Leituras complementares

lina bo bardi

← Voltar

Lina Bo Bardi
A arquitetura e o artesanato popular
Antonio Risério
Extraído de Avant-Garde na Bahia, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1995

Tentando definir o pensamento de Lina, em seu eixo central, talvez possamos resumir tudo numa fórmula: a arquitetura se integra ao urbanismo e o urbanismo se resolve na dimensão antropológico-humanista. Não que ela tivesse um pensamento urbanístico sistêmico, coeso, que funcionasse como matriz de projetos técnicos. Não, fez apenas considerações vagas, genéricas, e muito pouco “cartesianas”, sobre o assunto. Sua inteligência se concentrou na Casa. Mas ela sabia muito bem que uma cidade não é um aglomerado de delírios pontuais.

Graças à sensibilidade antropológica, Lina vai ver a chamada cultura popular como cultura. Some-se a isto a sua abertura estética e o produto cultural popular é então encarado como tal, apreciado pelo seu valor intrínseco. Não é mera “curiosidade”, resquício ou documento de época, fetiche sub-romântico, receptáculo de nostalgias e sentimentalismos inarticulados, construção imperfeita resgatada pela “cor local” ou abrigada pela complacência paternalista. Lina é inimiga dos futurófobos, dos passadistas profissionais e do folclorismo. “A nossa reação não é uma reação romântica. Nem conservadorismo obtuso, de múmias. Nem anti-modernismo. Nem ‘reação’. Se algum resmungador do passado desfraldasse a nossa bandeira para fins da mumificação, nós ficaríamos profundamente ofendidos; se algum amante da cor local e do folclore barato se colocasse ao nosso lado, seríamos obrigados a lhe pedir que nos deixasse só. Somos modernos”, escreveu. Lina é o anti-folclore. Olha para um produto do artesanato popular não com o fascínio esnobe pelo frescor, pelo ingênuo ou pelo espontâneo. Não é dos que sublimam imperfeições em “primitivismo”. Nem submete à idealização o que está comprometido pela miséria. Com ela, o objeto popular é visto em sua inteireza e dignidade. Respeitado como trabalho humano e como solução criativa diante de um certo problema e a partir de determinados materiais. Socioantropologicamente.

Não por acaso o museu de arte moderna dirigido por Lina se desdobrou num museu de arte popular. Não por acaso, também, a designer foi ao encontro do artesanato. Neste caso, em busca de resultados bem práticos, convergindo para o projeto de desenvolvimento nordestino da Sudene de Celso Furtado. “Procurar com atenção as bases culturais de um país, (sejam quais forem: pobres, míseras, populares) quando reais, não significa conservar as formas e os materiais, significa avaliar as possibilidades criativas originais. Os materiais modernos, os modernos sistemas de produção tomarão depois o lugar dos meios primitivos, conservando não as formas, mas a estrutura profunda daquelas possibilidades. (…). O Desenho Industrial e a Arquitetura de um país baseados sobre o nada, são nada. Esta procura numa base rigorosamente científica, ridiculariza os romantismos populistas, as falsas tradições, todas as formas de enlanguescimento cultural, assim como as atitudes da tecnocracia ideológica. (…). É a rede de Che Guevara, são os ‘buracos’ e as flechas do Vietnã contra o requinte do mundo ocidental”, acreditava ela.

O que Lina queria, em última instância, não era a conservação, a permanência, o imobilismo – mas o salto. Buscava, no artesanato (“pré-artesanato”, ela insistia), as bases para chegar a uma alternativa brasileira, no campo do design, à linha norte-americana dos gadgets, das engenhocas elétricas da sociedade de consumo. Para falar em seus termos, caminharíamos do “pré-artesanato” (com base em sua cultura ítalo-medieval, Lina vinculava o “artesanato” à existência de “corporações”, implicando um razoável grau de padronização-estagnação da produção – coisas que dificilmente seriam encontradas no Brasil) à indústria. O Museu de Arte Popular (Bahia, 1960), tendo como sua “esfera de influência” o Recôncavo Baiano e o chamado Polígono das Secas, foi criado “visando a passagem de um pré-artesanato primitivo à indústria moderna”. Tínhamos “uma fartura cultural ao alcance das mãos, uma riqueza antropológica única”. E era possível construir, a partir daí, um design brasileiro, de garfos a garrafas, de copos a luminárias.