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Momentos do Movimento
Rogério Duarte
Extraído de Tropicália 20 Anos, SESC, 1987.

Sem perguntas-respostas, 60 minutos de fita gravada, com Ricardo Muniz entrevistando Rogério Duarte
em um “claustro” do convento da Lapa: Salvador, Bahia, 10 de agosto de 1987.

PLAY – Não se pode colocar qualquer movimento dentro da cultura brasileira como algo desvinculado
e autóctone. Existe uma relação básica entre os movimentos nacionais e os movimentos internacionais. Atualmente e sempre não existe uma História Brasileira assim como não existe uma História Francesa, tudo é uma imbricação de problemáticas. Aquela música de Caetano em que ele fala “Arrebentar as prateleiras... É proibido proibir” é uma homenagem ao movimento estudantil na França. A bandeira de Hélio Oiticica, “Seja marginal, seja herói”, é movimento de contracultura, idêntico ao americano, ao francês.

O movimento modernista está ligado a toda a vanguarda européia: futurismo, dadaísmo, surrealismo,
e foi preciso que na Europa se descobrisse o nacionalismo para que no Brasil nos sentíssemos autorizados a fazer uma arte nacional = Movimento Pau-Brasil.

PLAY – A música é considerada sempre uma arte tardia, porque ela consolida as revoluções, porque
é através da forma que ela age, de uma forma muito profunda. Sempre houve uma hierarquização
de artes maiores e menores, onde se falava de música popular e música artística como dois elementos quase que opostos; e a grande força do Tropicalismo foi assumir essa contradição que já se encontrava
em toda a arte nacional. Em Villa-Lobos vemos isso claramente. Sua música não é composta nos moldes clássicos europeus de um tema versus contratema. Não! Ele mescla centenas de temas numa espécie de carnaval alucinado e barroco, que é uma das principais características no Tropicalismo, essa contribuição milionária de todos os erros, o abandono de um critério acadêmico e conservador de bom gosto e mau gosto. O mau gosto entra na estética e abole com o frio e branco bom gostismo predominante, e isso gera uma revolução...

PLAY – No Rio de Janeiro ocorre o momento do encontro, é lá que surge o movimento. O movimento pode ter sido urdido a nível uterino da Bahia, mas o parto é carioca. Lá é que tem a maternidade e a tecnologia pra poder extrair esse rebento. Em Santo Amaro está a inspiração, mas a ferramenta está no Rio, e Caetano é que faz essa passagem...

PLAY – O Tropicalismo só toma corpo quando duas forças se encontram e oferecem seus aparatos, suas ferramentas para a elaboração de um projeto maior.

Quando Caetano chega ao Rio, ele ainda é provinciano, cantando aquelas músicas líricas, um pouco apolínea, lúdica, João Gilbertiana. Há certo contemplativismo, ou seja, não existe o fermento da revolta.
É através do contato com o Rio, com a violência; o choque da modernidade que vai produzir essa resposta síntese, dialeticamente ultrapassando a contradição que havia até então entre arte maior e menor, surgindo essa proposta revolucionária que rompe essa hierarquia...

Há uma revolta contra o artesanato, surgindo o pensamento do Design. Surge o cinema novo, tentando de certa maneira superar o teatro enquanto forma de comunicação social, ampla e revolucionária. A música industrializada. Discos em contraposição ao tradicional pagode ou samba de roda artesanal... essa vontade de tomar o poder.

PLAY – Este era o pensamento dos tropicalistas: nós não estamos aqui como os sambistas de morro, que serão confinados a um lugar no quintal onde eles farão seus pagodes e tomarão sua cachaça. Não! Nós queremos invadir a sala de visitas e acabar. Nós vamos antropofagicamente pinçar elementos stravinskianos, schoemberguianos, de toda a vanguarda da música Pop, de tudo mais, e vamos inventar essa coisa do som universal. Abolir os preconceitos xenófobos.

PLAY – Na visão elitista de então havia uma série de pseudonacionalismo purista, que era aquela idéia
do nosso bom crioulo, nosso samba autêntico, tudo isso como se fosse uma forma estagnada,
não destinada a um processo de transformação...

PLAY – O momento internacional na era do Tropicalismo me parece basicamente uma visão terceiro mundista, um momento de anticolonialismo, uma abertura muito grande para o pensamento negro/africano, ou seja, o etnocentrismo branco/oficial começa a nível de estética a se esboroar...

PLAY – Nós queremos invadir a sala de visitas e acabar...

PLAY – A manifestação dessa audácia brasileira...

PLAY – Essa tomada de consciência de si, da brasilidade...

PLAY – Em 68/69, juntamente com Hélio Oiticica, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, nós organizamos alguns encontros. Um deles se chamava apresentação da cultura/loucura brasileira. Dele participaram Chacrinha, ao mesmo tempo Nuno Veloso, intelectuais sofisticados, sociólogos, na busca de gerar um discurso brasileiro. Aquilo foi muito combatido pela esquerda tradicional, colonizada, que recebia o pensamento via Leandro Konder, Rosa Luxemburgo, essa turma toda. Nós não cabíamos nessa gaveta
e fomos rejeitados por isso; por buscar uma totalidade num momento em que tudo estava compartimentalizado. O Tropicalismo e sua força significam isso. Ele não é um movimento, mas um momento de um movimento que já começa muito antes.

PLAY – Na minha juventude, eu dizia que o Brasil era um país que não poderia ter filósofos. É curioso
que Caetano, muitos anos depois, faz aquela música, “Língua”, onde ele diz “tá provado que só é possível filosofar em alemão”. É isso aí! O samba do crioulo doido é o próprio discurso brasileiro. Contaminado
de miséria, sofrimento, inconsciente. Refratário a uma sistematização filosófica, mas esse discurso do crioulo doido, à medida que amadurece, deixa de ser apenas um discurso irracional. Começa a colocar
uma síntese dialética, uma nova forma de pensamento.

PLAY – Nesse sentido é que ele se tornou um movimento que não pode ser absorvido nem pela esquerda ou pela direita, nem por nenhum dos movimentos existentes na época, que era apenas setoriais, incapazes de entender sua identidade, sua idéia de totalidade.

PLAY – Há também em Villa-Lobos o samba do crioulo doido. Em Glauber Rocha, fundamentalmente na Idade da Terra; em Oscar Niemeyer e sua arquitetura, em Lina Bo Bardi, no seu trabalho que expressa toda uma visão terceiro mundista de cultura e de arte; em Zé Celso com o movimento do Teatro Oficina. Depois estes elementos passam a ser chamados de tropicalistas, mas na época ninguém se intitulava dessa forma, estávamos juntando forças e tentando fazer uma revolução estética no Brasil. Fica difícil dizer que
o Tropicalismo foi um movimento como o movimento da semana de arte moderna. Há uma diferença:
lá existia um programa, um manifesto, uma semana; no Tropicalismo houve vários... sem sistematização... Uma característica importante do Tropicalismo, e talvez única, é que ao mesmo tempo ele foi um movimento de vanguarda e amplamente de massa. Ele não é um movimento, mas um momento
de um movimento que já começa muito antes.

PLAY – Antes do golpe de 64 havia um discurso mais aberto, que na época do movimento já não era mais possível. Nós tínhamos que traduzir certas coisas em outro nível. Não podíamos fazer comícios relâmpagos na rua, então transferíamos a coisa para os shows. A prova é que Caetano vai exilado com Gil, eu vou preso, torturado; os principais membros do movimento são desbaratados, os que representavam o rabo
da lagartixa de 64 que estava ainda se bulindo. Vem aí o AI-5 pouco depois do show da Gal e daí se completa também a derrota do Tropicalismo. Assim como houve a derrota também do movimento 68,
em Paris, assim houve o fim do Tropicalismo. Godard não existe mais, existe um cinema conservador
para consumo de uma classe média conformista. No mundo todo a grande aventura terminou, com o pavor da Aids, cada macaco no seu galho, essas coisas...

PLAY – Não fomos destruídos individualmente, mas a força geral do movimento foi destruída pelo subdesenvolvimento brasileiro, pela continuação do Estado nosso dependente do imperialismo e das multinacionais que impedem realmente uma tomada de consciência brasileira...

PLAY – O Tropicalismo, embora ultrapasse o seu próprio rótulo, seu próprio nome, é a possibilidade
da cultura e da vida no Brasil, porque nós somos mesmo tropicais.

Os últimos tropicalistas estão muitos aqui na Bahia, eu, Gil, Waly. A Bahia é um pouco como a comuna
de Paris, a esperança daquilo que a gente não conseguiu em termos de tomada de poder nacional, a gente vem fazer na Bahia, que ainda é um lugar que tem a espiritualidade e um nível de cultura que permite certas coisas...

Aqui na Bahia acontece uma coisa curiosa, dialética. O povo se prostitui aceitando um reificação para
o consumo mas, ao mesmo tempo, se organiza e tenta ultrapassar essa condição. Aqui há uma cultura popular verdadeira, que não é dependente; aqui ainda há as raízes de uma vida popular, que numa grande cidade industrial não tem, pois a pessoa é condenada a se “classimedianizar” ou lumpenzinar, não tem
a opção da economia alternativa que aqui ainda tem, suas capoeiras, terreiros, espaços vitais onde pode crescer toda uma CULTURA. Ainda há, digamos assim, a terra; não foram “despaizados” como nas grandes cidades, onde se formam guetos totalmente dependentes de uma coisa exterior... Digamos assim, a Bahia ficou com o último reduto da Tropicália. Um laboratório de ensaios.

PLAY – O Tropicalismo, embora ultrapasse o seu próprio rótulo, o seu próprio nome, é a possibilidade
da cultura e da vida no Brasil, porque nós somos mesmo tropicais, não somos tropicalistas mais,
mas continuamos tropicais... Não há outra saída para o Brasil, que não seja seus próprios caminhos.
Não adianta a gente tentar implantar aqui o capitalismo nos moldes americanos, ou socialismo nos moldes russos. Na verdade, eu não vejo uma saída desse mundo a não ser... nós somos o anunciante do terceiro milênio. O terceiro milênio ainda não começou...

PLAY – A manifestação dessa audácia brasileira. Há aí um mito. O mito do terceiro milênio, a idéia de que o Brasil, por ser o país mais miscigenado, é aquele que pode fornecer a resposta, pelo menos em potência, mais universal.

PLAY – O terceiro milênio ainda não começou. Como dizia Rimbaud, a verdadeira vida está para ser inventada. Então, eu quero terminar com um cara que acho genial, Rimbaud. Eu diria que o verdadeiro Tropicalismo também está para ser inventado. Uma coisa, não sei com que nome, nem com que forma, mas não vejo a não ser por essa direção.

 
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