Ilumencarnados seres
nelson motta
Depoimentos
Uma noite de verão, pouco antes do carnaval de 1968, passei horas tomando chope e conversando com Glauber Rocha, Cacá Diegues, Gustavo Dahl e Luiz Carlos Barreto no Bar Alpino, em Ipanema. Entusiasmados com o cinema novo, o Teatro Oficina, os discos de Gil e Caetano, excitados com o momento político e com aquele movimento artístico que não tinha sido articulado nem tinha nome, mas estava em pleno andamento, com tantas novidades e tanta potência, começamos a imaginar uma festança para celebrar o novo movimento. (…) No dia seguinte, com a dramática falta de notícias que aflige os colunistas no verão carioca, usei todo o espaço da coluna para contar, em forma de manifesto debochado, todas as besteiras que tínhamos imaginado no Alpino. Sob o título de Cruzada Tropicalista, irresponsavelmente enchi meia página de jornal celebrando o momento artístico com uma futura festa imaginária. (…) A festa nunca aconteceu, mas a coluna teve grande repercussão e surpreendentemente foi levada a sério, comentada acaloradamente contra e a favor em outros jornais, no rádio e na televisão, que passaram a se referir ao movimento de Gil e Caetano como Tropicalismo.
Assim como tinha sido com a bossa nova, no início ninguém sabia bem o que era o Tropicalismo. Nem Caetano e Gil e muito menos eu, que no entanto falava disso todo dia na coluna de jornal e defendia ardorosamente o movimento nos programas de televisão. Eles representavam o moderno, o revolucionário, o internacional: o jovem.
Ronaldo Boscoli e Elis concordavam sobre o Tropicalismo: os dois o detestavam. E detonaram Gil e Caetano nos jornais, abriram guerra. Edu, Dory e Francis estavam chocados, não acreditavam no que ouviam. Para eles, que eram amigos e admiravam os baianos antes do Tropicalismo por suas melodias e harmonias sofisticadas, sua poesia lírica e social elaborada, que se identificavam com eles na comum origem jobino-gilbertiana, era uma traição aos ideais comuns, era andar para trás. Músicos rigorosos, Edu, Dory e Francis não compreendiam a adesão tropicalista à jovem guarda e ao rock internacional, que consideravam submúsica. (…) Chico foi mais cool. Evitou o confronto pelos jornais e ao mesmo tempo foi poupado das críticas mais fortes do Tropicalismo, que pegava mais pesado com Vandré e a “esquerda universitária” da MPB.
Um ano depois de Alegria, Alegria e Domingo no Parque, músicas com guitarras e influências inglesas não provocavam mais nenhum espanto naquele auditório, pelo contrário, representavam um tipo de música que muitos já tinham assimilado, que já gostavam e que até esperavam de Gil e Caetano. O Tropicalismo já não assustava mais ninguém. (…) Só não esperavam o que aconteceu: com roupas futuristas de plástico, Caetano e os Mutantes entraram no palco para apresentar É Proibido Proibir sob vaias e aplausos.
Muitos ainda esperavam uma outra marcha de letra cinematográfica como Alegria, Alegria, mesmo com guitarras, ou alguma coisa como a efervescente Superbacana, ou até mesmo uma rumba em portunhol como Soy Loco por Ti, América, feita por Gil e Capinan em homenagem a Che Guevara, no dia da sua morte. Mas nunca uma antimúsica como aquela, com aquela introdução longa e provocativa gritada pelas guitarras dos Mutantes e pela zoeira intencional da orquestra de Rogério Duprat, com aquela letra fragmentada e metafórica terminando num refrão que apropriava o slogan dos estudantes franceses. (…)
No meio da música, na entrada em cena do hippie urrador, a vaia se tornou tão maciça e estrepitosa que Caetano e os Mutantes tentavam cantar, mas não se ouviam, choviam tomates e ovos no palco, Caetano parou de cantar e gritou furioso para a platéia:
“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem de aplaudir este ano uma música que vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! Vocês são a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, absolutamente nada”.
Durante o festival, como um contraponto, Gil e Caetano e os Mutantes fizeram uma temporada na Sucata, de Ricardo Amaral. Polêmica, escândalo, vaias e aplausos entusiasmados, bate-bocas acalorados na imprensa, casas abarrotadas: todo mundo queria ver o que eles estavam fazendo. Até Elis, que assistiu discretamente e, discretamente, detestou. Assisti várias vezes, em cadeiras, de pé ou sentado no chão: era uma explosão de novidade e agressividade, com bandeiras de Hélio Oiticica retratando o bandido “Cara de Cavalo” morto pela polícia com o letreiro “Seja marginal, seja herói”, e outras dizendo “Yes, nós temos bananas”. O show terminava com É Proibido Proibir. Mas acabou proibido: um promotor apareceu acompanhado de um delegado, exigindo a retirada das bandeiras do “Cara de Cavalo” e, pior, exigindo que Caetano assinasse um documento se comprometendo a não falar mais durante o show. Indignado, Caetano se recusou e o show acabou ali. No dia seguinte ele me dizia e eu publicava na coluna: “O importante é não abrir concessões à repressão e assim vou continuar agindo, sem pensar onde possa parar, eu ou a minha carreira. Nós somos a revolução encarnada”.
No fim do ano, depois de tudo que tinha acontecido no Rio e em São Paulo, o festival da Record de 1968 não despertou as mesmas paixões e a grande final foi morna. (…) O maior impacto do festival foi a música classificada em terceiro pelo júri, Divino Maravilhoso, de Gil e Caetano, cantada sensacionalmente por Gal Costa acompanhada por uma banda de rock, com gritos e guitarras, cheia de brilhos e transparências, numa radical transformação da ex-Gracinha gilbertiana em uma explosão hendrixiana. Divino Maravilhoso foi também o nome do programa que Gil e Caetano comandaram fugazmente, na TV Tupi, onde radicalizaram ainda mais as propostas anárquicas do Tropicalismo e provocaram indistintamente à esquerda e à direita.
No início de dezembro o pior aconteceu: foi decretado o AI-5. Censura total, repressão pesada, cassações e prisões: terror. (…) No último Divino Maravilhoso, que foi ao ar na antevéspera de Natal, Caetano cantava Boas Festas, de Assis Valente, com um revólver apontado para a cabeça: “Já faz tempo que eu pedi/ mas o meu Papai Noel não vem/com certeza já morreu/ ou então felicidade/ é brinquedo que não tem”. Logo depois do Natal Gil e Caetano foram presos.
Extraído de Noites Tropicais – solos, improvisos e memórias musicais, Editora Objetiva, 2000
(trechos selecionados pelo autor)