Ilumencarnados seres

josé celso martinez corrêa

josé celso martinez corrêa

Depoimentos

Quando ouvi pela primeira vez as músicas “Alegria, alegria” de Caetano Veloso e “Domingo no Parque” de Gilberto Gil eu senti a consagração da palavra que eu tenho por fundamental na vida: “alegria”. Senti nas canções a alegria de estar no parque, de estar na rua, de estar na Ágora, de estar na praça pública. Senti “a alegria é a prova dos nove” de Oswald de Andrade.

Montamos no Teatro Oficina “O Rei da Vela”. O espaço cênico até 1967 era o de uma caixa de sapato fechada. Mas essa peça de Oswald de Andrade pedia que nós abríssemos uma entrada de luz no teatro. Assim, transformamos o Oficina num espaço de “domingo no parque”, ensolarado, num espaço de alegria. Esse espaço hoje é o terreiro do Modernismo, do Tropicalismo. Temos aqui um teto móvel que abre para céu, é um teatro que tem seu próprio céu. O Teatro Oficina é um espaço bárbaro e tecnizado: Tropicalista.

Dediquei a montagem de “O Rei da Vela” ao filme “Terra em Transe”, de Gláuber Rocha, porque o país, como a terra inteira, estava em transe, próximo de uma revolução cultural e de uma revolução social. E, naquele momento, o filme surgiu com uma grande revelação sismográfica desse terremoto que depois foi absolutamente contido por uma contra-revolução, por um golpe militar e depois pela implantação de um modelo neocolonial globalizador.

O Tropicalismo era interligado ao movimento da terra em transe e da terra destinada a realizar uma revolução social, uma revolução que trouxesse a igualdade – o que é, por justiça, o destino do Brasil – e a soberania cultural.

É um movimento a ser completado. Eu não sei se vai continuar se chamando Tropicalismo ou Tropicália, porque é o mesmo movimento que em determinados momentos da história ganha a luminosidade de uma configuração visível, uma epifania. É o mesmo sonho de Sergio Buarque de Hollanda, de Euclides da Cunha, de Darcy Ribeiro. Vimos isso no Modernismo, mais ainda nos manifestos antropofágicos, como hoje vemos no pensamento de um Gilberto Vasconcelos, de um Bautista Vidal, de um Mangabeira Unguer, que são filósofos que estão pensando o trópico e têm uma visão política original do Brasil. Um Brasil que não se completou, que tem viva a vida de quem está onde está, localizado onde está, no trópico, coligado com outros países que estão numa situação parecida, outros países ensolarados do mundo.

O Tropicalismo é a cultura da descolonização, a cultura da libertação das forças vitais dos países ensolarados que durante o século passado foram colonizados e que agora estão sendo recolonizados pela cultura hegemônica americana. E hoje, exatamente, estamos num momento decisivo porque o Brasil vive uma relação de forças com a “cultura colonizadora” ainda mais desigual do que a do tempo da ditadura militar. No tempo da ditadura ainda havia a noção pública de cultura, havia a noção do dever público constitucional do Estado investir em cultura. Havia a consciência de haverem necessidades públicas que deviam ser enfrentadas fora da área do imediato.

Mas o capitalismo tende a ver tudo exclusivamente como produto. Então, qual a leitura que hoje se faz do Tropicalismo? O Tropicalismo é banana, uns coqueiros, uma mistura. Enfim ficou um clichê, ou seja, um tropicapitalismo. Houve uma exploração do movimento e ele é muito maior do que simplesmente uma marca ou uma coisa que aconteceu.

O fundamento no Tropicalismo é a antropofagia e só a antropofagia nos une. Então, nesse sentido, é como o marxismo também: você só entende o marxismo se está em movimento, se está em luta. Se não está em processo de devoração cultural, de criação cultural, você não percebe o tropicalismo. Não adianta estudar ele como uma coisa morta. Há que se conseguir pensar na terra em transe, pensar plugadamente. Seu corpo elétrico se plugar no corpo elétrico do que se chamava o “terceiro mundo” – aquele que não é o universo civilizador, mas um universo bárbaro que trás uma outra civilização – conseguir pensar nas forças em movimento, pensar que existe o movimento sem terra, que existe a bandidagem e que por trás da bandidagem há o rap como possibilidade de uma revolução cultural, uma continuação da revolução cultural. O Tropicalismo tem que ser apreciado no que ele tem exatamente de eterno, de quase universal, de mais nietzchiano, de mais vital.

Ele é vivo agora e é perigoso. Como diz o Guimarães Rosa: “viver é perigoso”. Mas é preciso estar num estado a perigo, num estado de jagunço, para compreender e recriar o Tropicalismo, para não cair no tropicapitalismo.

Exclusivo para o site Tropicália.