “Alguém que vi de passagem / numa cidade estrangeira / lembrou os sonhos que eu tinha / e esqueci sobre a mesa” (“Um gosto de sol”, Milton Nascimento–Ronaldo Bastos), e “Fotos de uma velha festa / ossos tão antigos, fatos tão passados” (“Pelo amor de Deus”, Milton Nascimento–Fernando Brant). Por vezes há uma apropriação irônica do vocabulário político da música engajada deslocado para o contexto do indivíduo derrotado e só: assim, na canção “Meu amor me agarra & geme & treme & chora & mata”, (Macalé–Capinam, Jards Macalé), encontramos o verso “meu amor é um tigre de papel”, alusão à famosa frase de Mao Tsé-Tung, “os imperialistas reacionários são tigres de papel”. E na já citada “Movimento dos barcos” é difícil não ler o verso “o futuro esperado que não dei” como uma variação irônica em torno do topos do “dia que virá”, da revolução libertadora que se anuncia, comum na música engajada da década anterior.

Uma temática quase tão recorrente quanto a da partida e a da derrota é a idéia de loucura. Não deixa de ser significativo o fato de que, enquanto a imprensa e o mundo careta em geral insiste no uso da palavra “hippie”, o termo mais utilizado pelos membros da contracultura para se auto-identificar é “muito-louco”. É nesse sentido que, na já citada “Sociedade alternativa”, Raul Seixas se apresenta como “maluco beleza”, uma atitude libertária: “se eu quero e você quer / tomar banho de chapéu / ou esperar Papai Noel [...] então vá”. Mas a questão da loucura propriamente dita já vinha sendo politizada havia algum tempo por autores como R. D. Laing e D. G. Cooper, e essas posições começam a se popularizar no Brasil precisamente numa época em que a razão é identificada com o status quo e portanto com a caretice; a internação no manicômio, o uso do eletrochoque e o elogio da loucura, em ambas as acepções — alienação mental e uso de drogas psicodélicas — são temas freqüentes no cinema, no teatro e também na música popular do período. Em Sérgio Sampaio as referências à loucura ora se dão de modo explícito — “doido meu pai / sete bocas mastigando o jantar / sete loucos entre o bem e o mal” (“Pobre meu pai”), ora através de letras nonsense com clima de pesadelo, como “Eu sou aquele que disse / tanto limão pelo chão / soltem cachorros nos parques / ou não” (“Eu sou aquele que disse”). E os Mutantes, em “Balada do louco” (Arnaldo Baptista–Rita Lee, Mutantes e seus cometas no país do Baurets), afirmam de modo radical a oposição entre felicidade e racionalidade: “Mais louco é quem me diz / que não é feliz / eu sou feliz”.

A contradição básica da contracultura brasileira é que, no momento em que no mundo desenvolvido o rock se torna a linguagem musical de uma visão de mundo hedonista e solar, que afirma o aqui e agora, no Brasil vive-se uma situação de censura e opressão; e ao mesmo tempo que o público jovem do rock adota a indumentária colorida da contracultura, as letras de muitas das músicas descrevem um mundo noturno e sombrio. O contraste entre os anos de chumbo brasileiros e a euforia vivida nos países de origem do rock é explicitamente tematizado em “Para Lennon e McCartney”, de Milton Nascimento e Fernando Brant: “Porque vocês não sabem do lixo ocidental / não precisam mais temer / não precisam da solidão / todo dia é dia de viver” (Milton). O medo e a solidão, temas importantes do rock pós-tropicalista, são desnecessários no mundo dos Beatles; os jovens ingleses e americanos podem curtir a vida, enquanto a nós aqui, no lixo do ocidente, só resta uma identificação vicária com eles: “mas agora sou cowboy / sou ouro eu sou vocês”. Talvez a canção que melhor capte o contraste entre as exterioridades da contracultura, tomadas emprestadas do contexto norte-americano, e o clima de desesperança e estrangulamento vivido no Brasil é “Vapor barato”, de Macalé e Waly Salomão (Gal a todo vapor). O tom combina exaustão, desânimo e incerteza: “Ah, sim, eu estou tão cansado / mas não pra dizer / que eu estou indo embora / talvez eu volte / um dia eu volto / quem sabe”. Vários temas “noturnos” estão presentes: o fracasso pessoal — do projeto de vida, do relacionamento amoroso (“não acredito mais em você”) — a partida, o exílio (“vou tomar aquele velho navio”). Ao mesmo tempo, a indumentária — os anéis, as calças vermelhas, o casaco de general — alude diretamente ao traje adotado pelos seguidores da contracultura norte-americana. O casaco de general, em particular, tem uma função ambígua: se por um lado aponta para o hábito dos opositores da guerra do Vietnã de apropriar-se dos trajes militares como forma de transgressão, no contexto brasileiro é claro que é também um memento do poder militar, uma referência irônica ao descompasso entre os sonhos de poder acalentados pela esquerda no passado recente e sua impotência no presente.

Se a atmosfera febril e otimista dos grandes festivais de música popular dos anos 60 teve como trilha sonora as canções de protesto e os manifestos-happenings da tropicália, o pesadelo do período Médici ficou paradoxalmente associado ao som das guitarras elétricas do rock pós-Sergeant Pepper, num punhado de canções que evocam um clima noir de desesperança e vazio que nada tem a ver com o espírito afirmativo da contracultura norte-americana — canções que, com poucas exceções, foram degustadas por um público bem reduzido. Foi só com a vitória da campanha da anistia, fechando os anos 70, que o rock voltou a explodir no Brasil como música de consumo de massa, dessa vez assumindo o caráter celebratório que é a sua vocação original.


DISCOGRAFIA

  • CAETANO VELOSO, Caetano Veloso. Philips, 1968.
  • CAETANO VELOSO, Caetano Veloso. Philips-Polygram, 1971.
  • CAETANO VELOSO, Transa. Philips, 1972.
  • ELIS REGINA e JAIR RODRIGUES, Dois na bossa. PolyGram, 1965.
  • FRANK ZAPPA e THE MOTHERS OF INVENTION, We’re only in it for the money. Verve, 1968.
  • FUGS, Virgin Fugs. ESP-Disk, 1965.
  • GAL COSTA, Gal a todo vapor. Philips, 1971.
  • GILBERTO GIL, Gilberto Gil. Philips, 1968.
  • GILBERTO GIL, Gilberto Gil. Philips, 1971.
  • GILBERTO GIL, Expresso 2222. Philips, 1972.
  • JARDS MACALÉ, Jards Macalé. Philips, 1972.
  • JEFFERSON AIRPLANE, Surrealistic pillow. RCA Victor, 1967.
  • JEFFERSON AIRPLANE, Crown of creation. RCA Victor, 1968.
  • JEFFERSON AIRPLANE, Volunteers. RCA Victor, 1969.
  • MARIA BETHANIA, Maria Bethania. RCA, 1965.
  • MILTON NASCIMENTO, Milton. Odeon, 1970.
  • MILTON NASCIMENTO E LÔ BORGES, Clube da esquina. Odeon, 1972.
  • OS MUTANTES, Mutantes. Polydor, 1969.
  • OS MUTANTES, Mutantes e seus cometas no país do Baurets. Polydor, 1972.
  • NARA LEÃO, Nara Leão. Philips, 1968.
  • RAUL SEIXAS, Gita. Philips-Phonogram, 1974.
  • RAUL SEIXAS, Novo Aeon. Philips-Phonogram, 1975.
  • SÉRGIO SAMPAIO, Eu quero é botar meu bloco na rua. Philips, 1973.
  • TOM ZÉ, Tom Zé. Rozemblit, 1968.
  • TORQUATO NETO, Torquato Neto. Centro de Cultura Alternativa / Rio Arte / Projeto Torquato Neto / Secretaria de Cultura, Desportos e Turismo do Piauí, 1985.
  • Tropicália ou Panis et circensis. PolyGram, 1968.

Texto incluído em Torquato Neto.

 
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