Leituras complementares
entrevista com zé celso
Entrevista com Zé Celso
Programa do Festival de Bobigny, França
Por que você decidiu montar O Rei da Vela?
Porque estávamos, depois do golpe de 64, perdidos, sabendo que o que tinha sido pensado antes não era mais o mesmo. O país tinha entrado em outra e era preciso descobrir o que estava acontecendo. Pedimos a dramaturgos, cineastas, estilistas, artistas plásticos, para nos enviarem peças, curta-metragens, vestidos, trajes que sintomatizassem essa grande mudança que havia no ar, aliás, em todo mundo não somente no Brasil, e iríamos fazer um espetáculo com essas contribuições todas. Mas nada que vinha nos revelava nada. Até que uma leitura em voz alta do Rei da Vela feita por Renato Borghi num apartamento da Vieira Souto em Ipanema para um grupo resumido de amigos, revelou a potência inclusive retórica do texto que procurávamos. Estava ali. Havia sido escrito de 1933 a 1937, nunca tinha sido montado e iluminava todo momento que estávamos passando. Eu fui para a casa do filho de Oswald, Nonê, com sua primeira mulher, uma francesa, e me atirei no Baú onde estava toda a obra do pai. Li tudo. Virei. Em um mês e meio montamos a peça, ela já estava em nós. E foi a maior revolução cultural que o teatro fez na história do Brasil pelo menos. Pois não ficou só no Teatro, se alastrou como peste no movimento tropicalista que hoje se alastra no movimento mix, no mundo inteiro. Caetano Veloso e Gilberto Gil, são seus divulgadores no mundo, mas cada vez mais aparecem estudiosos que querem saber de donde vem essa grandeza que é deles mas também da libido cultural que a cultura brasileira tem a dar ao mundo e que tem em Oswald sua maior antena.
O que você aprendeu com a montagem de O Rei da Vela?
Que tudo é possível em teatro e na vida. Que a arte tem poder, valor. Oswald escreveu um de seus primeiros livros de poesias, bem pequenininho, com o titulo parodiando as “Indústrias Reunidas Matarazzo: “POESIAS REUNIDAS O.A.” e dizia que suas poesias eram mais poderosas do que as mega indústrias de São Paulo de então. Eu acredito inteiramente. Por isso sua poesia nos faz derrubar paredes, construir teatros e agora se encaminha para o poder maior. O Oficina é cercado de todos os lados por prédios de um magnata da TV, um grande artista animador que foi um camelô: Silvio Santos. Todo o Bixiga quase é propriedade do seu grupo SS – Grupo Silvio Santos. Depois de 25 anos de luta, vamos nos aliar e construir o teatro de Estádio sonhado por Oswald. Quando falo em poder falo em Poder de Presença Humana diante da Presença do Poder Maquínico. Poder das máquinas de desejo como as do Teatro Oficina diante das máquinas castradoras e de especulação do capitalismo. Oswald misturou valores do erudito e do popular, do brega do cafona e do requintado, do político e do alienado, da retórica mais rigorosa e sublime a demagogia, do baixo calão, da eloqüência da vulgaridade, sem perder grandiosa Poesia de toda a vida . Um Maiakoviski muito mais engraçado .
Qual foi a repercussão cultural e artística de O Rei da Vela?
A de catalisadora de uma Revolução Cultural. Pela primeira vez viam-se as figuras dos quadros modernos, da literatura, da música, incorporadas, num corpo de atriz ou ator, na cena, na cenografia, cenografia paródica de Helio Eichbauer, e de seus figurinos, trazendo nos seus três atos cada qual um estilo: ópera, cubismo, teatro de revista, o visual mais marcante do Tropicalismo. Foi para o Cinema, para Moda, para a Luta Armada, para o desbunde, para tudo. Redescobria-se um Brazil, que apesar de colonizado, explorado, devorava seus dominadores e trazia intacta na vida de seu povo o dionisismo, a antropofagia, o carnaval da Grécia do Brasil. Essa revolução continua até hoje, mas soterrada outra vez pelo AI 5, mas que agora no cinqüentenário da morte de Oswald, é retomada, assim como o embrião castrado do 68 no mundo inteiro, que continuou por exemplo aqui no Oficina a ser sempre estudado, amadurecido e vivido sempre com a eternidade do seu aqui agora.
O que você descobriu culturalmente com O Rei da Vela?
Que a Cultura é o fator de maior riqueza e poder do Brasil e que deve dirigir a linha do Banco Central. Felizmente nesse momento nós temos um Oswaldiano no Ministerio da Cutura: Gilberto Gil, juntamente com Celso Amorim nas relações exteriores, são as duas pessoas mais carismáticas e práticas do Governo Lula. Forte no sentido da força da presença transhumana que vale tudo, e que o capitalismo nesta fase hegemônica despreza até na figura humana do próprio capitalista. Seu maior adversário não é a ONG terrorista Al Kaeda, mas a própria vida que não sabe mais nem capitalizar e que joga fora, exclui, ignora ,extermina.
Qual a diferença entre a peça e o filme O Rei da Vela?
Antes de Noilton Nunes e eu partirmos para a montagem do Rei da Vela, nós tiramos um master com todo material filmado e deixamos pré-montado o primeiro, o segundo e o terceiro ato da peça tal como foi montada no Teatro. Hoje há muito interesse em se conhecer a versão teatral que foi extremamente bem filmada por Carlos Alberto Hebert e Rogerio Noel, falecido,com som direto muito bem feito por um Seu Riva, também falecido. Nossa montagem, minha e de Noilton, começa pelo fim da peça e numa montagem não linear fomos ao mesmo tempo que ,juntando todo o material filmado em 1971 – parte no Teatro João Caetano durante uma temporada da peça no Rio e parte em externas, na Semana de Páscoa deste mesmo ano inserindo a própria luta em torno da preservação do filme e do que ele significava como link entre o trabalho passado e o futuro. Tivemos no Oficina uma coisa rara. Morremos uma época totalmente, como Grupo visível, vivendo uma vida subterrânea louca, criativa, mas no completo ostracismo, mortos. Depois ressuscitamos mais fortes do que no primeiro nascimento. O Rei da Vela foi o elo de ligação entre essas duas vidas. Ao mesmo tempo Noilton tem até hoje lutado para fazer um filme sobre Euclides da Cunha na Amazônia, “Paz” na época o projeto chamava-se “Sem Fronteiras”. Ele como eu tinha material de família feito pelos pais e tinha de uma Tragédia: a morte do pai, da mãe, do irmão, num desastre automobilístico. Misturamos nossas paixões e energias e montamos uma mandala apaixonada, por tudo que se passava entre nós e por tudo que cada um de seu lado tinha vivido. Demos nossas vidas, misturamos no filme os dos nossos pais, nossos desejos, tudo ao O Rei da Vela pra que ele tivesse a vida vivida vinda da nossa paixão pelo cinema, por nos mesmos, pelo Brasil que começava a sair da ditadura. Acho que o filme a cada ano que passa é mais rico, porque foi tecido na montagem com rigor, liberdade e inspiração. As vezes chorávamos muito na moviola. É uma tapeçaria de uma ligação muito forte numa época difícil do Brasil em que Abelardo II subia ao poder na abertura lenta, gradual e restrita e o povo continuava na Jaula, sob o domínio de Mr. Jones. Foi proibido pela censura, Liberado para o exterior. Foi para O Festival de Berlim. Teve uma exibição suntuosa na Cinemateca de Paris. Foi para a Índia, e muitos outros países, mas nunca teve um lançamento normal, comercial aqui no Brasil. Quando o filme ficou pronto a Embrafilme estava muito empobrecida a ponto de fechar como distribuidora. Conseguimos com muito custo um lançamento no Rio. Pai Gilberto, um pai de santo, nos apoiava e nos orientava a fazer um trabalho para Exú pondo todo dia na Embrafilme um despacho na portaria. Até que cedessem. E cederam. Concordaram em começar a pensar em distribuir. Na estréia do filme organizamos um Bori, uma refeição de candomblé em que se comem todos os deuses. Pai Gilberto preparou para 300 pessoas. A comida fica no chão em folhas de bananeira e palmeira. Um office boy do Oficina entusiasmou-se muito e soltou um rojão que explodiu um carro Volkswagen estacionado na porta. Fomos todos presos no cinema. Uma parte do publico ficou de dentro e outra de fora e nós os diretores fomos terminar a estréia na delegacia de Copacabana. Mas o filme foi exibido muitas vezes e cada vez com mais sucesso. No dia do cinqüentenário de Oswald ele foi exibido no CINE SESC em São Paulo com uma cópia que tenho há 22 anos, com legendas em inglês e foi um arrebatamento. Agora vamos lançá-lo em DVD.