esqueceu sua senha?         cadastre-se
busca   loja          aquele abraço  
 
     
 
A Cruzada Tropicalista
Nelson Motta
Última Hora - 5 de fevereiro de 1968

O filme Bonnie and Clyde faz atualmente um tremendo sucesso na Europa e sua influência estendeu-se
à moda, à música, à decoração, às comidas, aos hábitos. Os anos 30 revivem em força total. Baseados nesse sucesso e também no atual universo pop, com o psicodelismo morrendo e novas tendências surgindo, um grupo de cineastas, jornalistas, músicos e intelectuais resolveu fundar um movimento brasileiro mas com possibilidades de se transformar em escala mundial: o Tropicalismo.
Assumir completamente tudo que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética,
sem cogitar de cafonice ou mal gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra ainda desconhecido.

A festa
O lançamento da cruzada tropicalista seria feito em uma festa no Copacabana Palace. A piscina estaria coberta de vitórias-régias, palmeiras por toda a pérgula, bebidas servidas em abacaxis ou cocos, abacaxis que também serviriam de abajur, iluminados por dentro.

A música baseada em samba-canção da década de 50 e o menu, sofisticadíssimo: aperitivo; batida de ovo; entrada; sanduíche de mortadela com queijo-de-minas (facultativo); vatapá como prato forte e maria-mole de sobremesa. Ao final, em vez de licor, seria servido xarope Bromil em pequenos cálices.

A moda
O terno de linho branco, requinte supremo. Mas cuidado com as lapelas, que devem ser o mais largas possível. Também é permitido o azul-marinho listradinho de branco, mas penas quando usado com gravata vermelha de rayon.
A camisa deve ser de nylon, de preferência com abotoaduras de grandes pedras. Na gravata, pérola,
é claro, podendo os mais sofisticados usar uma esmeralda ou uma água-marinha, que como se sabe,
é a pedra da moda...

Há uma corrente que defende o lançamento de calças idênticas às de Renato Borghi em O Rei da Vela,
as calças pansexuais.

Para a praia, a moda seria calção de nylon, mas com seu comprimento reduzido por dobras manuais, assim como a camisa de linho branco que teria suas mangas também dobradinhas com esmero. Bonés, muitos bonés na praia do Posto 4. Bonés brancos com palas de plástico verde transparente (para proteger do sol). Para os mais requintados: óculos ray-ban. Ou de espelho.

Turquesa, laranja, maravilha e verde-amarelo seriam as cores da moda, usadas pelas mulheres em vestidos pelo meio das pernas se abrindo em grandes rodas. Anáguas, muitas e engomadas anáguas, sempre é bom. Laquê, litros de laquê, para todas as mulheres fazerem grandes penteados, quanto mais alto o cabelo, mais bonito. O Tropicalismo vence.

Para os homens não ficarem atrás, a grande novidade é a tintura para cabelo, mesmo aqueles que não
têm cabelos brancos, só pra dar "aquela" tonalidade levemente azulada. Para os cabelos a cor
é "asa de graúna" e muita brilhantina Royal Briar e Glostora, que ressaltam e perfumam o penteado.

A vida

Já é tempo de abandonar as influências estrangeiras e criar nossos próprios grandes místicos. Quem tem Arigó não precisa de Muriaachi Maeshi para nada. Lançados cartazes com grandes figuras nacionais do Tropicalismo, para todo mundo colocar em suas salas gigantescas fotografias de Ademar de Barros, Leonel Brizola, Benedito Valadares, grandes ases precursores do Tropicalismo.

Um dia estoura a notícia: "Chico Buarque e MPB4 vão para Jaú, onde ficarão meditando com Joãozinho
da Goméia". Logo milhares de jovens estarão invadindo Jaú - a nova cidade-santuário do Brasil.

Magaldi e Maia estarão utilizando um novo estilo de publicidade, baseado no das Casas Pernambucanas, que existe em programas de teatro e, principalmente, no "veja ilustre passageiro que belo tipo faceiro..."

Fotografia, só preto-e-branco mas pintada à mão. Atenção principalmente no leve rubor das faces.
Abaixo o ektachromel.

A arte
Precisamos renovar a arte no Brasil. É preciso mais do que nunca reabilitar Oswaldo Teixeira, trazer de novo para os lares as naturezas-mortas, os tachos de estanho e de cobre, frutas espalhadas pelo meio. Que volte a pureza de formas, a mestria e delicadeza do traço. Fora com Portinari e Antonio Dias!

Para o Conselho Federal de Teatro os nomes indicados serão Gomes Leal e Américo Leal, o genial inventor do strip-show do meio-dia à meia-noite: o strip-tease começa quando você chega. Paissandu estará
às moscas enquanto que o Cineac viverá seus momentos de glória, maior o pecado ao alcance de todos,
o verdadeiro cinema-verdade.

O samba-canção, forma nacional de música, viverá o seu grande esplendor e o cavaquinho será eleito
o instrumento da moda, em substituição às antiquadas e estrangeiras guitarras elétricas. Cada jovem terá em seu quarto um cavaquinho e muitos conjuntos surgirão, muitos regionais, todos uniformizados e com
o indispensável chapéu de palhinha, já que o chapéu-chile é só pra usar na rua, com o terno de linho.

Enquanto existir Tom Jobim e Vinicius, o Tropicalismo estará furado. Que grandes retratos de Vicente Celestino e Gilda de Abreu iluminem os quartos dos jovens e sirvam como ideal inatingível de amor perfeito e visão do mundo.

Está decretada a falência de qualquer outra forma de iluminação que não seja abajur de vidro que roda
e sai fumacinha do desenho do trem ou ainda o modelo de caramujo ou concha.

Iluminação também válida é a luz vermelha ou verde que acompanha a imagem de São Jorge, que deve estar sempre em cima da cristaleira.

Pingüim de louça só em cima da geladeira. Em cima da geladeira é também tolerado qualquer outro bicho, desde que de louça recoberta de camurça.

No liqüidificador, uma grande saia de baiana de plástico e para o puxador da geladeira nada mais certo que um grande peixe também de plástico. O plástico e a louça são materiais do Tropicalismo por excelência.

A filosofia
"Diga-me com quem andas e te direi quem és." "Eu sou um homem que trabalha há dez anos e nunca tirou férias." "Graças a Deus não devo nada a ninguém e na minha casa não falta nada." "Já criei meus filhos
e casei minhas filhas e posso descansar em paz." "Os melhores perfumes estão nos menores frascos."

"Verde assim que dirá madura." "O cachorrinho tem telefone?" "Esta era a nora que mamãe queria."
"Filha minha jamais fará isto." "Desquitada e vagabunda pra mim é tudo a mesma coisa." "Arte moderna
é para enganar os trouxas." " Está pensando que eu sou otário?" "No meu tempo não havia disto."

Essas e muitas outras frases do gênero, além de quase todos os provérbios da língua portuguesa, formarão a linha mestra da filosofia de vida tropicalista. Dia das mães, réveillon e Natal são festividades da maior importância porque o Tropicalismo exige eventos e efemérides. As comemorações serão feitas ao ar livre, em contato com a Natureza, em infindáveis piqueniques onde estarão sempre presentes laranjas, bananas, fritadas de vagem e garrafas de guaraná com leite dentro, rolhas de papel de pão. Abaixo os jantares
e coquetéis. Viva o piquenique!

Não percam batizados e paradas de Sete de Setembro. É chiquérrimo!

São Jorge é o nosso santo e carnaval a nossa festa.

Por um mundo tropical! Pelo sol! Pela ginga do brasileiro!

Viva o trópico! Viva o trópico! Viva o trópico!

PS - Não esquecendo que os sapatos de homem devem ter sempre duas cores e o material nobre é crocodilo ou cobra. Para mulheres, forrados de cetim, o salto bem fino alto e o bico mais agulha possível.

 
  voltar      topo      home produção acadêmica      bibliografia      filmografia      ficha técnica      fale com a gente      cadastre-se  
  Parceria:
Realização:   Patrocínio: