Leituras complementares

balanço da bossa nova

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Balanço da Bossa Nova
Júlio Medaglia
O Estado de S.Paulo, 1966

Música popular

Em linhas gerais – e ocidentais – poderíamos dividir em três tipos preponderantes as diferentes espécies de manifestação musical popular. A primeira delas, que se convencionou chamar de “folclórica”, liga-se mais diretamente a determinadas situações sociológicas, históricas e geográficas, congregando em sua estrutura uma série de elementos básicos que a tornam característica de uma época, uma região e até mesmo de uma maneira de viver. Suas formas de expressão, em consciência, são mais estáticas e menos passíveis de evolução e influências exteriores. Aqui, a estabilidade formal, a espontaneidade expressiva e a “pureza” de elementos constituem os mais importantes fatores de sua sobrevivência e força criativa.

Os outros dois tipos de manifestação musical “não erudita” são de origem urbana, sendo qualificados simplesmente como “música popular” e possuindo as seguintes características que os identificam e diferenciam: o primeiro tem suas raízes na própria imaginação popular e é aproveitado e divulgado pela rádio, pela TV, pelo filme e pela gravação; o outro é a espécie de música popular que é fruto da própria indústria da telecomunicação. Exemplificando: o “chorinho” é uma música de origem, expressão e posse popular. O chamado “iê-iê-iê” é uma música que se tornou popular pelos meios da comunicação de massa. O chorinho é anônimo. O iê-iê-iê existe em função de um número limitado de elementos que o praticam e que alcançaram popularidade imediata através dos recursos modernos da telecomunicação. Nos recentes festivais de música popular brasileira organizados em São Paulo, onde foram apresentadas quase 6.000 composições, havia várias centenas de chorinhos e nem sequer um único iê-iê-iê, embora esse tipo de música seja, já há bom tempo, o campeão nas paradas de sucesso. Ainda que o primeiro tipo de música popular seja flexível, influenciável e evolua de acordo com circunstâncias várias, prende-se, como é natural, às características humanas da gente que a criou. Analisando-a, pode-se estabelecer um retrato psicológico dessa gente, conhecer suas diferentes facetas espirituais, suas diferentes formas de expressão, as entranhas, os recursos e o alcance de sua imaginação. O segundo tipo é artificial e amorfo; muda de estrutura rapidamente, pois se liga ao sucesso de determinada música, cantor ou forma de dança. Está quase sempre vinculado a monopólios internacionais que o relançam em vários países simultaneamente, fazendo, às vezes, traduções ou adaptações regionais, tornando-o popular independente e indiferentemente às práticas locais. No momento atual, por exemplo, a música beatle é ouvida com grande sucesso nos E.U.A. e na Indonésia, ainda que sejam países de estrutura social absolutamente diversa.

Há países que possuem apenas um desses tipos de manifestação musical popular; alguns, dois; e outros, como é o caso do Brasil, as três. Mas, mesmo considerando os países cuja produção musical inclua essas três espécies, poucos seriam aqueles com os quais poderíamos estabelecer termos de comparação com o nosso, dada à versatilidade e o alto teor criativo que elas aqui evidenciam. Se o nosso folclore é considerado pela musicologia internacional como um dos mais ricos da atualidade; se a música do iê-iê-iê, recém-importada, adquiriu imediatamente características próprias, passando logo à fase da exportação, não menos importante, rica e variada é a música popular brasileira urbana, cujas raízes se encontram nas próprias características espirituais do povo brasileiro. Veja-se, apenas nesse campo, a quantidade enorme de diferentes formas de expressão que possui o nosso cancioneiro: sejam as manifestações de massa e de rua, que têm no carnaval seu ponto mais alto; a modinha romântica e as formas de serestas, onde o trovador, de uma maneira quase medieval, entoa seus cantos desfeitos em sentimentalismos poéticos e vocais, endereçados à bem-amada distante; não menos populares e características são as canções praieiras, cujo lirismo se baseia no triângulo céu-areia-mar, cantados por aqueles que vivem no mais puro contato com a natureza. São nossos também a “roda de samba” e o samba “flauta-cavaquinho-violão”, feito por pequenos grupos, cheios de virtuosismos instrumentais e mil maneirismos plenos de graça, bossa e vitalidade. Temos o samba orquestrado – em metais e sinfônico –, o samba-exaltação, o samba-participação, o samba-de-breque, com muito humor e ironia, a samba afetivo, o samba agressivo, o samba-canção, o “sambão”, além de uma infinidade de variações regionais dessas formas e de uma quantidade ilimitada de danças, como o frevo, o baião, o xaxado, que são também urbanas, mas já se confundem com o folclore.

Nos últimos anos, porém, incorporando-se a toda essa gama variada de formas de expressão musical e acrescentando novas práticas de canto, composição e execução, mais uma tendência veio-se cristalizando e se integrando no cenário musical brasileiro. Caminhou-se, na realidade, no sentido de uma manifestação musical de câmara, de detalhe, de elaboração progressiva, que analisaremos em seguida e que a imaginação popular denominou simplesmente de bossa-nova.

Balanço: critérios

A BN, forma de expressão musical que se popularizou em meio a grandes polêmicas, adquiriu muito rapidamente sua estabilidade e maturidade de propósitos, com base numa militância anônima inicial, até a grande produção e consumo da fase profissional posterior, quando se transformou num produto brasileiro de exportação dos mais refinados e requisitados no exterior.

Fazer um levantamento estatístico do movimento seria impossível, pois de sua formação faz parte toda uma coletividade constituída não só de músicos ou artistas profissionais. Citar também grande quantidade de nomes seria desnecessário, pois, como ela se encontra vivamente integrada na realidade brasileira, todos aqueles que tiveram atuação destacada receberam o devido reconhecimento popular. Comentaremos, portanto, a atuação de elementos que ocupam os pontos-chave do movimento e cujo destaque se deve a uma contribuição mais definida. Será um trabalho crítico, mas não nos perderemos em detalhes, procurando abordar o fenômeno sob um prisma genérico, em função de sua importância real como arte autêntica: representativa das exatas características espirituais do povo brasileiro; criativa, pela introdução de novos padrões de interpretação e composição em nossa música; e de exportação, pela importância que ela pode ter, no campo da música popular, em nível internacional.

Os extremos do samba

As primeiras manifestações desse movimento renovador receberam, por parte de observadores precipitados, pouco informados ou sectários, as mais veementes críticas no sentido de que a BN não seria samba autêntico. O fato, reconhecido atualmente, de que ela representa mais uma rica dimensão da música popular brasileira, poucos anos atrás constituía até mesmo um problema de consciência artística para muitos. Quanto mais divergentes, porém, se tornavam as opiniões e mais extremadas as manifestações musicais, mais se reafirmava a tese sobre a rica sensibilidade auditiva do nosso povo, que, ao mesmo tempo, assimilava ambas as experiências musicais. Se uma modalidade de samba era extrovertida, adequada para uma prática musical de massa e de rua, outra visava uma versão musical introvertida, apropriada para a intimidade de pequenos recintos, versão camerística, portanto, sem que a presença de uma implicasse na negação da outra. O caráter grandiloqüente da “Quinta Sinfonia”de Beethoven não invalida a elaboração hiperconcentrada de seus quartetos. A “Sinfonia do Destino”foi composta para grandes salas de concertos, para ser executada e ouvida por grande massa; por essa razão seus temas são curtos (lembre-se do tema inicial, feito apenas de quatro notas, com as famosas “quatro pancadas do destino”), mais simples e facilmente assimiláveis; a instrumentação é duplicada e menos preciosística, a fim de conseguir os efeitos adequados para o espetáculo do concerto. Os quartetos, compostos especialmente para recintos pequenos, condição que pressupõe maiores possibilidades de concentração e mais direto contato com a audiência, são mais detalhisticamente elaborados, possuem condensação e economia máxima de elementos. A relação é a mesma. Os sambas de rua têm linhas melódicas mais simples, para serem facilmente cantados e assimilados; harmonias que contêm apenas os acordes básicos, para evitar a dispersão de qualquer espécie; ritmo simples, claro e repetitivo, pois sua função é condutora e unificadora. Os textos revelam uma estrutura simples, facilmente cantável e assimilável, permitindo e sugerindo, com isso, a participação inclusive da assistência. Na maioria das vezes, uma única frase é suficiente para dinamizar a coletividade. Veja-se o exemplo do último carnaval: “ui ui ui, robaro a mulhé do Rui, se pensa que fui eu, eu juro que não fui”. Mas, tomando-se o Rio de Janeiro para exemplificar nossas considerações, pois lá os fenômenos estão geograficamente melhor delineados, se o morro e a Zona Norte comandam praticamente o carnaval carioca com seus blocos e escolas de samba que injetam na Cidade Maravilhosa alta dose de uma energia que a transforma, por um período, no caos mais bem organizado do mundo, a Zona Sul, mesmo não ficando indiferente ao reinado de Momo, oferece também um outro tipo de contribuição musical que deita raízes igualmente na sua maneira de reinar. Por ser Copacabana, por exemplo, a maior concentração demográfica do País, e os seus apartamentos, os seus pequenos bares e boates, os locais onde circula diariamente toda uma faixa da população, é natural que a manifestação musical oriunda dessa região tenha características próprias. Não só a expressão “cabrocha” é substituída por “garota”, “requebrado” por “balanço”, e, às vezes, “mulata” abrandado para “morena”, como também uma forma de expressão musical mais sutil e mais elaborada se criaria ali, sugerida pela intimidade dos pequenos ambientes, diversa de uma manifestação musical oriunda de um terreiro de Vila Isabel. Surgiria uma música mais voltada para o detalhe, baseada quase sempre no canto, violão e pequenos conjuntos; desenvolver-se-ia a prática do “canto-falado” ou do “cantar baixinho” – uma vez que a audiência está próxima –, do texto bem pronunciado, do tom coloquial da narrativa musical, do acompanhamento e canto integrando-se mutuamente, em lugar da valorização da “grande voz” ou do “solista”. Essas condições de concentração permitem também o uso de textos mais elaborados, mais refinados e, não raro, com artifícios poéticos de alto nível literário. A estrutura musical é mais rebuscada; as melodias são, em geral, mais longas e mais dificilmente cantáveis, as harmonias mais complicadas, plenas de acordes alterados e pequenas dissonâncias, os efeitos de interpretação são mais sutis e mais pessoais, permitindo pequenos artifícios, como silêncios ou pausas expressivas, assim como detalhes de execução instrumentais mais sofisticada etc. Por ser também essa faixa da população mais rica, possui condições adequadas para se informar através de gravações e da imprensa, recebendo assim dados sobre o que acontece em outras regiões do mundo e com outras músicas, sofrendo influências e aperfeiçoando as suas próprias criações artísticas. Se a sutileza, o detalhe, a elaboração e a introversão são as características originais dessa espécie de música e a simplicidade, a espontaneidade num mínimo de elementos e a extroversão, as características da outra, isso não implica em maior ou menor grau de qualidade ou autenticidade de nenhuma delas. O fato de o Maracanã inteiro poder cantar em uníssono “ui ui ui, robaro a mulhé do Rui” e não poder cantar o “Desafinado”não significa – e esclareça-se muito bem este aspecto! – que esta música não seja ou não possa ser popular, ou possua algo menos que a outra (os detalhes de execução de um quarteto de Beethoven jamais poderiam ser evidenciados por uma orquestra sinfônica). O importante, digno de nota e da mais profunda admiração, pois isso é raro no mundo, é o fato de, em nosso país, ser possível a coexistência – criação e consumo popular – de dois tipos de música radicalmente opostos em suas estruturas. Mas, para completar, já que tomamos o Rio como exemplo, podemos afirmar que nem a BN é objeto estranho ou incompatível com a Zona Norte e nem a Zona Sul permanece indiferente ao “sambão” ou às manifestações de massa, sobretudo a do carnaval. O que pode acontecer – e acontece – é que os extremos do samba se toquem e se auto-influenciem, o que não representa nada de negativo para nenhuma das partes – muito ao contrário.

Divisão das águas

O movimento da BN irrompeu popularmente através de um acontecimento de rotina, mas de repercussões imprevisíveis, talvez até mesmo para os seus próprios responsáveis materiais: o lançamento de um disco. Em março de 1959, a Odeon lançava na praça o LP de um estranho cantor que cantava baixinho, discreta e quase inexpressivamente, interpretava melodias difíceis de ser entoadas, dizia “bim bom bim bom, é só isso o meu baião e não tem mais nada não”, advertindo, ele mesmo, que, “se você insiste em classificar meu comportamento de antimusical, eu, mesmo mentindo, devo argumentar que isto é bossa-nova, que isto é muito natural…” A orquestra executava uma ou outra frase e silenciava, o acompanhamento do violão possuía uma “batida” e uma harmonia completamente diferente do que se estava acostumado a ouvir, e assim por diante. Apesar de todos esses aspectos estranhos, a sensibilidade musical popular brasileira, mais uma vez, dera prova de sua aguda perspicácia, identificando, nesse estranho intérprete, algo de muito especial, consumindo esse LP em grande escala. João Gilberto era o intérprete, violonista, compositor, co-arranjador, principal responsável por esse feito, que viria modificar o curso da música popular brasileira. Esse “baiano bossa-nova”, na expressão de Jobim, pessoa de pouca prosa, provocaria, com sua manifestação musical sutil, diferente, introvertida, as mais espetaculares polêmicas que já se realizaram em torno de problemas de música popular em nosso País. É música? Não é música?”; “É cantor? Não é cantor?”; “Ésamba? Não é samba?”; “É autêntico? Não é autêntico?”. Ele próprio jamais se preocupara com essas perguntas e muito menos com as respostas. Nunca comparecera a uma discussão pública: apresentava-se na TV, rádio e boates, guardava a guitarra e se retirava. Sua autoconfiança se baseava na seriedade e no intenso trabalho de pesquisa que realizava – chegou, uma vez, a ter uma distensão muscular por excesso de exercício! –, adotando sempre uma atitude definida e radical, sem nunca ter feito qualquer espécie de concessão comercial. Sua mensagem musical, porém, fora, em muito pouco tempo, compreendida e assimilada e o conteúdo dessa mensagem seria também o marco divisor das águas. De um lado permaneceriam aqueles que possuíam uma visão ampla, viva, progressiva e aberta às novas formas de expressão musical popular e, no outro lado, refugiar-se-iam todos os saudosistas que tentavam apoiar-se em argumentos anacrônicos para justificar sua incapacidade de perceber coisas novas. A juventude, porém, identificou-se imediatamente com o fenômeno, passando logo em seguida a organizar audições dessa música em universidades e em pequenos teatros, ao mesmo tempo que iniciou a prática musical amadorística do novo estilo. O violão passou a ser o instrumento predileto da juventude. O sucesso, o consumo e a militância cada vez maiores delinearam com clareza as pretensões artísticas do movimento, dando-lhe presença estável no cenário brasileiro.

Bíblia da bossa-nova

O impacto, a polêmica e ao mesmo tempo o interesse suscitados com o lançamento do LP Chega de Saudade não foram meramente acidentais. Nele se concentravam, da maneira mais rigorosa e dentro do mais refinado bom gosto, os elementos renovadores essenciais que a música popular brasileira urbana exigia naquele exato momento, em sua vontade de assimilação de novos valores. E hoje, podemos observar claramente, que, dentro da faixa BN, aqueles que se distanciaram consideravelmente das idéias sugeridas pelo LP voltaram ao “samba rasgado” ou enveredaram para os caminhos de uma sofisticação de base jazzística, de mil maneirismos vocais, que o próprio jazz americano já superou há anos, como veremos em seguida. Seria, portanto, impossível iniciar qualquer análise da BN, sem antes considerar com mais detalhes o conteúdo desse LP.

Se o sucesso do disco despertou a atenção popular para a “figura” do cantor, ao ouvirmos a própria gravação não encontramos uma interpretação que se tenha afirmado com base na demagogia pessoal, em virtuosismos vocais ou recursos extramusicais. Ao contrário, a discrição, a sutileza e o rigor seriam os característicos básicos de sua arte.

O aspecto que de início chamou a atenção do ouvinte foi o caráter coloquial da narrativa musical. Uma interpretação despojada e sem a menor afetação ou peripécia “solística” era parte essencial da revolução proposta pelo disco. Em outros termos, era a negação do “cantor”, do “solista” e do “estrelismo vocal” e de todas as variantes interpretativas ópero-tango-bolerísticas que sufocavam a música brasileira de então. Era a vez do cantochão, da melódica mais simples e fluente, da empostação mais natural e relaxada, não raro com trechos em “lá-lá-lá” ou assobiados, onde se percebem, com toda a clareza, as mínimas articulações musicais e literárias. O acompanhamento, em vez de servir de background para o “solista”, com grandes introduções e finais sinfônicos, era, ao contrário, camerístico, econômico e muito transparente. Os instrumentos acompanhantes se integravam discretamente ao canto, com intervenções esparsas; às vezes uma única frase nos violinos durante toda uma música, ou um contraponto ao canto executado pela flauta; num momento melódico-rítmico especial, ouve-se um acorde dado pelo piano, que não comparece mais na peça; a entrada de uma segunda voz ou de um coro pianíssimo que canta uma única frase ou um contraponto em terças com o canto e silêncio; às vezes, apenas canto e percussão ou canto puro e assim por diante. Foram evitadas as introduções e finais sinfônicos – às vezes não há introdução nem final, começando ou terminando secamente ou deixando uma frase se repetir indefinidamente cada vez mais piano até desaparecer, evitando sempre perorações demagógicas. Outro aspecto inovador de grande importância e que se tornou popular após o sucesso do disco e do movimento BN, foi o desenvolvimento da linguagem violonística de acompanhamento. Até então se conheciam popularmente os acordes básicos da harmonia tradicional, sobre os quais se faziam as composições. Os acordes que tinham o nome popular de “primeira’, “segunda”, “preparação” e “terceira” posição, que na realidade eram tônica, dominante, tônica com sétima e subdominante, passaram a ser insuficientes para o acompanhamento dessas composições. Estes eram baseados, em geral, no acorde de tríades perfeitas (dó, mi, sol, por exemplo), e executados quase sempre em posição fundamental, isto é, com a nota principal do acorde (dó) no baixo. A partir da BN, passou-se a fazer uso de acordes alterados em grande quantidade, ou seja, acordes com notas estranhas à harmonia clássica, popularmente conhecidos como “dissonantes”. Passou-se também a não dar muita importância ao fato de a nota fundamental do acorde estar ou não no baixo, desenvolvendo-se novas “posições” no instrumento em forma de clusters, ou seja, blocos de notas com uma determinada “cor harmônica”. Essa harmonia mais desenvolvida permitiu também o enriquecimento e a incursão da melódica por outras tonalidades, distantes da original. O uso maior de modulações e acordes alterados exigiu também o desenvolvimento da audição de harmonias e da criação de novos dedilhados ou “posições” instrumentais. Além do aspecto harmônico, também o ritmo foi modificado. Desenvolveu-se muito mais a estrutura rítmica de acompanhamento, que deixou de ser simétrica, possuindo estrutura própria, independente do canto; deixou de ser repetitiva, não sendo paralela ao canto e sempre se antecedendo um mínimo ao tempo forte do compasso. Exemplificando:

Na percussão afirmou-se também, a partir desse disco, uma nova estrutura básica de acompanhamento, sobre a qual o baterista realiza variações pessoais. A figura rítmica, que se solidificou então, passou a identificar, mesmo em outros países, todas as pretensões (realizadas ou não) no sentido de fazer BN. Ela se resume, em sua maneira mais simples, na repetição de um compasso básico, que é quaternário, diferindo da batida tradicional, binária:

Tradicional

(A figura superior de 16 semicolcheias é, em geral, executada com a “escovinha” sobre a pele da caixa clara – mão direita – e a inferior com a baqueta na borda de metal desse instrumento – mão esquerda).

Bossa-nova

Se o sucesso do novo estilo musical traria à cena toda uma nova geração de compositores que a partir de então tiveram chance de colocar na prática uma grande quantidade de novas idéias musicais, vamos observar, prosseguindo na análise do LP Chega de Saudade, que o próprio João se faria presente no disco como autor de duas composições onde ele deixaria claras também suas pretensões artísticas, no sentido da criação – texto e música. Numa época em que faziam sucesso músicas como “Ouça”ou “Risque”, cujo conteúdo musical e literário mais se aproxima dos longos dramas bolero-musicais centro-americanos, chegava o baiano BN com seu baiãozinho simples, concreto e musical, que em tom blague dizia: “Bim bom, é só esse o meu baião e não tem mais nada não. O meu coração pediu assim”, ou então: “Oba-lá-lá, é uma canção. Quem ouvir o Oba-lá-lá terá feliz o coração”.

Essa seria, na realidade, a revolução proposta pelo disco e pela BN em seu aspecto mais original. Reduzir e concentrar ao máximo os elementos poéticos e musicais, abandonar todas as práticas musicais demagógicas e metafóricas do tipo “toda quimera se esfuma na brancura da espuma”. Evoluir no sentido de uma música de câmara adequada à intimidade dos pequenos ambientes, característicos das zonas urbanas de maior densidade demográfica. Uma música voltada para o detalhe, e para uma elaboração mais refinada com base numa temática extraída do próprio cotidiano: do humor, das aspirações espirituais e dos problemas da faixa social onde ela tem origem. É a música que todos podem cantar, pois nega a participação do “cantor-solista-virtuose”; após o sucesso do movimento, artistas não-cantores, com suas vozes imperfeitas, mas naturais, fizeram suas gravações – como o próprio Jobim e Vinícius. Artistas sem grandes recursos vocais, como Nara Leão, Geraldo Vandré, Carlos Lyra e Astrud, também fizeram sucesso como “cantores”. Por outro lado, cantores com recursos, como Agostinho dos Santos, ou Maysa, depois do advento da BN, passaram a adotar uma interpretação muito mais despojada e menos “estrelista”.

Outro aspecto decisivo proposto pela BN foi a superação do amadorismo musical, não no sentido profissional, mas artístico do termo. A idéia da música popular como hobby de hora vaga, semelhante ao jogo de cartas, que consome a atenção apenas no momento de sua prática, deixou de existir. Aqueles que integram o movimento de maneira mais ativa têm, perante a realização musical, um tipo de preocupação constante que abrange não só a pesquisa musical em si e a assimilação de novos recursos técnicos, como um interesse cultural geral que inclui outras modalidades artísticas. O exercício, o estudo instrumental e vocal e a pesquisa sonora através da prática do próprio instrumento ou da audição de discos, ou seja, a busca de informação passou a ser uma preocupação constante desses músicos.

Verdadeiras origens

Se na época da eclosão do movimento renovador, o acontecimento divisor das águas foi o LP Chega de Saudade, fato que parece indiscutível, um outro aspecto da BN, aquele que se refere às suas origens, continua sugerindo polêmicas. As tentativas até agora feitas no sentido de buscar as verdadeiras raízes do movimento têm atribuído, na maioria das vezes, a artistas cuja atuação musical antecedia de alguns anos ao advento do novo estilo, a função de “precursores”. Sendo a BN uma música de origem popular, não há dúvida de que toda uma plêiade de artistas tomou parte ativa nessa fase de cristalização de idéias. Assim, alguns deles poderiam ser citados como antecessores, considerando-se diversos aspectos de suas contribuições. É o caso, por exemplo, de Johnny Alf. No início da década de 50, ele já nos apresentava composições bastante rebuscadas, tanto melódica como harmonicamente, parte das quais foi utilizada após o advento da BN.

Isto se dava pelo fato de Johnny Alf ser um assíduo praticante do jazz e possuir, em conseqüência disso, um sentido harmônico e melódico muito desenvolvido. Sendo o jazz, sobretudo o cool-jazz, também uma espécie camerística de música, tecnicamente muito desenvolvida, da aplicação de seus recursos a uma temática brasileira resultava uma música “arrojada” para a época. A empostação jazzística de suas músicas, porém, sempre foi claramente perceptível, sobretudo quando ele próprio as cantava. Sua interpretação é cheia de maneirismos, muito ao sabor do be-bop e de virtuosismos e afetações vocais típicas do jazz americano da década de 40. Outro exemplo, semelhante e digno de nota, é o de Dick Farney. Sendo também um dos bons executantes de jazz no Brasil, estabeleceu essa relação, ou emprego de recursos da música americana à brasileira, deixando também sempre clara a influência sinatriana em suas interpretações. Além desses compositores que nos ofereceram músicas que seriam aproveitadas pela BN, pelo seu sentido harmônico e melódico, havia também uma série de cantores, que, por suas interpretações mais discretas e mais próximas do que chamamos de “canto-falado”, poderiam também ser apontados como “precursores”. É o caso, por exemplo, de Doris Monteiro, Nora Ney, Lúcio Alves, Tito Madi e o próprio Ivon Cury. Suas interpretações eram bastante despojadas e evitavam soluções vocais e virtuosísticas, optando mais pela simplicidade expressiva e sentido do canto quase recitado.

Outro fenômeno significativo da fase imediatamente anterior à BN foi o LP Canção do Amor Demais, com Elisete Cardoso, onde Jobim e Vinícius, que se tornariam dois dos mais destacados elementos da nova música, estavam reunidos em todas as faixas. LP que deu à intérprete, inclusive, a possibilidade de atingir um dos pontos altos de sua carreira. Se a música popular brasileira, porém, permanecesse nesse estágio, não se teria tido uma idéia do que seria a BN. As músicas eram em geral baseadas na forma da modinha e do recitativo dos mais tradicionais, acrescidas apenas pelos recursos musicais de Jobim, sobretudo por sua imaginação melódica, sem dúvida a mais rica com que a nossa música popular conta em seus últimos anos. Também o acompanhamento e a orquestração eram tradicionais; em geral sinfônicos e com instrumentação carregada. Note-se que o próprio Jobim, que orquestraria o disco do João alguns meses mais tarde, teria uma atitude completamente diferente ao trabalhar ao lado do “baiano bossa-nova”, evitando as soluções “melacrinianas” de “mil violinos” e “glissandos” de harpa, recursos tão comumente empregados pelos orquestradores de rotina. Tradicionais no disco eram também os textos de Vinícius, cuja empostação poética mais se aproximava de baladas medievais do que do linguajar simples e espontâneo que veio a caracterizar as letras da BN e as suas próprias contribuições para esse estilo. O mesmo Vinícius que dizia nesse LP: “oh! mulher, estrela a refulgir”, diria, após o advento da BN: “ela é carioca, ela é carioca, olha o jeitinho dela…” Um detalhe no disco, porém, chamou a atenção dos observadores mais cuidadosos. Era o acompanhamento de um violão que possuía uma “batida” e uma sonoridade sui generis.Era o violão de João Gilberto que já se fazia notar, poucos meses antes de ele fazer sua incursão musical inovadora.

Se se quisesse, porém, estabelecer uma relação histórica para apurar as verdadeiras raízes da BN, iríamos encontrar numa outra música, também urbana, popular e cem por cento brasileira, os seus pontos de contato mais evidentes. É a música de Noel. É o samba “flauta-cavaquinho-violão”. É a música da Lapa, capital do samba (de “câmara”) tradicional, como Copacabana – Ipanema – Leblon são os redutos da BN. É a linguagem sem metáfora, espontânea, direta e popular do “seu garçom faça o favor de me trazer depressa” que foi retomada por Newton Mendonça, Vinícius, Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra. “Eis aqui este sambinha, feito numa nota só”, “ah, se ela soubesse que quando ela passa…”, “se eu não sou João de Nada, Maria que é minha é Maria Ninguém”, são expressões que poderiam ser ditas e cantadas por Noel Rosa ou João Gilberto em 1940 ou em 60. Se durante a guerra Noel cantava “com que roupa eu vou?” e “traga uma boa média”, hoje se fala em “fotografei você na minha Rolleyflex”, em boate, uísque e automóvel, isto é, nada mais que versões atualizadas de um mesmo humor, uma mesma gente, uma mesma bossa. E mesmo na época da eclosão do movimento BN já havia a afirmação de que João Gilberto era o novo Mário Reis, constatação absolutamente certa, pois é à tradição musical que Noel e Mário Reis representavam que João Gilberto pretende dar seqüência. Por essa razão foi buscar nesse repertório canções que, atualizadas e revalorizadas por sua interpretação, se integraram na música popular atual sem o menor atrito. “Morena boca de ouro”, “Aos pé da santa cruz”, “A primeira vez”, “Brigar nunca mais”, “Bolinha de papel”, foram algumas entre elas.

Músicas & letras

As inovações propostas pela BN não abrangeriam apenas o campo da interpretação, acompanhamento, linguagem instrumental, harmonização e ritmo. Elas forjaram a formação de um novo estilo composicional que incorporou todos os recursos musicais conquistados, baseando-se numa temática literária atual e ligada ao meio que lhe deu origem.

Sabendo-se que essas composições seriam executadas por pequenos conjuntos e ainda mais comumente cantadas por uma única pessoa com acompanhamento de violão ou pequeno grupo instrumental, desenvolveu-se uma técnica composicional orientada para articulações mais sutis e de detalhe, assim como um vocabulário expressivo que prevê um contato direto e íntimo com o ouvinte. Citemos como exemplo o “Desafinado”, música que nasceu e se confunde com o próprio movimento dentro e fora do Brasil. Esta composição possui uma linha melódica longa, muito elaborada, cheia de saltos dificilmente entoáveis, movimenta-se dentro de uma tessitura vocal bastante grande, indo de regiões graves ao agudo numa mesma frase. Possui uma movimentação rítmica nunca coincidindo os inícios de frase com o tempo forte do compasso e nunca repetindo frases rítmicas; conta com uma estrutura harmônica bastante evoluída que prevê o emprego de acordes alterados, ou “dissonantes”, como se diz popularmente; harmonia modulante, passando por várias tonalidades e voltando no fim à tonalidade original. Essas características musicais, típicas da BN, a tornam, como é natural, e como já comentamos, inadequada para ser cantada por grandes massas, prestando-se mais à interpretação de um cantor que, sozinho, está em condições de evidenciar todos os seus detalhes composicionais. Não só a música, mas também o texto. Quando se diz: “robaro a mulhé do Rui”, imagina-se uma frase corriqueira sendo dita a toda hora e por todo mundo em tom de “mexerico”. Quando se diz “esse é o amor maior que você pode encontrar, viu?”, imagina-se que o poeta e o interlocutor (a bem-amada) estejam juntos e ela seja a única pessoa a ouvir essa frase-declaração. Essas seriam, genericamente, as bases que orientaram a composição musical BN. As variantes surgidas serão comentadas adiante através de uma análise mais detalhada.

Letras: Variantes

Existem inúmeras manifestações musicais para canto e acompanhamento onde a importância do texto é secundária. Nas óperas italianas do século passado, por exemplo, grande parte dos libretistas e dos adaptadores nem sequer é citada.

Em obras camerísticas, porém, dá-se o contrário. Schubert, por exemplo, compositor cuja obra mais importante são os “Lieder”para canto e piano, usou textos de Goethe e Schiller ao invés de subliteratura. A mesma coisa ocorre com Bach, que em suas cantatas de câmara recorreu a textos bíblicos, com Hugo Wolf (textos de Michelangelo, Moerike) e com Ravel (textos de Ronsard e Villon). As condições de contato humano oferecidas pelas manifestações musicais de câmara exigem do compositor não só um tratamento musical mais apurado e detalhístico, mas também um maior cuidado na escolha dos textos, pois o seu conteúdo, dada essa estreita relação intérprete-público, se evidencia muito mais.

Por essa razão a importância do texto na BN, manifestação musical originalmente camerística, é idêntica à da música e seria incompleto um estudo desse novo estilo musical se não nos concentrássemos mais demoradamente em sua análise.

Tomemos logo de início o “Samba de uma nota só”de Jobim e Newton Mendonça, sem dúvida um dos textos mais inteligentes que conhecemos em música popular e cuja origem coincide igualmente com a da própria BN. Aqui, a relação texto-música é perfeita. O sentido de um completa o do outro. Texto e música se autojustificam e autocomentam.

Citando mais uma vez a música clássica, é curioso notar que, em 1700 aproximadamente, se passou a adotar uma prática musical conhecida como a “Teoria das afetos”. Ela objetivava uma interligação mais íntima entre texto e música; não só no sentido de o compositor usar os efeitos sonoros do texto como recursos musicais, como no de propor também uma correlação semântica mais direta entre texto-música. Quando Bach musicava um texto que dizia, por exemplo: “subiu às alturas do céu”, concentrava em geral os efeitos vocais e orquestrais em regiões agudas; ao contrário, quando musicava uma frase como “desceu às profundezas do inferno”, jogava todos os recursos musicais para os registros mais graves da massa coral e sinfônica.

A relação texto-música no “Samba de uma nota só”é semelhante e ainda mais trabalhada. O intérprete diz: “Eis aqui este sambinha feito numa nota só”, entoando a frase sobre uma única nota: segue, cantando a mesma nota, mas advertindo: “Outras notas vão entrar, mas a base é uma só”. Entoando de repente uma segunda nota, ele comenta: “Esta outra é conseqüência do que acabo de dizer”, e, voltando à primeira nota, abre um parêntese estabelecendo uma relação com seu caso de amor (“como eu sou a conseqüência inevitável de você”). Seguindo para a segunda parte da música e entoando muitas notas em forma de escalas ascendentes e descendentes, observa: “Quanta gente existe por aí que fala tanto e não diz nada, ou quase nada! Já me utilizei de toda a escala e no final não sobrou nada, não deu em nada…”; e, como que decepcionado dos resultados do excesso de notas (e de amores, conclui-se), volta a cantar a nota inicial, comentando: “Evoltei pra minha nota como eu volto pra você. Vou contar com a minha nota como eu gosto de você”. E, como que para encerrar sua “incursão” musical e afetiva, coloca uma frase-fecho, entoando a mesma nota, que soa como um refrão popular ou como “moral da história”, na base do “quem tudo quer nada tem”: “Quem quiser todas as notas (ré, mi, fá, sol, lá, si, dó), sempre fica sem nenhuma. Fique numa nota só”. Termina secamente sem finais, nem maiores “explicações” sinfônicas. Pertence também a Newton Mendonça o texto de “Desafinado”, onde o mesmo fenômeno acontece. A música, que é de Jobim, possui intervalos melódicos complicados, cheios de saltos (em 59 soava essa melodia mais estranha e difícil do que hoje, pois já foi plenamente assimilada). Na realidade, a música sugeria a idéia de um cantor que aparentava certa insegurança vocal, dada a complexidade harmônica e melódica, e que, como comentava, não se fazia entender nem mesmo pela amada. Mas o próprio texto era claro, descrevendo a figura de um tipo muito lírico, preocupado apenas com novas maneiras de cantar, justificando aquele mal-entendido da seguinte maneira: “se você insiste em classificar meu comportamento de anti-musical, eu, mesmo mentindo, devo argumentar que isto é bossa-nova, que isto é muito natural…”. Daí surgiria e se popularizaria o binômio “bossa-nova” como expressão-título da nova tendência. Newton Mendonça, elemento básico na estruturação do movimento, morreu prematuramente, antes mesmo de ouvir suas canções cantadas em algumas dezenas de diferentes idiomas. Excelente músico, pianista de formação clássica, inclusive, foi, não apenas letrista, mas co-autor musical de “Desafinado”, “Samba de uma nota só”, “Discussão” e “Meditação”, sambas dignos de constar na mais sucinta antologia da música popular de nossa época.

A esse tipo de letras de elaboração mais consciente e intencional, pertence grande parte dos textos de Ronaldo Bôscoli. Por ser talvez jornalista, e não poeta, suas letras são, em geral, claras e sintéticas, nunca demagógicas. Faz uso, não raro, de efeitos e artifícios extraídos da literatura de vanguarda – particularmente da Poesia Concreta – fundindo palavras ou evidenciando e valorizando a sonoridade das sílabas como elemento musical. É assim que, ao cantar o Rio, ele resume o tema em poucos dados e na repetição de três fonemas semelhantes: “é sol, é sal, é sul”. Mais adiante, usa de um artifício semântico: partindo da repetição de “Rio, só Rio”, chega a “Rio, só Rio, sorrio”.

Mas, falando em textos revolucionários, não é demais lembrar mais uma vez os textos do próprio João Gilberto, como “Bim Bom”e “Oba-lá-lá”, um misto de humor, nonsense e economia verbal, aspectos importantes e inovadores da BN.

Cor local

Além do cuidado na elaboração dos textos e certas intenções construtivas mais conscientes e intelectualizadas, existem outros aspectos genéricos também importantes que identificam as letras da BN. Entre esses, um dos mais característicos, é sem dúvida, o tom coloquial da narrativa. É o uso do linguajar simples, feito de elementos extraídos do cotidiano da vida urbana, que revelam uma poética cheia de humor, ironia, blague, “gozação” e malícia; às vezes também melancólica, afetiva, intimista; às vezes socialmente participante, em tom de protesto e inconformismo: nunca, porém, demagógica, dramática ou patológica, evitando sempre o chavão poético, as frases feitas, a metáfora ou as palavras de “forte efeito expressivo”…

Dentro dessa linha geral poderíamos dividir em dois tipos básicos os textos conhecidos. Um deles que chamaríamos de “cor local” e outro “participante”. O primeiro tipo seria aquele cujo conteúdo descreve ou comenta situações, circunstâncias e fenômenos inerentes à vida citadina e praieira, regiões onde nasceu e circula a BN. A habilidade e originalidade com que esses poetas populares focalizam em suas músicas determinados fenômenos de seu meio social são tão características que nos dão idéia exata da coisa, como se a tivéssemos diante dos olhos. Esse é o caso, por exemplo, do “Lobo Bobo”, de Bôscoli, letrista dos mais significativos dessa linha de textos, sátira ao ployboy com fome de donzela, onde, em tom de gozação e aparente ingenuidade, é ironizada a sua antropofagia.

Era uma vez um lobo mau
Que resolveu jantar alguém
Estava sem vintém mas se arriscou
E logo se estrepou.
Um chapeuzinho de maiô
Ouviu buzina e não parou
Mas lobo mau insiste e faz cara de triste
Mas chapeuzinho ouviu
Os conselhos da vovó
Dizer que não pra lobo
Que com lobo não sai só.

Lobo canta, pede, promete tudo, até amor
E diz que fraco de lobo
É ver um chapeuzinho de maiô.
Mas chapeuzinho percebeu
Que lobo mau se derreteu
Pra ver você que lobo
Também faz papel de bobo
Só posso lhe dizer
Chapeuzinho agora traz
O lobo na coleira
Que não janta nunca mais.

Assim são também os textos que exaltam os encantos e a feminilidade da mulher brasileira. Com frases simples, pequenas observações e poucos traços verbais, narram uma realidade passível de ser percebida só sensorialmente. É o caso, por exemplo, de expressões como “balanço Zona Sul” ou “ela é carioca, olha o jeitinho dela”; detalhes como: “cigarrinho aceso em sua mão, toca moderninho um violão”; frases soltas ou comentário, como que ditos a si próprio: “olha que coisa mais linda, mais cheia de graça…”, ou “ah! se ela soubesse que quando ela passa…”

Mas, se denominamos “cor local” aos textos que nos revelam na mais refinada poética fenômenos característicos de uma região e uma geração, a eles também pertencem os textos que ilustram as aspirações afetivas e humanas dessa gente. Como que tentando uma reação, a fim de não sucumbir ao determinismo da técnica, à aridez do asfalto, à luta aflitiva pela sobrevivência material, problemas que enfrenta no cotidiano a faixa mais “civilizada” da população, a imaginação poética BN foi encontrar na simbologia do “amor, o sorriso e a flor” a sua fonte de inspiração e energia espiritual. Transcrever o texto de “Minha namorada”de Vinícius de Morais, poeta que legou a esse tipo de lírica os mais inspirados motivos, e, em geral, na linguagem mais intimista, fazendo-nos sentir essa sede de afetividade, pureza e ingenuidade, é o melhor esclarecimento a dar a esse respeito.

Carlos Lyra, um dos teóricos, mais inteligentes e talentosos músicos do grupo, é, como se sabe, o autor da música:

Se você quer ser minha namorada
Ai que linda namorada
Você poderia ser.
Se quiser ser somente minha
Exatamente essa coisinha
Que ninguém mais pode ser,
Você tem que me fazer um juramento
De só ter um pensamento
Ser só minha até morrer.
E também de não perder esse jeitinho
De falar devagarinho
Essas histórias de você
E de repente me fazer muito carinho
E chorar bem de mansinho
Sem ninguém saber por quê.
Mas se em vez de minha namorada
Você quer ser minha amada
Mas amada pra valer
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer
Você tem que vir comigo em meu caminho
E talvez o meu caminho
Seja triste pra você.
Os teus olhos têm que ser só dos meus olhos
Os teus braços o meu ninho
No silêncio de depois
E você tem que ser a estrela verdadeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois.

Participação social

Sendo a BN uma realidade oriunda da faixa urbana da população; tendo essa faixa da população melhores condições materiais e práticas de receber informações, via livros e periódicos; sendo a BN um movimento preponderantemente jovem, constituído, em grande parte, de estudantes; sendo o jovem e o estudante em todo país subdesenvolvido o mais vivo estopim de inflamação político-ideológica, compreende-se o surgimento de uma linha de canções de cunho participante. Mas o próprio sentido musical da BN colaboraria para tal, pois se trata de uma música alheia ao que chamamos de “sentimentalismo” barato, chavões poéticos, virtuosismos vocais, para ser uma manifestação musical concreta e direta. Assim, em sua própria estrutura, ela permite a exteriorização da mais variada temática, que pode ir de um problema individual de amor a um problema coletivo de fome.

Dentro da linha participante da BN encontramos duas diferentes formas de expressão. Uma delas que aborda diretamente os problemas do subdesenvolvimento, como reforma agrária, posse da terra, vazada numa linguagem mais agressiva, e outra que, de maneira não crítica, mais em tom de “lamento”, expõe condições subumanas de vida de certas regiões do País, sobretudo no morro e no Nordeste.

O sucesso desta tendência deve-se particularmente à atuação de Nara Leão, cantora sem grandes recursos vocais, mas que se associou à BN pelas características básicas de sua interpretação. Exprimindo-se sempre da maneira mais simples e direta, adotando também a prática do canto quase falado, lançando mão de um repertório de qualidade, despertou, pela sua inteligência e musicalidade, grande interesse popular para com a temática participante. Aparentando pessoal e vocalmente certa fragilidade, Nara lançou um repertório de conteúdo bastante agressivo, numa época, inclusive, em que a manifestação pública de idéias se tornara problemática. O sucesso do repertório “participação” alcançou maiores proporções através do showOpinião onde Nara era figura de proa. O sucesso do showtanto no Rio como em São Paulo sugeriu a encenação de outros na mesma linha – Liberdade, LiberdadeZumbi – assim como as suas gravações em disco. Montado sob condições técnico-teatrais das mais primitivas, o espetáculo conseguiu, através dessas músicas, grande contato com o público, que aplaudia no decorrer da apresentação e não raro participava ativamente, cantando junto com os atores. Nessa época surgiu uma série de novas composições, das quais João do Vale e os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle foram os autores mais destacados. Nelas presenciamos verdadeiros manifestos: “onde a terra é boa o senhor é dono não deixa passar”, “o nordestino vai criar coragem pra poder lutar pelo que é seu”, “plantar pra dividir? Não faço mais isso não”, “quem trabalha é que tem direito de viver, pois a terra é de ninguém”, “o dia da igualdade está chegando, seu doutor” etc. Nessa linha, além dos textos do tipo “libelo”, existem também aqueles cujo impacto resulta da aridez agressiva do próprio fato narrado: “Carcará/pega, mata e come / Carcará/não vai morrer de fome / Carcará/mais coragem do que homem/ Carcará/pega, mata e come!”

No que toca à interpretação, se as canções do tipo “amor-sorriso-flor” oferecem ao cantor maior liberdade, por se basearem mais na subjetividade afetiva de cada um, as canções que cantam a aridez, o marasmo, o abandono e o tipo vegetativo de sobrevivência de toda uma coletividade, exigiriam do cantor uma interpretação correlata. Uma interpretação ainda mais impessoal, ainda menos “expressiva”, sem o menor perfeccionismo vocal e não raro com muita dureza. Assim se explica, por exemplo, a ascensão rápida da cantora Maria Bethânia, que, ao substituir Nara no showOpinião, teve sucesso imediato. Possuindo uma voz ainda mais primitiva e rude, sua interpretação conferiu a empostação exata e ainda maior autenticidade ao conteúdo daqueles textos – particularmente o “Carcará”.

Exemplo não menos importante nessa mesma linha foi a parte musical do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, feita por Sérgio Ricardo – tanto a composição como a parte vocal, por ele magnificamente interpretada. Oriundo do movimento BN, para o qual legou um de seus mais significativos “clássicos” – “Zelão”Sérgio Ricardo é atualmente um dos mais sérios pesquisadores da temática nordestina, encarada sob o prisma “participação”.

Mas as condições subumanas em que vivem grandes camadas da população no Nordeste inspiraram ainda outra lírica, que, pelo seu próprio conteúdo amargo e desesperançado, é expressa em tom de “lamento”, como dissemos anteriormente. A esse segundo tipo de textos-participação pertence a maior parte das composições de Geraldo Vandré e Rui Guerra. Em parceria com Edu Lobo, o cineasta de Os Cafajestes pôs em circulação uma série de motivos bem apanhados, cuja expressividade poética reside exatamente na secura da empostação e da linguagem: “vam’borandá que a terra já secou, borandá”, “é melhor partir lembrando que ver tudo piorar”, “quem não tem nada a perder, só vai poder ganhar”, “se o amor não é bastante para vencer, eu já sei o que vou fazer, meu Senhor, uma oração. Se é fraca a oração, mil vezes rezarei”.

Vandré, de origem nordestina, mostra-nos em suas próprias interpretações a empostação vocal adequada a esse tipo de música. Uma voz sem acabamento técnico, cheia de arestas, confere a essa temática a gravidade que lhe é característica. Concluindo as canções com longos e intermináveis melismas, sugere-nos ainda mais claramente o sentido dessa angústia e dessa tentativa de fuga e busca sem fim como o próprio canto. Mais importantes ainda são suas próprias composições. Baseadas em geral numa harmonia modal e quase sempre em dois acordes apenas, que se sucedem indefinidamente, ilustram nitidamente uma situação de monotonia e melancolia angustiante, comentada pelo texto. Este, vazado sempre numa linguagem terra-a-terra, sem metáforas ou poetismos, causa impacto exatamente pelo desnudamento expressivo, tanto quando em tom de “lamento”, como na “Canção Nordestina”que transcrevemos adiante, como na agressividade de “A hora e vez de Augusto Matraga”. Vivendo já há algum tempo no sul do Brasil, Vandré apanhou também com muita propriedade elementos da linguagem sertaneja, das regiões centro-sul do País, que aplicou em uma “moda de viola” cujo resultado conferiu a esse gênero musical uma força expressiva e um impacto popular que aparentemente ele não comportava. Referimo-nos a “Disparada”,canção que arrebatou o primeiro prêmio do Festival da Música Popular Brasileira, produzido por Solano Ribeiro para a TV Record de São Paulo. Este Festival, aliás, constituiu-se no mais apaixonante acontecimento que já se registrou em torno de assuntos ligados à música popular no Brasil em todos os tempos.

Canção nordestina

Que sol quente que tristeza
Que foi feito da beleza
Tão bonita de se olhar?
Que é de Deus e a natureza?
Se esqueceram com certeza
Da gente deste lugar.
Olha o padre com a vela na mão
Tá chamando pra rezar,
Menino de pé no chão
Já não sabe nem chorar.
Reza uma reza comprida
Pra ver se o céu saberá…
Mas a chuva não vem não
E essa dor no coração, ah!…
Quando é que vai se acabar?

Participação: faixa urbana

Dentro do segundo tipo de textos participantes, menos crítico e agressivo e mais em tom de “lamento”, como caracterizamos anteriormente, incluem-se, evidentemente, os sambas cuja temática se origina nas condições subumanas em que vive dentro do perímetro urbano das metrópoles – no morro, nos subúrbios – grande parte da população. Essa temática, que não é nova, mas recebeu novo tratamento e que inspirou tantos e tão famosos sambas tradicionais de morro e de carnaval, conta, entre os cultores da moderna música popular, com um interesse bastante grande. Entre estes se destacam duas figuras de compositores que atingiram o mesmo e alto grau de autenticidade expressiva, ainda que possuam origem e formação completamente diversa; grande parte do sucesso deles deve-se igualmente à atuação de Nara Leão, cuja inteligência musical soube identificar e prestigiar o seu valor: Zé Kéti e Chico Buarque. Sambista de morro e compositor da Portela, Zé Kéti teve seu primeiro grande e isolado sucesso há anos atrás com “Eu sou o samba”. Por sua atuação em Opinião, ao lado de Nara, a intérprete do samba que deu o nome ao showe ao disco, Zé Kéti alcançou sucesso estável e as vias de divulgação de suas composições. O outro caso é o do jovem Chico Buarque. Sua produção musical e seu sucesso rápido e fora do comum foram um xeque-mate na lenda que por aí circula de que aqueles que não nasceram no morro ou que vivem em Copacabana não podem cantar os problemas do morro – critica particularmente endereçada a Nara Leão. Chegou-se mesmo a compor uma música que dizia: “falar de morro morando de frente pro mar não vai fazer ninguém melhorar”. O estudante de arquitetura Francisco Buarque de Hollanda nasceu no Rio, filho de família importante, viveu na Capital de São Paulo a maior parte de sua vida e alguns anos em Roma; fala inglês, italiano e francês; mora atualmente num dos bairros mais aristocráticos da Capital paulista. Chico é um dos artistas que têm compreendido certos problemas humanos dos menos protegidos da sorte, descrevendo-os numa linguagem poética ao mesmo tempo concentrada e plena de impacto emotivo. Cantando a sina do pobre pedreiro Pedro, alcançou um de seus primeiros e grandes sucessos. Poucos compositores atuais de morro ou cidade poderiam chegar a tal resultado poético-musical com tanta eficácia como Chico Buarque o fez. Nota-se o uso consciente dos recursos do texto, que não apenas “significa”, mas também “soa”. Por ter mantido, como autor da letra e da música, o mesmo nível de exigência criativa em ambos, conseguiu uma inter-relação entre eles como raramente se deu em nosso populário. Extrai, por exemplo, efeitos rítmicos das consoantes, fazendo da voz percussão: “Pedro pedreiro, penseiro”, “parece carece”, “para o bem de quem tem bem de quem não tem vintém” ou ainda, repetindo insistentemente a palavra “esperando”, no sentido de cansar o ouvinte e dar, assim, a idéia das limitações e da monotonia da vida de um trabalhador “suburbano”:

Esperando
Esperando
Esperando
Esperando o sol
Esperando o trem
Esperando o aumento
Para o mês que vem
Esperando um filho
Pra esperar também
Esperando a festa
Esperando a sorte
Esperando o dia
De esperar ninguém
Esperando enfim
Nada mais além
Que a esperança aflita
Bendita
Infinita
Do apito do trem.

Além dessa repetição insistente de “esperando”, que, com o tempo, passa a soar na cabeça do ouvinte quase que subliminarmente, Chico Buarque se serve da sonoridade de “que-já-vem”, cuja reiteração constante nos dá, onomatopaicamente, a idéia do avanço mecânico do trem, que não corresponde ao nível emotivo, a nenhuma abertura otimista, uma vez que o texto sugere uma esperança continuamente frustrada – um “que já vem” que nunca se concretiza, que nunca vem… Aliás, toda a linguagem poética de Chico Buarque está repassada de nostalgia e de um certo pessimismo, compensados pela beleza e pelo lirismo de suas imagens e formas de expressão, de resto muito ao sabor do bom Noel:

Carnaval, desengano
Deixei a dor em casa me esperando
E brinquei e gritei e fui
Vestido de rei
Quarta-feira sempre desce o pano.

Madalena foi pro mar
E eu fiquei a ver navios…

Rita levou seu retrato,
Seu trapo
Seu prato
Que papel!
Uma imagem de São Francisco
E um bom disco de Noel.
Levou os meus planos
Meus pobres enganos
Os meus vinte anos
O meu coração
E além de tudo
Deixou mudo
Meu violão.

Tem samba de sobra
Ninguém quer sambar
Não há mais quem cante
Nem há mais lugar
O sol chegou antes
Do samba chegar
Quem passa nem liga
Já vai trabalhar
E você minha amiga
Já pode chorar…

E para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou
E cada qual no seu canto
E em cada canto uma dor
Depois que a banda passou
Cantando coisas de amor.

Mas, além da poética de Chico, que a tantos tanto empolgou em tão pouco tempo, há também a rica dimensão melódica de suas músicas; seu canto flui descontraidamente, nas composições mais simples como nas mais pretensiosas. O intimismo de sua linguagem sugere igualmente um tratamento musical de câmara, onde a boa articulação do texto, a clareza melódica e o despojamento interpretativo são aspectos essenciais. Isto justifica o fato de Chico, não sendo showman, nem “cantor”, nem sabendo bem, às vezes, como se comportar diante da platéia, conseguir agradá-la imensamente. Ele possui, e isto deixa transparecer claramente em suas atitudes e em suas composições, uma sensibilidade rica, profundamente musical e um espírito cristalino e cheio de autenticidade, características responsáveis pela grande simpatia de que goza e que o transformaram num dos mais interessantes fenômenos artísticos de nossa época. Quando “Sonho de carnaval”, “Pedro pedreiro” e “Olé, olá”já eram conhecidos, alguns músicos, ao identificarem Antonio Carlos Jobim em meio a papos e chopesno seu barzinho predileto em Ipanema, assim o saudaram: “Olá, Tom! Que é que há de novo?” Ao que o gênio de uma nota só, em um só tom, respondeu: “Chico Buarque de Hollanda!”.

O caso Juca Chaves

Como vimos afirmando, a BN caracterizou-se originariamente como uma forma de música de câmara popular com base no canto-falado, numa manifestação musical contida, não demagógica nem patológica, sem apelar para virtuosismos gratuitos, e discreta quando sentimental. Dissemos também que seu linguajar evita metáforas ou construções poéticas sentimentalescas, optando pela linguagem simples e pelo tom coloquial e direto da narrativa, que lhe permite o uso da mais variada temática, inclusive a blague, o humor, assim como a participação político-social. Considerando-se estes dados, poderíamos dizer que falta alguém na BN: a figura do “menestrel maldito” Juca Chaves. Se vários aspectos de sua música colocavam-no, na época, à margem daquele movimento em eclosão, pelo fato de suas composições serem mais conservadoras como forma, baseadas nos tipos da modinha tradicional, ao invés de incluírem a pesquisa melódica, harmônica, rítmica e literária, elementos básicos da mais autêntica BN, outros aspectos de sua personalidade musical faziam-se elemento de vanguarda e revolução na música brasileira. E hoje isto se torna ainda mais facilmente perceptível através da visão de conjunto que o passar do tempo nos oferece.

As “duas faces de Juca Chaves” possuíam características peculiares, que se manifestavam em diferentes direções, vivas e atuantes na época de seu aparecimento. Uma delas, a sentimental e intimista, expressava-se através de uma linguagem simples, de uma ingênua beleza, cujo despojamento muito a relacionava com as tendências da época sugeridas pela BN, razão pela qual, popularmente, ele era confundido com os integrantes daquele movimento renovador.

A outra “face” de Juca Chaves, que lhe permitia contato direto com grandes massas, era a da gozação, da blague, da ironia, do humor através da qual falsos valores políticos e sociais eram ridicularizados. Este outro aspecto de sua composição, que é indiscutivelmente, uma forma de “participação” – e a prova de sua eficiência estava nos constantes chamados a policia por ele recebidos… – era vazado igualmente na linguagem clara e direta do canto-falado, nas soluções melódicas mais simples, no tom coloquial da narrativa, o que contribuía sobremaneira para o efeito e impacto ainda maior do conteúdo de sua manifestação musical.

Além do aspecto puramente musical, Juca Chaves foi também responsável, ao nível popular no palco e na TV, pelos primeiros happenings – para usar a expressão atual. Tanto a agressividade de suas opiniões como a sua presença física em público, apresentando-se descalço, sentado no chão e cabeludo, foram precursoras dessas atitudes de rebeldia juvenil contra tabus e preconceitos, espécie de necessidade de auto-afirmação de uma geração perante a anterior, que anos depois o fenômeno beatle veio representar internacionalmente. Juca Chaves foi, dentro das condições e características brasileiras, uma verdadeira “brasa”, avant la lettre!

Discografia e novas gráficas

Tendo a BN se caracterizado como um movimento musical voltado contra o “estrelismo” e contra o culto do “solista”, desenvolveria, por outro lado, o sentido do trabalho de equipe. Se anteriormente, numa gravação, o importante era o “cantor” – sua foto, seu nome e seus gemidos… –, sendo todos os trabalhos restantes entregues à rotina mais impessoal, após o advento da BN, estilo musical originalmente voltado para o detalhe, todos os participantes de uma realização musical gravada passaram a ter suas funções valorizadas e a serem nominalmente citados. Daí surgiu o que se passou a chamar de “Ficha técnica”. Dela começaram a constar não apenas os músicos participantes (solistas, orquestrador, regente, atuações especiais em determinadas faixas etc.), mas também os responsáveis técnicos pela feitura do disco: produtor, técnico de gravação, engenheiro de som, fotógrafo, layoutman etc. Isso não se prende, porém, a razões de justiça profissional ou coleguismo, e sim ao fato de que, a partir da BN, todos esses aspectos, anteriormente secundários, foram muito mais valorizados. O nível técnico das gravações elevou-se consideravelmente. Não só se passou a captar mais e melhor pequenos detalhes e articulações solísticas e de acompanhamento, como se deu tratamento mais aprimorado ao tape e melhor uso ao play-back. Se, anteriormente, a ordem era “abaixar” o play-back e “soltar” o cantor, para evidenciar suas peripécias rouxinolescas, hoje procura-se um equilíbrio muito maior entre ambos.

Outra das revoluções propostas pela BN foi a apresentação gráfica dos discos. Aquelas tão famosas fotos posadas e tremendamente retocadas, de pessoas, de flores, ou de pôr de sol, e mil outras ilustrações simbólicas, relacionadas com motivos ou temas de melodias constantes da gravação, foram substituídas pela mais discreta motivação ilustrativa. Não raro apresenta-se um LP apenas com uma forma geométrica ou abstrata. Abandonando-se o excesso de cores, passou-se ao uso comum do branco e preto; às vezes, apenas um perfil ou o negativo de uma foto num fundo branco ou em “alto-contraste” – um dos primeiros e expressivos exemplos dessa linha foi a capa do LP de João Gilberto, O amor, o sorriso e a flor, idealizada por César Gomes Vilela. Fez-se inúmeras vezes o uso de colagens, assim como o de montagens gráficas e fotográficas.

Não apenas a parte gráfica das gravações sofreu radical modificação. Desenvolvendo-se mais conscientemente o tratamento técnico da realização musical, a vontade de racionalização dos problemas e o espírito de pesquisa, a própria nomenclatura modificou-se em função dessas características. Vejam-se os nomes dos LPs: Samba nova concepçãoNovas estruturasNova dimensão do sambaSamba esquema novoEvoluçãoMovimento 65Esquema 64Idéias. Mas além desses LPs que receberam nomes técnicos e paracientíficos, existem aqueles que demonstram o espírito consciente de renovação e vanguarda, como:AvançoRevoluçãoImpactoVanguardaOpiniãoÉ hora de lutar etc. Mesmo aqueles que possuem nomenclatura mais lírica, relatando um estado de espírito ou uma situação afetiva, revelam uma terminologia bastante simples e discreta, feita, às vezes, de uma única palavra, uma frase solta. Assim, são os seguintes exemplos: Inútil paisagemO amor, o sorriso e a florSem carinho, não…Oh!…Afinal,Chega de saudadeWanda vagamenteBaden à vontadeTudo azulO fino… e assim por diante. A exploração mais consciente das possibilidades e recursos da gravação, suas novas bases de tratamento como coisa em si e não como registro passivo da execução musical, sugeriu a criação de novas firmas especializadas, que, voltadas inteiramente para os principais eventos da BN, conquistaram o mercado com base no comércio da qualidade musical. A primeira delas, e sem dúvida a mais importante, é a gravadora Elenco. Fundada em 1963, arregimentou em seu cast parte dos mais importantes músicos atuais como Tom Jobim, Astrud, Baden Powell, Vinícius de Morais, Quarteto em Cy, Roberto Menescal, Sílvia Telles, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Nara Leão, Norma Benguel, Rosinha de Valença, Dick Farney e outros, além do Caymmi de sempre. Aloysio de Oliveira, músico ativo dos tempos de Carmen Miranda e hoje um dos maiores empresários de música brasileira no exterior, é o idealizador e diretor da Elenco. Além destes, cabe-lhe mais um grande mérito: foi como diretor da Odeon que Aloysio de Oliveira produziu e lançou em 1959 o LPChega de saudade, que, pela sua importância histórica, já foi aqui tantas vezes citado e analisado.

Outro acontecimento importante no campo da discografia popular contemporânea foi o surgimento da Forma. Dirigida por Roberto Quartin e Wadi Gebara, esta etiqueta caracterizou-se pelo alto teor artístico-experimental de suas produções e pelo cuidado dispensado a todos os detalhes técnicos de seus discos. Em São Paulo, surgiu também a Som Maior, hoje uma das etiquetas da gravadora RGE dirigidas por Júlio Nagib, dedicando igualmente a maior parte de suas produções ao repertório BN e tendo em seu elenco vários dos mais importantes músicos desse gênero, como Alaíde Costa, Geraldo Vandré, César Camargo Mariano e seu conjunto Som 3 e outros. Destaquemos, nos discos da Som Maior, a participação de Hector Sapia, autor das mais arrojadas e inteligentes capas da discografia atual.

Mais um fenômeno curioso vem a calhar em nossas observações com relação à apresentação gráfica dos discos BN: cada uma das três firmas gravadoras acima citadas possuem, como símbolo comercial, uma simples figura geométrica.

Bossa-nova nos Estados Unidos

Como se sabe, a divulgação internacional de música popular liga-se diretamente a grandes máquinas promocionais; a trusts, monopólios, empresas de divulgação, gravação, radiodifusão, filmes etc. Em qualquer parte do mundo, por exemplo, ouve-se a pior e a melhor música norte-americana, simplesmente pelo fato de se tratar de um país rico e contar com as melhores condições e recursos promocionais. Se hoje, numa trattoria de Palermo, na Sicília, ou na mais fina boate de Paris, num clube de intelectuais de Praga ou num music-box de Tóquio, ouvem-se dezenas de vezes por dia “Desafinado”, “Samba de uma nota só”, ou “The girl from Ipanema”, não significa que o mundo, de uma hora para outra, por perspicácia ou interesse pelo Brasil tenha-se apercebido da qualidade da nossa música popular. O que houve foi o simples fato de que, tendo a música brasileira penetrado no mercado norte-americano, foi imediatamente exportada para toda parte em meio a twists, hully gully, jazz e outras bossas. Basta dizer que as traduções realizadas em outros países das músicas BN são feitas a partir do texto inglês e não do português – inclusive as de língua espanhola ou italiana. É preciso que se diga que é a segunda vez que isso acontece. Quando, durante a última guerra, os E.U.A. estavam, por motivos óbvios, interessados em manter boas relações com o Brasil, Bing Crosby cantava “Brazil”, Ethel Smith executava os chorinbos de Zequinha de Abreu, e Walt Disney desenhava “Você já foi à Bahia?”. Esse fato trouxe a essas músicas tamanha popularidade que ainda hoje fazem parte do repertório internacional.

Em todo caso, exportar nossa “bossa” para um país que possui mercado musical auto-suficiente e dos mais ricos, senão o mais rico do mundo e vê-la reexportada, significa uma das melhores credenciais para a nossa música.

Mas o mais importante, acentue-se, é o fato de não termos apenas penetrado, como também modificado a música popular daquele país, como veremos em seguida.

A aceitação da música brasileira nos E.U.A. deu-se por etapas. Na fase anterior ao sucesso definitivo, já excursionava por todo o país o Trio Tamba. Tendo viajado para lá em caráter de intercâmbio cultural, o conjunto fez um sucesso tão grande que se multiplicaram os convites para apresentações em lugares de grande importância, as quais foram terminantemente proibidas por entidades sindicais de defesa do artista norte-americano. Laurindo de Almeida, violonista brasileiro de há muito radicado nos E.U.A. e que tem seu nome registrado na história do jazz americano, também fazia, com artistas locais, apresentações esporádicas com grande sucesso. Um interesse maior despertou-se definitivamente quando vieram ao Brasil músicos como Herbie Man, Charlie Byrd, Stan Getz, Zoot Sims e outros, levando na algibeira as chaves principais da BN.

Dessas primeiras audições e gravações, de muita repercussão nos E.U.A. e na Europa, surgiu a hipótese da formação de uma embaixada musical brasileira que mostraria in loco, para os norte-americanos, o que era BN. Para tratar dessa possibilidade, veio ao Brasil o sr. Sidney Frey, diretor da Audio Fidelity, que, logo empresou um concerto de BN no Carnegie Hall de Nova Iorque, realizado no dia 21 de novembro de 1962. A essa apresentação seguiu-se uma segunda, em Greenwich Village, principal ponto de encontro, em Nova Iorque, dos melhores músicos americanos, e uma terceira no Lisner Auditorium, de Washington, com grande público e a presença da esposa do então presidente Kennedy.

Essas três apresentações marcaram mais uma das decisivas etapas da penetração da BN nos E.U.A. Ainda que a primeira delas, a do Carnegie Hall, tenha sido superada em meio a incidentes dos mais variados e não ligados a questões de qualidade musical, a BN continuou sua trajetória de conquista daquele mercado e subseqüentemente do internacional. Mas convém dedicar algumas linhas de esclarecimento àqueles incidentes, pois isso tem dado, aqui no Brasil, aos chamados “pichadores” da BN, oportunidade para depreciá-la. Sendo essa música, em sua manifestação mais pura, um gênero estritamente camerístico, fazer um recital num auditório para 3.000 pessoas já constituía um empreendimento arriscado. Era preciso, portanto, que os produtores tratassem de criar artificialmente condições de concentração e contato entre artistas e público, semelhantes às propiciadas pelos pequenos ambientes. O cuidado deveria ser ainda maior, pois se tratava de uma música praticamente desconhecida naquele país, de público tão exigente em termos de música popular. Sidney Frey, mais preocupado com a gravação do acontecimento, descuidou-se da própria retransmissão local e de outros recursos cênicos, resultando uma certa dificuldade de contato entre os jovens cantores e a platéia. Esse fato, porém, não criou grandes problemas à BN no sentido da sua compreensão. O povo norte-americano, que possui sensibilidade auditiva extremamente desenvolvida – lembre-se que o jazz é o gênero de música popular mais refinado do mundo! – soube identificar na BN uma série de elementos positivos, que assimilaria imediatamente. Soube, apesar da desorganização do festival, identificar na pessoa de João Gilberto o intérprete mais rigoroso e representativo – já ficando com ele por lá –, assim como as músicas de maior conteúdo inventivo: “Desafinado”e “Samba de uma nota só”,que se tornaram sucesso imediato, sendo ambas de autoria do principal compositor de BN no Brasil: Antonio Carlos Jobim.

Mas é preciso que se compreendam as razões que levaram os músicos e o povo norte-americano a se interessarem por essa música, uma vez que tal interesse não provém da interferência de nossas “máquinas promocionais”, que, tocadas a Cruzeiro, têm poucas possibilidades de influir num mercado cuja linguagem é o US Dollar… Por outro lado, ela não foi também “encomendada”, como no exemplo que citamos há pouco, por táticas oficiais de “boa vizinhança” ou qualquer outro tipo de “aliança”, exercendo sua penetração por vias inteiramente privadas.

A verdade é que o jazz, em sua evolução, abandonou o sentido de música de dança ou entertainment,caminhando cada vez mais no sentido da “música pura”, tecnicamente muito evoluída, acabando por penetrar, em várias de suas manifestações, na seara da melhor música erudita norte-americana.

cool-jazz, que pretendia ser a corrente musical da vanguarda, do rigor, do avanço controlado, evoluiu, porém, no sentido de uma improvisação exacerbada, auto-suficiente, às vezes contraída e quase alienada, na qual, não raro, o ouvinte permanecia incapacitado de acompanhar o desenrolar musical. Foi nessas circunstâncias que a presença de João, Astrud e Jobim se fez notar claramente no cenário musical norte-americano. Eles demonstraram, da maneira mais natural e descontraída, o verdadeiro sentido do coolmusical. Se Astrud não possui recursos vocais, se qualquer garota carioca poderia cantar como ela, isso não importa: o importante é que mostrou à música norte-americana as versões mais simples, espontâneas, menos artificiosas e mais relaxed de canções, em torno das quais os grandes músicos do jazz construíam verdadeiros cavalos-de-batalha. De todas as versões de “Garota de Ipanema”, que ultrapassam a uma centena, não resta a menor dúvida de que a versão de Astrud, João e Jobim, presente no disco Getz-Gilberto, é a mais despojada, a mais “enxuta”. Outro aspecto interessante dessa gravação é a participação de Stan Getz. Após ouvi-la atentamente, percebe-se que a atuação do maior sax-tenor americano é o único toque, digamos, “demagógico”: as suas improvisações abandonam, por vezes, aquele tom coloquial da narrativa musical, apelando, em certos impulsos, para o virtuosismo instrumental. Como se vê, ainda que Stan Getz seja o músico norte-americano mais interessado e mais esforçado no sentido de atingir o verdadeiro sentido da autêntica BN, torna-se para ele difícil permanecer naquela atmosfera de “comentário” ou “bate-papo” musical descontraído que são as interpretações de Astrud, João e Jobim nesse disco. Esse seu esforço nota-se ainda mais claramente pelo fato de ele não intervir com seu sax enquanto João canta e toca, ou de colocar, muito discretamente em pianíssimo, uma ou outra nota de contraponto ao canto de Astrud. Como se conclui, é difícil permanecer cool. Parece que o afã virtuosístico do jazz atual lhe tirou essa capacidade. Mas, qual é, na realidade, o primeiro e maior exemplo de música popular brasileira moderna despojada, ou cool, se não o disco Chega de saudade? Ou ainda, voltando ao disco Getz-Gilberto, qual das versões de “Garota de Ipanema” é mais econômica e concentrada (mais cool) que o piano de Jobim nessa gravação? Foi por tocar essa sua composição com um único dedo ou, nos acordes mais simples, com uma única mão, que os melhores músicos lhe tiraram o chapéu, chamando-o de “maestro de um dedo só”, prendendo-o nos E.U.A. por dois anos e levando-o de volta mais uma vez. Como se vê, ojazz sofisticado moderno não é a base da autêntica BN – e é preciso que isto fique bem claro. Quem quiser compreender o seu sentido exato, não deverá consultar nem Getz, nem Gillespies, nem Brubecks, e sim comprar o disco editado pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, de nome Noel canta Noel, onde encontrará na própria música brasileira e da mais autêntica – há quem o negue? – os mais expressivos exemplos básicos. Era aquele canto de Noel, que dizia, quase falando, da maneira mais simples, as coisas mais profundas, que João, Astrud e Jobim foram mostrar à música mais rica do mundo (simplicidade quer dizer despojamento de linguagem e não pobreza técnica ou musical) – fazendo-a parar, ouvir e aprender.

Essa foi, na realidade, a verdadeira revolução proposta pela autêntica BN à música americana. E se hoje a BN made in USA ainda é retórica ou demagógica como dissemos, não nos podemos queixar, pois eles a importaram há pouco (o jazz feito por brasileiros é bom porque já o importamos há 40 anos, no mínimo…). O importante é que eles já entenderam o seguinte (lembrando mais uma vez Newton Mendonça, “já me utilizei de toda a escala e no final não deu em nada”): a ordem é diminuir as notas e aumentar a tensão!

Bossa-nova na Europa

O problema da divulgação e assimilação da BN na Europa é completamente diferente. Lá ela se tornou realmente conhecida e executada após o seu sucesso nos Estados Unidos. E se lá chegou por vias indiretas, outras razões contribuiriam para que fosse mal executada e compreendida. Ou seja, no cansado continente europeu não existem condições para que ela seja assimilada integralmente, ou se torne popular como no Brasil e nos E.U.A. Da mesma forma que o melhor e mais avançado jazz é apresentado na Europa em teatros, como se fosse música clássica, ou em círculos reduzidos e fechados (a música americana realmente popular na Europa são as danças: twists, rocks e, por incrível que pareça, ainda o charleston!), a BN, uma música camerística e refinada, ficaria à margem dos interesses populares.

Em outros termos, a sensibilidade popular européia é pesada. Lá só triunfam as manifestações musicais que se baseiam no estardalhaço, no grito, nas letras, nas melodias, nas harmonias, nos ritmos mais primitivos. Mesmo no seio da música iê-iê-iê as diferenças são sensíveis: no Brasil, o seu ídolo máximo, Roberto Carlos, permanece parado em frente do microfone, cantando muito discretamente as suas canções; já na Europa, os ídolos da juventude, que têm nos Beatles sua expressão máxima, atiram-se ao chão com guitarras e microfones, emitem os mais incríveis ruídos, deixam crescer os cabelos e promovem outros e semelhantes escândalos para se fazerem perceber pela massa, dando-nos não raro a idéia de que a Jovem Guarda brasileira é que pertence a um país supercivilizado e que aqueles músicos cabeludos, barbados, sujos, mal vestidos, urladores, é que pertencem a um país de bárbaros ou subdesenvolvidos. Mas saindo da faixa dos beatlemaníacos a coisa não muda muito. Se as dezenas de Ritas Pavone e Pepinos di Capri apresentam postura mais discreta, vence sempre aquele que mais grita e mais geme. Na Europa, em geral, tirando as manifestações folclóricas, já congeladas, como o flamenco, o fado, algumas danças e cantos até medievais dos países eslavos, as marchas alemãs (cantadas em festas, inclusive pela juventude), ou as canções de caça e de passeio à floresta, editadas em breviários e invariáveis há séculos, assim como as chansons françaises que pouco diferem das renascentistas, pouco há de criativo. O sentido de evolução, pesquisa e detalhe, presentes na BN e no jazz americano, não o encontramos em nenhuma música popular européia. Se nas canções francesas, para citar um exemplo, deparamos com alguns textos mais inteligentes, como os de Brassens, Brel, ou os referentes aos problemas da juventude, cantados por Françoise Hardy, não há dúvida que musicalmente não há nada de novo em suas músicas e que, com apenas três acordes de uma única tonalidade (tônica, dominante e subdominante), poderíamos acompanhar todas as canções e os gemidos dessa francesinha simpática e todos os rock-balladas de seus conterrâneos.

Nessas condições, a penetração da BN nesse continente teria que sofrer uma série de modificações para ser assimilada. Em primeiro lugar criou-se uma forma de dançá-la. Liquidaram-se, portanto, todas as suas inflexões de detalhes e seu sentido de música de câmara rebuscada. Fizeram-se traduções (a partir do inglês) imbecis e que nada têm a ver com o original, criou-se uma base rítmica ruidosa que mais se aproxima da rumba ou do baião, absolutamente quadrada; além disso, é ela interpretada por cantores que fazem de sua linha melódica, simples e evidente, mil variações no sentido de chamar a atenção para a sua figura e demais afetações próprias do estrelismo vocal. Na França, já pela tendência mais intimista do povo, ela foi melhor ouvida, notando-se também um maior esforço de assimilação. João Gilberto é muito admirado e seus discos são tocados diariamente na Rádio Difusão Francesa, gozando de grande popularidade. Em todo caso, as perspectivas de uma penetração da BN na Europa, com suas características mais importantes, ainda são muito pequenas, pois todo o seu refinamento – seja da composição, seja do texto ou interpretação – exigem um longo período de assimilação, assim como uma perspicácia auditiva que não percebemos em nenhum país europeu, haja vista a natureza de suas músicas. Sim, pois gostar de Beethoven, ou identificar os temas de suas sinfonias, não significa nem perspicácia nem musicalidade popular, visto que tais sinfonias se repetem centenas de vezes por dia em rádios e teatros e isto há mais de 150 anos… Eque dizer, então, dos países da América Espanhola, onde os dramas “pel-mexicanos” de seus tangos, guarânias e boleros dominam totalmente o interesse popular pela música?

P.S. – Ao fecharmos este capítulo chega às nossas mãos o catálogo deste ano do famoso Festival de Berlim, o mais importante acontecimento artístico anual da Alemanha. As apresentações do Festival, do qual fazem parte apenas os mais importantes artistas internacionais, são concorridíssimas e a venda de bilhetes – sabemos por experiência própria – esgota-se em questão de horas (grande parte das entradas é vendida com antecedência de um ano, em outras cidades ou países, para aqueles que viajam a Berlim especialmente para assistir ao Festival). Do programa geral constam ciclos de óperas, de concertos sinfônicos, de concertos de câmera, de recitais, de ballet, de teatro e um ciclo de quatro dias dedicados ao mais avançado jazz. No segundo dia desse ciclo, chamado Berliner Jazztage, figura a seguinte apresentação: – 4-11-66, 20,30 horas, Saal der Philharmonie (a recentemente inaugurada e mais moderna sala de concertos do país, especialmente construída para a Filarmônica de Berlim); “Stan Getz Quartett und Astrud Gilberto”, “Bossa Nova do Brasil” – “Eine authentische Dokumen-tation”.

Bossas, jazz etc.

Ainda que muitos afirmem o contrário, a BN foi um movimento que provocou a nacionalização dos interesses musicais no Brasil. Como se sabe, a BN reavivou e reformulou um sem-número de antigas formas musicais brasileiras; trouxe para a prática musical urbana uma série de motivos do nosso folclore; refreou, após o seu sucesso popular, a importação de artistas do exterior, e assim por diante. Mas, a nosso ver, a sua principal contribuição foi o fato de ter substituída – não de todo, é claro – a prática das antigasjam sessions, e das preocupações dos jovens instrumentistas pelo jazz moderno, pelas reuniões informais privadas e em pequenos teatros, cuja preocupação e tema são: música brasileira moderna. A inexistência de uma música brasileira “progressiva” levava os jovens músicos, sedentos de novas experiências, à prática do jazz, uma vez que esta era a única música popular que dava ao músico a mais plena liberdade de invenção, de improvisação, de busca de sonoridade, harmonia e ritmos raros. Não há dúvida também que os jazzistas de antes é que se transformaram em alguns dos principais “bossa-novistas”. Isso, porém, não se deu acidentalmente e sim pelo fato de ambas as músicas possuírem inúmeros pontos em comum, uma vez que as origens das músicas brasileiras e americanas se encontram no mesmo lugar: na África. Assim, a influência mútua entre ambas as músicas é tão admissível como é inconcebível a influência do iazzou da BN sobre outras manifestações musicais latino-americanas, como o tango, o bolero, ou a guarânia paraguaia – excetuando-se naturalmente omambo, que influenciou e recebeu influência do jazz, e que é também de origem africana – ou sobre manifestações musicais européias, como a canção francesa, o operismo quase histérico dos Pepinos di Capri e de toda a Itália, ou sobre a melancolia estática das manifestações musicais populares dos países escandinavos. Além do mais, como já dissemos, se a música folclórica se caracteriza por permanecer estática e não ser influenciável, a música urbana de qualidade afirma-se por seu aspecto evolutivo, compreendendo a assimilação de elementos exteriores.

Incorporar, portanto, experiências positivas de outras músicas à nossa prática composicional, não representa, em si, nada de negativo. Saber digeri-Ias aqui e aplicá-las criativamente – lembre-se da “antropofagia” sugerida por Oswald de Andrade! – isto sim é que constitui o principal problema da invenção artística. Acreditamos que, nos dias atuais, a nacionalidade de uma nova realidade espiritual é um aspecto que vem a posteriori e não a priori em relação à sua manifestação e afirmação.

Quarteto Os Cariocas

Se anteriormente falamos em música popular brasileira “progressiva” e em “precursores” da BN, caberia também neste “balanço” uma nota especial pela sua atuação já de mais de 20 anos, dedicada ao conjunto vocal Os Cariocas. Esse quarteto, que se formou como muitos outros conjuntos vocais masculinos há anos atrás – Anjos do Inferno, Bando da Lua, por exemplo – permanece até hoje, com as características básicas que lhe imprimiu o seu fundador, o saudoso Ismael Neto, compositor de tantos sucessos, como “Marca na parede”, “Canção da Volta” e “Valsa de uma cidade”. Preocupado, inicialmente, em estender para vozes as harmonias e os efeitos que se obtinham instrumentalmente, o conjunto, já no início de suas atividades, chamava a atenção de Villa-Lobos, que recomendava a seus alunos e colegas para observarem o que vinham fazendo aqueles “quatro rapazes” da Rádio Nacional do Rio. Ouvindo recentemente algumas das últimas realizações do conjunto, tivemos a oportunidade de constatar que os “quatro rapazes” chegaram a realizar experiências vocais arrojadíssimas, como o próprio Villa, o maior compositor brasileiro e que só compunha música para “eruditos”, jamais se atreveu a escrever para quatro vazes. Ouça-se, por exemplo, o arranjo de “Insensatez”do LP Mais Bossa com Os Cariocas (Philips P. 632.177 L), ou “Tema para Quatro”do LP A Grande Bossa dos Cariocas (Philips P. 632.710 L), ou ainda, na década de 50, o arranjo de Ismael Neto para sua composição “Dá-me um último beijo”do LP da Columbia (LP CB 37.012) Os Cariocas a Ismael Neto.

Se nem todos os arranjos possuem a concentração e sentido experimental dos exemplos citados, o conjunto sempre revela um elevado nível de realização musical, que já pertencia à sua rotina de trabalho. Integrado por Severino Filho – orientador musical, e irmão de Ismael Neto – Badeco, Quartera e Luís Roberto, entoa as mais intrincadas harmonias, realiza as mais sutis articulações de fraseados e ritmo, com tal liberdade e homogeneidade que se julgaria tratar-se de um só cantor ou de um só instrumento. Mesmo nos mais rebuscados efeitos, o conjunto permanece uniforme, atacando, terminando e respirando claramente o texto, qualidades raras inclusive nos domínios da música clássica.

Mas o importante é que, no Brasil, um conjunto com tais características e qualidades tem origem e atuação no terreno popular. Todos os seus integrantes são de formação improvisada e autodidata, dirigindo-se a um público de não “iniciados”, que lhes consumiria os discos, fenômeno que seria impossível de se dar na Europa, por exemplo. Um conjunto como Les Swingle Singers, o mais importante grupo vocal europeu, é constituído por músicos de formação erudita: alguns deles, cantores da Ópera de Paris, interpretam música de Bach – contraponto e harmonia já assimilados há 250 anos – e dão uma empostação jazzística não de vanguarda, mas nos moldes de 20 e 30 anos atrás, extraída de uma literatura interminável deixada pelos cantores negros americanos – Fitzgeralds, Jacksons etc. Por essa razão é que, fazendo certa vez na Alemanha uma palestra sobre música popular brasileira, ao tocarmos a versão dos Cariocas de “Insensatez”, acima citada, enfrentamos a incredulidade dos assistentes, pois, para os habitantes do “berço da cultura ocidental”, era incompreensível que uma realização musical tão arrojada fosse fruto da manifestação popular de um país por eles denominado de “subdesenvolvido”.

Hoje possui a música popular brasileira outros conjuntos similares, como o MPB-4, O Quarteto, 004, Quarteto em Cy. Este último, formado por quatro jovens baianas, numa gravação recente da Forma, com arranjos vocais de Luís Eça, atingiu padrões de realização vocal dos mais inusitados. Aos Cariocas, porém, deixamos aqui esta constatação-homenagem, pois, há 20 anos, antes mesmo do advento da BN e de uma música brasileira “progressiva”, eles já se lançavam no campo de uma música popular de caráter altamente experimental.

Piano-baixo-bateria: Zimbo-Trio-Tamba

As primeiras e conseqüentes tentativas no sentido de substituir a prática do jazz moderno por um samba moderno já datam de uns 10 anos atrás, época em que a BN se encontrava em suas últimas fases de cristalização e próxima ao salto qualitativo que a tornou definitivamente popular em 1959: o sucesso do LPChega de Saudade. Reuniam-se em pequenos grupos e apresentavam-se para auditórios de iniciados, elementos como Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Iko, Leo e Oscar (os irmãos Castro Neves), Bebeto, Chico Feitosa, Caetano Zamma, Sílvia Telles, Sérgio Ricardo, um misto de compositores-instrumentistas-cantores na borda dos 20 anos, que se tornariam, mais tarde, os principais elementos do movimento. A esse grupo, lastro ativo da BN, pertencia também um musicista digno de nota e consideração especial: o pianista Luís Eça. A ele se deve a formação do Trio Tamba, o primeiro conjunto estável de música instrumental BN e que exerceria substancial influência nos padrões de execução musical fora do canto e violão. Através dos arranjos de Luisinho, como é conhecido nos meios musicais, o Trio Tamba trouxe à nossa música popular o sentido da pesquisa e da elaboração preciosística, acostumando o público a perceber detalhes de construção musical mais rebuscados. A partir daí abandonou-se a idéia do conjunto instrumental que toca música “de fundo”, de dança, originando-se a prática, na música popular, da audição musical em forma de recital. Através do uso de microfones pendurados no pescoço, eles tornaram mais audíveis as realizações vocais, podendo entrar em contato mais facilmente com platéias maiores, assim como através de seus discos, que se tornaram populares, lançaram em circulação uma variedade dos mais refinados efeitos de execução musical, contribuindo sensivelmente para o desenvolvimento da perspicácia auditiva do grande público.

A qualidade musical dos arranjos, porém, não se deve apenas à sua inteligência e imaginação ilimitada. Mais do que um talento extraordinário, digamos, possui Luís Eça uma experiência e uma militância absolutamente exemplares para a música brasileira. Não foi apenas tocando samba ou jazz no piano que ele chegou a esses resultados. Seu interesse musical estende-se por todas as formas e fases da música. Como tenor de um quarteto vocal que só se dedicava às mais puras harmonias renascentistas, apresentou-se nos Festivais Internacionais de Teresópolis; preocupado com as sutilezas da interpretação mozartiana, foi a Viena e a Salzburgo entrar em contato com a fonte dessa música; por ser virtuose e dominar completamente a técnica pianística, se identificaria mais com a música de Chopin e Debussy, os compositores que melhor escreveram para o seu instrumento. Por essa razão, seus arranjos vão desde o samba de morro até os efeitos colorísticos da mais pura harmonia impressionista.

Mas o sucesso do trio deve-se também às qualidades musicais de seus outros integrantes: o contrabaixista Bebeto e o baterista Helcio, agora substituído por Ohana. Bebeto, um dos mais curiosos exemplos de musicalidade espontânea que já conhecemos, percebe, cria e realiza as melhores coisas sem conhecer uma nota de música – talvez seja esta a sua força. Toca contra-baixo, flauta, saxofone, clarineta, violão – temos a impressão de que, se tiver em mãos um aspirador de pó, conseguirá fazer música com ele… – canta, tudo descontraída e espontaneamente, com o mais profundo sentido musical. Seus solos de flauta aosax, nas gravações, não revelam qualquer preocupação com perfeccionismos instrumentais ou com uma sonoridade “clássica”; manipula seu instrumento e articula suas frases como se estivesse realmente falando. Ohana, baterista que pertenceu por muito tempo a conjuntos instrumentais de dança, tem agora seu lugar adequado na percussão do trio. Possui larga experiência, tendo viajado muito pelo exterior, mantendo-se sempre atento a tudo que apresentava interesse no seu setor. No conjunto, demonstra uma qualidade rara, importante na música de câmara, que é a de ouvir os outros elementos do grupo, integrando-se a eles sempre equilibradamente. Quando realiza seus solos, sem se alterar em nada ou lançar mão de efeitos extramusicais ou sensacionalistas, revela uma gama interminável de recursos, que vão dos mais impetuosos virtuosismos aos mais delicados e refinados detalhes, sem nunca repetir dois compassos ou figuras rítmicas.

Trabalhando nessas condições, o Trio Tamba, que no momento excursiona pelo Exterior, já se encontra em outro ciclo de sua atividade conjunta. Abandonando aquela fase de fazer arranjos de três minutos para as doze faixas de um disco, caminha agora no sentido de uma elaboração musical ainda mais ambiciosa. Num show que realizou na boateZum Zum do Rio, deu algumas das mais expressivas mostras de sua pesquisa atual, usando, em verdadeiras variações em torno de músicas conhecidas, que ultrapassavam 15 minutos de duração, os mais diversos recursos musicais, sobretudo os da própria música erudita. Parte importante do acontecimento foi a participação do Quinteto Villa-Lobos, grupo jovem, constituído dos melhores e mais sérios instrumentistas clássicos do Rio, daí resultando pistas das mais proveitosas no sentido de um maior e mais consciente intercâmbio de elementos clássicos e populares, bem como a evolução e incursão de nossa música por caminhos do experimentalismo musical, contribuindo para afastá-la cada vez mais do amadorismo inconseqüente.

Seria, porém, uma falha e uma injustiça se, falando em música instrumental na base piano-baixo-bateria, não citássemos um conjunto paulista que veio qualitativamente se colocar ao lado do conjunto de Luisinho Eça: o Zimbo Trio. Ambos, além de cultivarem mútua admiração, completam-se musicalmente, poderíamos dizer. Se o trio formado na praia do Leblon apresenta uma tendência sempre mais lírica e impressionista em suas versões musicais, o conjunto paulista orienta-se mais no sentido do clássico. Hamilton Godoy, pianista de formação erudita, portador de inúmeros prêmios, emprega em seus arranjos uma técnica de execução impecável. Nas passagens mais virtuosísticas percebe-se, pela clareza das articulações, o nível de sua capacidade instrumental, que é aplicada a um arranjo próprio de música popular, como poderia satisfazer as exigências de um estudo de Chopin. Luís Chaves, o contrabaixista do trio, é o maior instrumentista brasileiro nessa especialidade. Dominando o baixo completamente, demonstra em vários arranjos uma série de novos recursos e efeitos até então ignorados nos domínios desse instrumento. Além de tocar piano e fazer arranjos orquestrais, Luís Chaves possui uma ampla cultura musical que, associada à de seu colega Hamilton Godoy e à técnica do baterista-virtuose Rubem Barsoti, fez do Zimbo Trio um dos maiores conjuntos brasileiros, de nível internacional.

Walter Silva no Teatro Paramount

Nascida na intimidade dos pequenos apartamentos de Copacabana, como se costuma afirmar (pejorativamente ou não), a BN foi-se expandindo em suas relações com maiores públicos; inicialmente através de gravações, rádio e TV, e, em seguida, em contato direto com auditórios. Antes mesmo de sua afirmação definitiva no cenário musical brasileiro, realizou-se um sem-número de apresentações em pequenos auditórios, a maioria delas organizadas por estudantes (Teatro de Arena da Faculdade Nacional de Arquitetura, auditório da Escola Naval, auditório do Jornal O Globo, no Rio; e na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Teatro de Arena, Universidade Mackenzie, em São Paulo, para citar alguns exemplos). Essas reuniões possuíam, porém, um caráter mais limitado, mais camerístico, mais íntimo. As primeiras e verdadeiramente conseqüentes experiências que se fizeram no sentido de entregar a BN a grandes platéias e no da criação de um público interessado em acompanhar de perto e mais ativamente sua evolução, foram organizadas em São Paulo pelo popular disc-jockey Walter Silva. Igualmente assessorado por estudantes universitários, produziu no Teatro Paramount de São Paulo showsque ficaram famosos – registrados em discos, inclusive – e que levavam os curiosos nomes de Primeira denti-sambaO remédio é sambaMens sana in corporis samba, de acordo com a faculdade patrocinadora, e O fino da bossa, título que seria aproveitado pela TV Record de São Paulo para o seu programa de música popular brasileira moderna, transformado no porta-voz nacional da BN. Homem de grande militância, no rádio e na TV, Walter Silva foi um dos primeiros produtores de programas que contavam com grandes índices de audiência – “Pick-up do Pica-pau” – a se identificar com a BN e a propagá-la efusivamente, inclusive em épocas em que as mais confusas considerações se faziam em torno dela. Os showspor ele organizados no Teatro Paramount foram verdadeiros acontecimentos em que se presenciava, como talvez em nenhuma outra audição popular, total identidade espiritual-musical entre artistas e público. Aí se tornou possível a relação mais íntima e direta entre 3.000 pessoas e uma única cantora, de voz pequena e frágil, realidade que anteriormente só parecia possível entre quatro paredes de pequenos ambientes. Através dessas realizações conseguiu-se que uma grande massa juvenil, que se acotovelava nas dependências da velha casa de espetáculo, permanecesse imóvel e concentrada como num templo, a ouvir Alaíde Costa cantar uma melodia simples, pura como um canto gregoriano, sem acompanhamento e em tom quase ingênuo: “hoje a noite não tem luar, eu não sei, onde te encontrar…” O sucesso desses shows, que se repetiram inúmeras vezes e por onde passaram todos os principais elementos da BN, provocou verdadeiras metamorfoses na música brasileira atual. Em primeiro lugar, abriu um contato amplo e direto entre a BN e o grande público, sem que aquela declinasse de suas características principais: uma música de elaboração e detalhe. Representou um convite ao diálogo entre os artistas e o público, pois este deixou de assistir a semelhantes espetáculos passivamente, reagindo, aplaudindo, cantando, acompanhando, enfim, participando ativamente da realização musical. Da vitalidade desse diálogo, desse contato íntimo artista-público, surgiu também o interesse de registrar tais acontecimentos em discos, os quais se tornaram best-sellers por longo tempo, como O Fino da BossaBossa no Paramount2 na Bossa (este, o mais vendido disco da história do LP no Brasil!) e outros, lançando, ao mesmo tempo, a prática das gravações ao vivo, com palmas, assobios etc. O sucesso das apresentações, que ressuscitou, praticamente, o velho teatro, voltou as atenções gerais para a música popular brasileira. A partir daí, outros teatros e estações de rádio e TV passaram a organizar espetáculos semelhantes, fato que refreou a importação de artistas estrangeiros, pois dava prejuízo. Essa solicitação de música nacional injetou alta dose de autoconfiança no artista brasileiro, provocando, inclusive, o ressurgimento e o novo sucesso de artistas da velha geração, que foram trazidos novamente à baila. Mas a principal conseqüência de tais espetáculos foi o seu encampamento por parte da TV Record, que colocou assim seus principais elementos em função de um programa próprio, regular, de auditório e televisionado, assessorado por grande patrocinador, gravado emvídeo-tape, com distribuição nacional, dando pela linguagem da TV, o mais poderoso meio de comunicação de massa atual, o último toque de popularização a esse estilo musical, que, oriundo da intimidade dos pequenos apartamentos, depois de um longo percurso, pleno de experiências, voltaria à intimidade doméstica através de sua industrialização pela TV. Como dissemos anteriormente, o sucesso das grandes apresentações de BN para grandes auditórios e TV concentraria um interesse popular ainda maior na música brasileira, que se estendeu para fora da faixa da BN, atingindo manifestações musicais que já pertenciam à história. Dessa maneira, com a volta da atenção popular para os nossos “clássicos”, a própria TV Record se encarregaria de produzir mais um programa de música brasileira dedicado a eles, que levaria o nome de Bossaudade e seria apresentado pela “divina” Elisete Cardoso. Dois fatos se fazem também dignos de nota: foi no Primeiro denti-samba, de 23-11-64, que Elis Regina conquistou seu primeiro grande sucesso perante o público de São Paulo e foi também Walter Silva quem chamou pela primeira vez a atenção popular, com insistência e entusiasmo, para a obra de um jovem compositor, inteiramente desconhecido na época, que ele apresentava em todos os seus shows como uma das maiores promessas da música popular brasileira: Francisco Buarque de Hollanda.

Um “Jet” caiu no samba

“Anteriormente, quando um cantor se apresentava num palco de TV, era necessário distrair a atenção visual do telespectador com mil outros recursos, não raro com ballet ou filmes. Atualmente, o cantor brasileiro evoluiu nesse sentido a tal ponto, movimentando-se, gingando, variando as expressões faciais, obtendo, enfim, uma presença interessante no palco, que nos permite deixar uma câmara fixa sobre ele, sem que isso se torne monótono”, comentava certa vez Maurício Scherman, um dos mais conceituados produtores de showse espetáculos da TV brasileira.

Com a predominância em nossa época dos meios de comunicação de massa, da imagem em movimento – TV, filme –, a música deixou de ser uma realidade apenas auditiva para ser também visual. Assim, na TV e no cinema, como nos showsde teatro e boate, a movimentação cênica do cantor passou a ser mais cuidadosa e conscientemente tratada ou artificialmente forjada, pois ela faz parte do espetáculo vídeo-musical. Se o carnaval, um dos espetáculos mais ricos – e realmente populares – do mundo era, digamos, completo, pois ritmo, canto e coreografia nele se confundem inseparavelmente; se Hollywood e a Broadway nos dão, há anos, um interminável número de exemplos no sentido da mais variada coordenação musical-coreográfica, só mais recentemente é que a música popular brasileira urbana vem explorando mais nitidamente esse aspecto. E foi dentro do desenvolvimento da linha da BN que ele veio evidenciar-se. Quando a BN, música originalmente camerística, ganhava mais uma dimensão, a do espetáculo, seus artistas aprendiam, ao mesmo tempo, a ter uma postura adequada perante o grande público e perante as câmaras, ao invés de, mumificados, se esconderem atrás do microfone. Mas a abertura da música BN para o espetáculo, que se deu de maneira definitiva através das realizações do Teatro Paramount, depois incorporadas e ainda mais ampliadas pelo vitorioso programa de TV O Fino da Bossa, coincidiu com um fato sui generis, que, pela importância, se torna digno de nota: a chegada ao Brasil de um dos integrantes do grupo dos Jets de West Side Story, que, identificando-se de chofre com nosso país, nossa gente, nossa música, caiu de corpo e canto no samba, provocando verdadeira revolução no campo da música popular brasileira urbana de espetáculo. Referimo-nos ao coreógrafo, bailarino e cantor Lennie Dale. De sua longa e rica experiência de palco em diversos estilos e modalidades coreográficas, aplicada ao temperamento de nossa música, resultou uma nova e curiosa plástica, um misto de canto e movimento, que em muito pouco tempo influenciou consideravelmente toda uma geração de cantores e intérpretes. Entre eles inclui-se e destaca-se a figura mignon de uma cantora gaúcha, “Pimentinha” na intimidade e Elis Regina para o público e para os novos destinos da música popular brasileira.

BN Espetáculo

Na época em que as reuniões de BN no Teatro Paramount faziam sucesso, multiplicando-se e tornando mais populares os responsáveis por essa música, surgiu na TV Excelsior de São Paulo o primeiro Festival Nacional da Música Popular Brasileira que revelaria ao público, ou melhor, consolidaria definitivamente, o prestígio da cantora Elis Regina. Sua ascensão rápida e sucesso fora do comum levaram os produtores da TV Record a confiar-lhe a apresentação do novo programa dedicado à música nova brasileira, O Fino da Bossa, que, estruturado na base dos shows do Paramount produzidos por Walter Silva, transformou-se em QG das últimas atividades da BN. A Elis se deve grande parte do sucesso, não apenas do programa, mas também do interesse popular por essa música. Ela se projetou não só como uma cantora de boas qualidades vocais e grande imaginação, mas também dinamizou a música popular de palco, de show e TV, através de sua viva personalidade, que se manifesta artisticamente, não apenas pelo canto, como por uma coreografia temperamental e contagiante que lhe dá grande poder de contato com as massas. A dinâmica de sua interpretação, que influenciou um grande número de cantores, sugeriu também novas possibilidades na composição BN. Após o enorme sucesso de Elis e de “Arrastão”, música de Edu Lobo por ela levada à vitória no Festival da Excelsior, surgiu uma quantidade de composições semelhantes, que permitiam tanto versões camerísticas mais no sentido original da BN, quanto interpretações mais aparatosas e extrovertidas, adequadas para as manifestações musicais de cena e para grandes públicos. A música “Canto de Ossanha”, de Baden e Vinicius, para exemplificar, é interpretada pelo Trio Tamba de maneira intimista, digamos, elaborada e construtiva; Elis a interpreta em O Fino..., mais dramaticamente, entrando na segunda parte da música de corpo e alma, na mais rasgada batucada e no terreno do autêntico “sambão”. Nessa nova fase afirmaram-se três novos compositores, cujas obras vieram satisfazer as exigências desse período de expansão, em que a música nova se abriu para grandes contatos populares: Baden Powell, Francis Hime e Edu Lobo. O sucesso de O Fino da Bossa trouxe ao palco da Record toda uma plêiade dos mais importantes músicos brasileiros, permitindo muitas novas experiências, cruzando mil interpretações, assim como estabeleceu um elo histórico com a música tradicional, pois lá desfilaram vários elementos da bossa clássica, que, por serem recebidos com entusiasmo nessa reaparição pública, sugeriram a idéia de um novo programa: o Bossaudade. Assessorada pela alta qualidade musical do Zimbo Trio e acompanhada pelo charme, pela simpatia e pela espontaneidade crioula de Jair Rodrigues, Elis conquistou a audiência da TV em seu horário, mantendo lotado o auditório do antigo Cine Rio da Rua da Consolação, de São Paulo.

Rebalançando

Considerando, porém, mais criticamente os acontecimentos que vêm norteando as mais recentes manifestações tidas como BN, iríamos notar uma série de metamorfoses, relacionando-se às características, propósitos e conquistas da fase inicial e seu estado atual. Para tal, seria suficiente tomar como termômetro o próprio programa O Fino… Partindo dele, podemos constatar que as últimas tendências se abrem cada vez mais na direção de dois diferentes campos que já em nada se relacionam com o sentido original da BN, que havia revolucionado a música brasileira e a havia feito música de vanguarda no exterior. A primeira dessas tendências é a que, deixando-se seduzir pelo sucesso empolgante e nacional do programa, foi apelando, nesse desejo de conquistar cada vez mais as massas, para espetáculos quase carnavalescos. Elis e Jair, após o sucesso dos seus pot-pourri, voltam-se cada vez mais para o samba rasgado, para a batucada, para as orquestrações com instrumentos de metal gritantes, relançando sucessos que pertenciam anteriormente ao público de Jorge Goulart, como “Eu Sou o Samba”, e outros grandes sucessos carnavalescos, como “Tristeza”, “Não me Diga Adeus”, “Carnaval”, “Guarda a sandália dela” e outros.

Por outro lado, cantores como Wilson Simonal, Leny Andrade, Peri Ribeiro, Wilson Miranda, enveredaram mais para o campo de um virtuosismo vocal exacerbado, imitativo da improvisação instrumental do jazz e dos be-bops americanos, artificioso, ultra-sofisticado, pleno de afetações e maneirismos que fazem das músicas mais simples verdadeiros labirintos melódicos. Simonal, sem dúvida alguma o mais bem dotado e seguro dessa tendência, poderia interpretar da mesma maneira “Mangangá da Barriga Amarela”ou “Cigarrinho Aceso em sua Mão”, pois tanto a música como o sentido do texto são para ele secundários. As peripécias rouxinolescas, os jogos de cena teatrais, o charme pessoal, o estrelismo, as pretensões ashowman, enfim, passaram a ser os aspectos preponderantes dessa tendência.

A própria Elis Regina, recebida tão simpaticamente pelo grande público, que prestigiou suas atuações com enorme entusiasmo, foi, com o tempo, perdendo aquela naturalidade e espontaneidade que lhe eram características, transformando aquele seu gingado tão musical e gracioso numa gesticulação quase declamatória e, às vezes, até melodramática. Em certas interpretações mais românticas, como “Aprender a ser só”ou “Zumbi”, ela parece nos dar a idéia de estar entrando em transe. Em sua gravação 2 na Bossa, vol. 2, quando interpreta “Canto de Ossanha”, ao pronunciar “vai, vai, vai, não vou”, o faz em meio a gemidos e soluços, concluindo a música com um grito quase desesperado de “vai”, como se fosse seu último arranque de vida. Seu programa O Fino… adotou um certo ecletismo, deixando de servir à idéia de uma música de vanguarda e progressiva, para se transformar gradualmente num apanhado de hits da música popular brasileira. Foi nessa altura que um fenômeno de TV, palco e espetáculo, provocou verdadeiro alvoroço nos redutos musicais de O Fino…: a intervenção do iê-iê-iê. Enquanto a turma de O Fino… entrava em pânico, motivado pela queda de prestígio, os meninos da Jovem Guarda apresentavam-se cada vez mais à vontade, sem lançar mão de nenhuma peripécia vocal; contavam suas historinhas da maneira mais simples e, se formos realmente coerentes, chegaremos facilmente à conclusão de que as interpretações de Roberto Carlos são muito mais despojadas, mais “enxutas” e, por incrível que pareça, aproximam-se mais das interpretações de João Gilberto do que os gorjeios dos que se pretendem sucessores do “bossanovismo”. Aliás, aqueles que se recusam a reconhecer esse fenômeno ou que tapam os ouvidos para a música iê-iê-iê por considerá-la uma heresia subversiva de lesa-samba, devem ter provavelmente mudado de idéia ao ouvirem Roberto Carlos cantar “Amélia”ou “Flor Maior”no Festival da Record; o chamado ídolo máximo do iê-iê-iê, pela sua discrição e força expressiva, através de um canto quase falado, sem apelar para sentimentalismos ou qualquer outro subterfúgio “estrelista”, deu um verdadeiro showde interpretação em termos de música brasileira.

Na realidade, aquela música BN que caracterizamos de “música camerística”, “progressiva”, “de pesquisa”, “de elaboração”, “música de detalhe, econômica, refinada, vanguardista, literariamente de alto nível, de blague, humor, sentimental, mas discreta, de linguagem simples e de rua”, aquela música relaxed e desinibida, aquela linguagem, às vezes, ingênua que dizia “ah! se ela soubesse que quando ela passa…”, que tanto lembrava o linguajar de Noel, parece que deixou de atuar, pois o frenesi do sucesso trouxe a demagogia, o estardalhaço patológico: se não se tomar cuidado, estaremos reeditando todas as versões do be-bopismo americanos – que nem sequer é o mais avançado jazz –, caminharemos no sentido de uma sofisticação da música carnavalesca, que, em sua forma mais simples, aplicada ao espetáculo de rua, torna-se um fenômeno artístico-social dos mais raros e ricos do mundo – e estaremos outra vez às margens do bolero e às voltas com os gemidos típicos da música centro-americana.

Em todo caso, não chamaríamos de “negativas” as experiências feitas pelos “simonais” e “rouxinóis” do meu Brasil e de todos os sambistas sofisticados, pois achamos importante a variedade, a versatilidade e a coexistência de diferentes tendências numa mesma música. Um fato parece-nos, porém, muito claro: foi expressando-se de forma mais simples, e numa fase de autoconscientização técnica e musical, reduzindo ao âmago e ao essencial um vasto mundo de experiências – rítmicas, melódicas, harmônicas, timbrísticas e interpretativas – que a música brasileira se tornou vanguarda aqui e no exterior. Foi tocando piano com um dedo só que Jobim conquistou o novo e o velho mundo. Foi interpretando “Garota de Ipanema”como qualquer menina de Copacabana, sem segredos nem artifícios, que uma cantora improvisada como Astrud triunfou num país superexigente em matéria de música como os E.U.A. e marcou sua presença internacionalmente. E foi com o seu canto cool, com o seu violão bem articulado, com suas harmonias precisas e sua “batida” clara e inconfundível, tudo feito da maneira mais despojada e sutil, que João Gilberto, depois de revolucionar a música brasileira, pôs em xeque vários aspectos da música popular norte-americana, chegando a criticá-la criativamente através de suas interpretações – e quem o afirma é a própria revista Down Beat, o mais credenciado e especializado periódico do jazz americano: “há 40 anos ninguém influenciara a música americana como hoje o faz João Gilberto”.

E foi Caetano Veloso, um baiano de pouco mais de 20 anos, quem definiu, com clareza de mestre, em entrevista publicada no n.º 7 da Revista Civilização Brasileira, alguns dos principais problemas de criação no contexto da música popular urbana atual. Caetano, um exemplo típico de musicalidade intuitiva, pessoa simples, modesta, muito jovem ainda, se fosse profundamente versado em “teoria da informação”, teria usado exatamente as mesmas palavras: “A informação da modernidade musical utilizada na recriação”; “só a ‘linha evolutiva’ pode nos dar a organicidade para selecionar e ter um juízo de criação”. Caetano viu bem! É essa chamada à conscientização dos recursos técnicos e artísticos atuais que vai conferir à música popular brasileira moderna o seu verdadeiro lastro criativo. Se um habitante de morro, em sua necessidade de expansão temperamental através da música, por falta de condições materiais, é levado a fazer uso de uma frigideira, chegando com isso aos melhores resultados artísticos, o músico urbano, que tem possibilidades materiais e meios para fazer uso de instrumental e técnica musical modernos, assim como as vias de informação – discos, partituras, livros – tem por obrigação cultivar uma modalidade de música com base nesses recursos. Essa conscientização e esse espírito de “evolução” intencional é que dá ao músico urbano a “organicidade de seleção”. Só ele o fará identificar a oportunidade do emprego, em dado momento, de um sutil efeito eletrônico de gravação, assim como o conteúdo humano que possa ter um simples canto ou frase dita por um analfabeto de morro, que se tornam a matéria-prima de sua criação artística. Essa foi a realidade proposta pela mais autêntica BN. Se, no decorrer desta análise, citamos tantas vezes João Gilberto, assim como Caetano o fez, não significa que todos os músicos devam compor ou cantar música como ele. O que existe de positivo e exemplar na obra de João é a sua atitude perante os problemas da criação artística. Foi utilizando-se do rico elemento telúrico, da tradição musical brasileira e conferindo-lhes um tratamento novo dentro do mais evoluído nível técnico, com base numa pesquisa por ele desenvolvida de rigor quase científico, que a música brasileira, por seu intermédio e da BN, deu o decisivo “salto qualitativo” que a transformou em verdadeira “arte de exportação”. Foi nesse exato momento também que ela impôs suas características e se distinguiu de todas as outras manifestações musicais latino-americanas. Enquanto o bolero, o chá-chá-chá e a música havaiana nos E.U.A. e na Europa Central e do Norte não ultrapassam o interesse do exótico, atingindo a uma camada de músicos que tocam em festinhas escolares ou em boatesà meia-luz, espécie de ópio ou masturbação espiritual para sugerir paraísos perdidos nos mares do Sul, a BN entrou no mercado internacional via Carnegie Hall de Nova Iorque e Saal der Philharmonie de Berlim; por outro lado, a faixa de músicos que dela se ocupou foi a dos mais importantes, tecnicamente mais evoluídos e artisticamente mais conscientes e conseqüentes da música americana de vanguarda – entre eles Bruebeck, Monk, Bernstein, Getz, Gillespie, Modern Jazz Quartet, Gil Evans e outros (diga-se de passagem, Gil Evans, sem sombra de dúvida, uma das mais importantes figuras do jazz americano dos últimos anos, principal revolucionário nos dias atuais da arte do arranjo e da orquestração, prepara um LP em parceria com João Gilberto).

Definindo toda uma estética de rigor, clareza e condensação máxima de elementos, João Gilberto propunha, numa de suas poucas composições conhecidas, a trilha exata da autêntica BN: como que a chamar a atenção para o fato de que, no momento, criativamente, o mais importante em música é tocar menos e fazer-se ouvir mais, o “baiano bossa-nova” lançava a sua equação “rara e clara” que parece sempre válida e merece ser meditada por quantos se dedicam conscientemente à criação de uma música em progresso. Nada melhor do que terminar com ela; sem mais, estas considerações: “Bim bom. E só isso meu baião. E não tem mais nada não”.

Extraído de Balanço da bossa e outras bossas, Editora Perspectiva, 1993