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Historic Press

Que caminhos seguir na música popular brasileira
Mesa redonda
Revista de Civilização Brasileira nº2 –  maio de 1966

debatedores:
FLÁVIO MACEDO SOARES (Crítico)
CAETANO VELOSO (Compositor)
NELSON LINS E BARROS (Crítico)
JOSÉ CARLOS CAPINAN (Poeta)
GUSTAVO DAHAL (Cineasta)
NARA LEÃO (Cantora)
FERREIRA GULLAR (Poeta)

coordenador:
AIRTON LIMA BARBOSA (Músico)

Em virtude da crise atual da música popular brasileira, a “Revista Civilização Brasileira”, reuniu músicos, compositores, intelectuais e estudiosos de música popular para um debate sobre os caminhos da música popular brasileira, que foi organizado e coordenado por Airton Lima Barbosa, do Quinteto Villa-Lobos.

FLÁVIO MACEDO SOARES: Inicialmente seria interessante nos reportarmos a um tempo específico dentro do processo da realidade da música popular brasileira. Em meu caso em particular vou tentar focalizar problemas de uma conjuntura dada. E essa conjuntura corresponde mais ou menos aos últimos dois anos. Como nós sabemos, nessa época, o país se encontrava numa série de crises políticas. Não por acidente mas porque estava ligada a todo um processo, a música popular brasileira se viu incluída em várias crises consecutivas que nos colocaram diante de novos problemas a enfrentar, novas soluções a procurar. Particularmente, podemos assinalar dois acontecimentos: primeiro, a emergência de toda uma nova linha dentro da bossa-nova (coisa que, já tratei em artigo separado para esta mesma revista); e logo em seguida, um fenômeno mais vasto mais complexo (também facilmente explicável) – a ampliação de todo um substrato da música popular que tem recebido popularmente o nome de iê-iê-iê. Isto nos coloca face a uma nova conjuntura, a novos problemas a resolver. Acho que o período atual é excepcionalmente difícil para a música popular brasileira. Dentro do esquema de reconhecer que existe uma crise, exemplificada em várias manifestações diferentes, é de suma importância procurar ver o que havia antes dessa crise e o que há agora, ver principalmente as relações do que havia antes com o que há agora, tentando descobrir o que é possível e necessário conservar, o que deve ser mudado, substituído. Isto serve de preâmbulo para alguns problemas que eu quero abordar em particular.

Realmente, dentro da conjuntura que havia antes e de certas linhas que já se tinham denunciado na bossa-nova, cresceu uma geração toda nova de músicos, como Caetano Veloso (aqui presente), Gilberto Gil, Chico Buarque, Edu Lobo etc. Esta geração, se bem que ampliando uma área que já tinha sido explorada antes pela bossa-nova mais antiga, não conservou nesse período (dois anos) de crise, certas características que eu reputo essenciais. Uma dessas características era a visão da cultura não como manifestação isolada, mas como parte de um todo uno, no qual a música popular, a poesia, a literatura, o cinema e o teatro estavam entrosados. Podia-se dizer que havia, através de certas instituições como o ISEB, o CPC, uma tentativa séria – embora pequena ainda, no sentido de fazer uma universidade brasileira (universidade no sentido real da palavra), na qual houvesse um entrosamento tanto no plano ideológico como no prático, com apoio de parte a parte. Esta tentativa se perdeu. Atualmente, os músicos da boa música popular brasileira estão por uma série de razões agindo e pesquisando individualmente.

O essencial, o objetivo básico de agora, se quisermos fazer alguma coisa para melhorar o nível geral da cultura brasileira e ter um contato mais imediato com a realidade, com os problemas e o povo, o essencial é antes de mais nada tentar recuperar essa universidade brasileira. A partir do momento que houvesse isso, o conteúdo da arte produzida por ela não poderia ter um caráter harmonizante e sim de aguçamento dos contrastes sociais existentes. Num contexto capitalista, uma arte de progresso, de ação, deve ter como premissa básica aguçar as contradições existentes e nunca conciliar o público ou dar ilusão de que ele não está dividido. Ao contrário, tem de provocar, salientar, denunciar essa divisão. Este papel, acho fundamental. Não vou descer a detalhes – são inúmeras as maneiras de se fazer isso.

As possibilidades, as virtualidades que nós temos não estão sendo usadas. A nossa música popular tem sido muito pouco agressiva. Temos possibilidades de autopromoção, de ação, possibilidades de trazer gente nova a um primeiro plano de aparecimento ao público – o que não tem sido feito, e é da maior gravidade. Enquanto os elementos mais alienados da música popular brasileira usam de todos os meios possíveis para se promover e agir, nós temos realmente faltado neste setor.

É preciso antes de mais nada uma união em torno do todo cultural. (E isto seria o primeiro passo). A característica essencial desta união seria a de entrar num terreno em que a arte popular alienada não nos pode seguir, como arte fragmentária e desligada da realidade que é. E se ela também entrasse nesse terreno perderia ao menos algumas de suas características básicas, pois teria, ainda que precariamente, que se integrar. Uma música com “Mangangá de Barriga Amarela” por exemplo (que é basicamente gratuita, sem sentido) não poderia mesmo se quisesse se integrar no cinema, teatro etc. E nós teremos possibilidades deste entrosamento na medida em que possuirmos uma unidade de objetivos. Apesar das dificuldades que existem, a divulgação teria que ser feita de uma maneira mais sistemática, mais cuidadosa, jamais permitindo aos representantes de nossa música popular um acanhamento, uma atitude de abstenção.

CAETANO VELOSO: A questão da música popular brasileira vem sendo posta ultimamente em termos de fidelidade e comunicação com o povo brasileiro. Quer dizer: sempre se discute se o importante é ter uma visão ideológica dos problemas brasileiros, e se a música é boa, desde que exponha bem essa visão; ou se devemos retomar ou apenas aceitar a música primitiva brasileira. A única coisa que saiu neste sentido – o livro do Tinhorão, defende a preservação do analfabetismo como uma única salvação da música popular brasileira. Por outro lado se resiste a esse “tradicionalismo” – ligado ao analfabetismo defendido por Tinhorão, com uma modernidade de idéia ou de forma imposta como melhoramento qualitativo.

Ora, a música brasileira se moderniza e continua brasileira, à medida que toda informação é aproveitada (e entendida) da vivência e da compreensão da realidade cultural brasileira. Realmente, o mais importante no momento (como se referiu o Flávio) é a criação de uma organicidade de cultura brasileira, uma estruturação que possibilite o trabalho em conjunto, inter-relacionando as artes e os ramos intelectuais. Para isto, nós da música popular devemos partir, creio, da compreensão emotiva e racional do que foi a música popular brasileira até agora; devemos criar uma possibilidade seletiva como base de criação. Se temos uma tradição e queremos fazer algo de novo dentro dela não só teremos de senti-la, mas conhecê-la. E é este conhecimento que vai nos dar a possibilidade de criar algo novo e coerente com ela.

Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com que frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. Paulinho da Viola me falou há alguns dias da sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos. Tenho certeza que, se puder levar essa necessidade ao fato, ele terá contrabaixo e terá samba, assim como João Gilberto tem contrabaixo, violino, trompa, sétimas, nonas e tem samba. Aliás João Gilberto para mim é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música popular brasileira. Creio mesmo que a retomada da tradição da música brasileira deverá ser feita na medida em que João Gilberto fez. Apesar de artistas como Edu Lobo, Chico Buarque, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Maria da Graça (que pouca gente conhece) sugerirem esta retomada, em nenhum deles ela chega a ser inteira, integral.

NELSON LINS E BARROS: Eu discordo inteiramente dessa posição um tanto saudosista do Caetano Veloso. João Gilberto, na minha opinião, foi a cristalização de um estilo que representava a bossa-nova como música intimista e impressionista que ela se propunha – e conseguiu – a ser. Até certo ponto definiu uma linha de interpretação da qual aliás sou o maior fã, mas que representa um afastamento da tradição musical brasileira. Não que eu esteja contra João Gilberto, nem defendendo a tradição brasileira. A nossa maior contradição enquanto artista é a de pretender um desenvolvimento estético e formal, para o qual o povo, a quem nos dirigimos, não está preparado. João Gilberto cristaliza uma evolução do cantor no sentido de interpretação e do preciosismo que representa o advento do microfone e das gravações de alta-fidelidade. Isto aliado também a uma interpretação muito personalista, que causou certas confusões em torno do que seria e como deveria ser cantada a bossa-nova. Tenho a impressão de que seria um erro voltarmos a João Gilberto. Nós temos que enfrentar a realidade. E a realidade atual é da estridência. A juventude gosta da estridência, porque representa a civilização moderna. A própria Maria Bethânia é a negação de João Gilberto.

CAETANO: Maria Bethânia sugere uma retomada. Edu Lobo também. Não me considero saudosista e não proponho uma volta àquele momento e sim uma retomada das melhores conquistas (as mais profundas) desse momento. Maria Bethânia cantando “Carcará” sugere esta retomada. E é a estridência, o grito.

NELSON: Estou de pleno acordo que nós devamos trabalhar no sentido de encontrar uma estética própria para a música brasileira dentro do seu próprio processo evolutivo.

JOSÉ CARLOS CAPINAN: Gostaria de me referir principalmente à música como forma de conhecimento que preexiste à sociedade capitalista, de forma espontânea ou ligada vivencialmente ao homem, às suas experiências e necessidades, e que se desenvolvem para encontrar em nossa sociedade não uma razão de sossego ou morte mas de maior vitalidade. E mais: onde têm que considerar o surgimento da indústria, o que modifica totalmente a função que a música deve exercer para corresponder a uma necessidade humana. E desde que se discute os caminhos para nossa música popular, não vejo possibilidade de se fazer um programa, criar valores e uma saída para ela sem se considerar um dado fundamental: o mercado.

Para muita gente não descubro nada. A razão maior desta afirmativa é, entretanto, o comportamento pré-capitalista da esquerda brasileira, que resiste à industrialização e vê o mercado como o grande sacrifício de sua arte. É preciso saber que a platéia é um mercado de exigências, quer receber o melhor produto para as suas necessidades da maneira mais cômoda e imediata. E barata. Se o mercado fosse dado concreto a arte pela arte não teria a carreira tão curta que teve.

Não se pode é entender que a máquina de vendas esteja predisposta a aceitar os riscos comerciais de uma música que se propõe a ser popular e entretanto progressivamente perde os seus elementos de contato e comunicação, principal componente de uma cultura de massas, e caminha de volta para o apartamento de onde surgiu e de onde raras vezes namorou a rua da janela.

Não entendo, por exemplo, como os melhores representantes de nossa música não conseguiram ainda um programa de televisão e rádio organizados e feito a serviço de nossos movimentos mais autênticos. Eles teriam passado sem transformar e deixar raízes culturais? Passaram sobre a superfície das coisas sem fixar influências? Não sei. Vejo o desenvolvimento de nossa cultura como uma tênue linha, cheia de vazios e coisas estranhas, filão de afloramentos súbitos a que ora assistimos definhar.

Preservar a música dos riscos do mercado é uma posição negativa de acanhamento que terá como efeito o contínuo afastamento desta música das áreas onde deveria estar agora, e influindo, trocando recursos, informando, alimentando a nossa juventude com aquilo que ela necessita e em potencial a nossa música possui nas raízes: calor, participação e movimento.

É verdade que o mercado facilita a deformação do produto, modificando suas origens para fazer coincidir a forma com um determinado gosto da época. E se aí encontramos alguma coisa de podre, não devemos esquecer que êle é o principal agente de contemporaneidade, imediatamente do que é oferecido. Como todos nós discutimos povo e queremos que a nossa arte seja por ele aceita e consumida, jamais poderemos esquecer a urgência que ele têm diante das coisas que obtém e consome. E o mercado não pára esperando que estejamos aptos para satisfazê-lo. Ele produz e vende. E cria distorções. Existe a propaganda, é um fator de vendas. Existe a promoção, é outro fator, e quando Roberto Carlos, Altemar Dutra, Orlando Dias e qualquer outro paralelo da submúsica assume melhor posição nas paradas de disco e, não só isso e muito mais grave, concorre na influência da formação de nossos novos músicos, é porque eles foram mais rápidos e conseqüentes na utilização destas máquinas. E só podemos suster estas deformações se possuímos, se montamos máquinas semelhantes de informação, promoção e venda. Não basta fazer música boa e esperar a recompensa e aceitação popular. A música popular brasileira deve surgir agora reconhecendo a necessidade de organizar sua infra-estrutura e revitalizar sua linguagem em intensa pesquisa de raízes e recursos contemporâneos da música.

É uma graça, mora? Não se trata de força oculta mas de mecanismo muito claro que o mercado favoreça a música alienada. Qual a arte que se espera ter em nosso mundo mais facilidade de venda? Aquela que é o resultado da alienação propiciada por este contexto ou aquela que tem a lucidez de criticá-lo ao mesmo tempo em que pretende ser vendido por este contexto organizado em mercado? Dessa contradição assiste resultar um fenômeno de pulsação controlada, que nunca permite a desimpedida prática e o desenvolvimento de nossa música. A música brasileira é uma série de fenômenos soltos episódicos, que não deixam herança. Vive a música popular brasileira surpreendida e violentada e vai resistindo como um fiozinho tênue submerso pelo tango, bolero, cha-cha-cha, rumba, rock e iê-iê-iê; nos intervalos surge para respirar, sem a experiência anterior, sem continuidade, ao contrário dos seus “adversários” que surgem mais violentos e orgânicos. Vejo que esta alternância de mercado é controlada, nos dando a certeza de que ele vai se tornando mais “lúcido” em proporção mais rápida que nós.

NELSON: Na minha opinião, a bossa-nova surgiu para enfrentar a música internacional, que por ser de melhor qualidade técnica entrava em avalanches no Brasil, deturpando a própria música brasileira, fazendo-a culturalmente menor. Pode-se mesmo afirmar que a bossa-nova surgiu como tentativa de se fazer uma música elaborada de nível internacional. É evidente que isto partiu da classe média, culturalmente ligada ao jazz – daí a série de deturpações felizmente corrigidas a tempo. O iê-iê-iê feito no Brasil também pode ser considerado como tentativa de fazer música de categoria internacional. É verdade que sob o ponto de vista de mercadoria, é preferível ter o iê-iê-iê brasileiro do que o estrangeiro. Mas sob o ponto de vista de arte, o iê-iê-iê dos Beatles é mil vezes melhor do que o brasileiro. Por outro lado, a bossa-nova – acredito eu, é uma mercadoria de nível maior do que qualquer iê-iê-iê, mas que o povo não compra. Esta contradição de compra e venda é uma contradição social. E só será superada quando superarmos também a contradição social de classes. Só a partir do momento em que não houver mais classes pobres, subnutridas, sem meios de acesso à cultura, é que vamos superar essa contradição.

GUSTAVO DAHAL: Há um momento bastante sintomático nas discussões, em que se fala de estridência. Considero este um dado real. Ou vivemos num mundo de estridência de sons e fúrias, ou o iê-iê-iê é uma manobra de propaganda. Mas não acho que se deva botar a culpa do sucesso do iê-iê-iê exclusivamente nas manobras da propaganda. Culpar as deformações do mercado, ao ver que a arte que consome e produz não é aceita universalmente, é a principal contradição do artista moderno. Tenho notado que as músicas de sucesso são boas. (O que não impede de existir músicas excelentes que não façam sucesso). Admito que exista um relativo mecanismo de alternância. Vejo a bossa-nova, por exemplo, como um tipo de alternância. Os próprios Beatles alternam coisas de grande gritaria com coisas mais românticas. No entanto, noto uma progressão – muito maior na estridência – e isto me leva a crer que ela exprime verdadeiramente o mundo moderno, é uma fatalidade da qual os compositores não poderão escapar.

Quanto ao sucesso de certas músicas “engajadas” eu o atribuo mais à qualidade musical do que ao teor de engajamento dessas músicas. (Justamente por aparecerem numa época de decadência da chamada música “alienadas”).

CAPINAN: Você tende a minimizar a deformação publicitária. E falta de estridência como fato social e índice de modernismo a cuja correspondência deve o iê-iê-iê o seu sucesso junto à massa, que vive um tempo em que a estridência progressivamente se acentua. Então como se explica o fato de os camponeses, no tranqüilo Vale do Iguape, na Bahia, cantarem o iê-iê-iê?

GUSTAVO: Mas aí já existe o problema de emulação do subdesenvolvido.

CAPINAN: Inclusive não se discute se o iê-iê-iê é válido ou não no Brasil. O que devemos manter como ponto de comum atitude é a resistência a que ele seja aceito como cultura brasileira, como resposta necessária da atual conjuntura. A forma como o capital estrangeiro participa de nossa economia faz com que a maior parte de nossos problemas seja confundida com os problemas exteriores, de nações bem mais aparelhadas para enfrentá-los e bem mais responsáveis por esses problemas. E assim como os problemas, a nossa arte que está ligada a eles tende a ser um falso produto, motivada por procedimentos estranhos e numa linguagem que nada tem a ver com nossa cultura. A nossa música pode apreender do iê-iê-iê muita coisa, mas não ser substituída por ele. Quando, por exemplo, Drummond e os melhores poetas se utilizam de recursos de uma poesia que os antecedeu, eles colocam estes recursos em outro nível, transformando as informações anteriores por uma atitude crítica diante delas. Não se fazer assim, para mim é deformação.

GUSTAVO: É evidente que o problema da importação de padrões é uma característica constante da sociedade subdesenvolvida, e só poderá ser resolvido politicamente. O público de Drummond, no caso, é sensível às suas críticas. Mas tenho minhas dúvidas de que o público que consome iê-iê-iê seja sensível às críticas que (nós desejaríamos) os compositores do iê-iê-iê brasileiro fizessem sobre ele.

NARA LEÃO: Não acho que o iê-iê-iê faça concorrência à bossa-nova. Os discos de música brasileira continuam a vender – tenho certeza disto. O que há realmente é muito pouca produção de discos de bossa-nova. Um disco depois de lançado se esgota mais ou menos em seis meses. Se depois o cantor não lança um novo disco, o seu público comprará outros discos naturalmente. Os meus, por exemplo, continuam vendendo a mesma coisa que vendiam antes do iê-iê-iê. Entretanto, nunca venderam mais do que os Altemar Dutra ou Orlando Dias. Digo mais: Roberto Carlos nunca vendeu mais disco do que Orlando Dias. Dizem também que as fábricas não querem gravar música brasileira. Isto não é verdade. Também não é verdade que só querem divulgar iê-iê-iê. Toda vez que vamos a um programa de rádio nossas músicas são tocadas. Enquanto Roberto Carlos vai a todos os programas, todos os dias, o pessoal da música brasileira, talvez por comodismo, não vai. Existe até certo preconceito – quando eu vou ao programa do Chacrinha os bossanovistas me picham, eles acham que é “decadência” ir a este programa.

FLÁVIO: Realmente, Nara, nós não esgotando as nossas virtualidades. Há muito mais coisas para fazer. Nós temos uma área muito maior do que a que estamos usando.

CAETANO: Acho absurda a afirmação de que todo grande sucesso corresponde a uma grandeza qualitativa. Sem dúvida as ondas publicitárias só acontecem possibilitadas por exigências de época, mas isso não quer dizer que elas não existam e não funcionem. É preciso saber a que servem, de que servem as grandes promoções de nomes e obras – não raro das piores coisas. Constantemente as ondas publicitárias têm sido o sintoma dos aspectos negativos da realidade. A alienação também é um dado real, é coisa definida e talvez seja o conceito que melhor defina a realidade brasileira. Eu não tenho dúvida de que muitos dos grandes sucessos se servem dela, servindo-a. O fato de saber que eles correspondem a exigências da realidade não me obriga a compactuar com eles. Pelo contrário – é exatamente criando uma cultura, correspondente com a necessidade que começam a ter os jovens brasileiros, que eu encontro minha única possibilidade – justa – de estar integrado nela. Sei que a arte que eu faço agora não pode pertencer verdadeiramente ao povo. Sei também que a Arte não salva nada nem ninguém, mas que é uma das nossas faces. Me interessa que corresponda o que faço à posição tomada por mim diante da realidade brasileira. Por mim e por todos os moços da classe-média, que estudam nas faculdades e se interessam em lutar contra a alienação. E que já são uma verdade tão intensa, que têm possibilitado ondas publicitárias, não tão grandiosas quanto o iê-iê-iê, mas bastante sintomáticas com slogans e tudo. Bossa-nova, Cinema Novo, Nara Leão.

FERREIRA GULLAR: O iê-iê-iê é um fenômeno da internacionalização da cultura. Ninguém pode deter que essas formas de música internacionais invadam os países do mundo e muito menos os países subdesenvolvidos. Impedir que uma música como o iê-iê-iê penetre no Brasil é impossível – a menos que se fechasse o país, cercasse-o, desligasse-o do mundo, o que impediria também a entrada de coisas muito mais importantes e necessárias para o desenvolvimento da civilização brasileira. Espero que no próprio desenvolvimento do processo brasileiro possa se opor uma barreira a coisas muito mais graves do que o iê-iê-iê que penetram no país. Mas qual é a maneira de impedir o malefício que a cultura de massa internacional traz para o desenvolvimento da cultura brasileira? O meu ponto de vista é que só há um modo de lutar contra isso. Não deve ser o de fechar o país mas de ter uma atitude crítica diante desses fenômenos; atitude crítica e de combate no mesmo nível que isso se coloca – quer dizer: combate cultural. É um fenômeno cultural e nós temos de combatê-lo culturalmente. Entendê-lo, criticá-lo. Com essa visão crítica eu influencio as pessoas que produzem música popular. O debate as influencia, chama a atenção dessas pessoas para uma série de fenômenos faz com que elas entendam o que está acontecendo e a natureza da própria influência exterior que está dominando o mercado da música. E pode como resultado fazer com que os compositores procurem dentro da própria cultura brasileira, nos elementos populares da música brasileira, a fonte de uma nova criação que possa ser realmente fazer frente a essa onda internacional. Na minha opinião é esta a única maneira possível de enfrentar o problema. No caso da música popular brasileira o caso não é tão desastroso – do meu ponto de vista. Das formas de arte brasileira é a música talvez a que esteja mais entranhada no meio do povo brasileiro; é a que tem mais força, mais capacidade de enfrentar a influência estrangeira. Aí existe um consumo de música popular brasileira gigantesco. Não se pode dizer, como se diz da pintura brasileira, que é desligada da vida brasileira – pertence a uma camada de um nível bastante alto, de elite, dentro da vida cultural brasileira. O fenômeno internacional da cultura tem aspectos positivos e negativos. O fenômeno capitalista é esse mesmo: o que o caracteriza é a sua expansão indefinida, indeterminada, até morrer. Vai devorando todas as tradições populares, ao mesmo tempo que vai implantando o progresso e o desenvolvimento.

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