Leituras complementares
teatro anos 70
Teatro Anos 70
Luiz Carlos Maciel
Extraído de Anos 70 – Trajetórias, Iluminuras/Itaú Cultural, 2005
A década de 1970 foi o período mais repressivo do regime militar instalado no Brasil em 1964. A agitação estudantil de 1968 parece ter assustado a ditadura, que resolveu sufocar a qualquer preço qualquer indício de contestação. Depois do Ato Institucional n. 5, AI-5, as prisões se multiplicaram, as torturas se intensificaram, com métodos aperfeiçoados, e as execuções secretas tornaram-se prática comum.
Foi bem diferente do que havia acontecido após 1964. A ascensão da extrema direita ao poder parecia provisória, efêmera, um acidente de percurso a ser corrigido em breve pela marcha inexorável da história. Não houve, por isso, a transformação radical de corações e mentes que se iria verificar após 1968.
Aí sim. O AI-5 era o triunfo definitivo da repressão. Agora, não se sabia mais quanto tempo a ditadura ia durar. Aparentemente podia ser para sempre.
O plano da cultura, naqueles anos, se caracterizou pela presença absoluta da censura. Tudo era censurado – jornais, livros, filmes, mas principalmente peças de teatro. O crítico José Arrabal declara, em seu ensaio sabre o teatro brasileiro nos anos 70: “Nunca, em toda a história de nossa formação social, foram proibidos tantos textos dramáticos e tantos espetáculos de teatro”.
Pois é: a principal mania dos censores da época era censurar teatro. O número de peças que, no Brasil, foram cortadas, mutiladas e simplesmente proibidas parece incalculável.
Já em 1968, eu próprio tivera uma experiência desagradável. Dirigi o primeiro espetáculo da peça Barrela, de Plínio Marcos, no Teatro Jovem do Rio de Janeiro, com produção de Ginaldo de Souza e um elenco que tinha, entre outros, Milton Gonçalves e Joel Barcelos. Enquanto ensaiávamos, enviamos o texto para a censura federal, em Brasília. Os dias passavam e não tínhamos resposta. Contávamos que haveria muitos cortes porque o tema – marginais presos numa cela – ensejava uma abundância de palavrões no diálogo. A resposta chegou no dia da estréia: não havia cortes simplesmente porque a peça estava totalmente proibida! Não podíamos estrear apesar de tudo o que fora gasto em tempo, dinheiro, energia, entre outras coisas. Não nos conformamos e apresentamos o espectáculo clandestinamente, altas horas da noite, numa autêntica manifestação de protesto.
Sugeri ao produtor Ginaldo que montássemos, então, um texto antigo – As Relações Naturais, de Qorpo-Santo, um autor recém-descoberto que estava sendo considerado precursor do teatro do absurdo, avant la lettre. O texto foi para Brasília e passou. O espetáculo estreou no Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro, mas não foi longe. Os signos cênicos utilizados tinham uma intenção crítica ostensiva e, depois de duas semanas em cartaz, se tanto, o espetáculo também foi proibido.
Com duas proibições em poucos meses, achamos que tínhamos de mudar de vida! Mas muitos continuaram. A luta contra a censura passou a ocupar primordialmente quase todos os trabalhadores de teatro no Brasil. Os protestos em nada resultavam. Era preciso enganar a censura.
O depoimento de Fernando Peixoto fornece exemplos abundantes dessas tentativas de escapar das malhas da censura por meio de estratégias para “driblar” os censores, como a utilização de peças históricas para discutir a sociedade brasileira de então. As metáforas empregadas, porém, às vezes eram tão obscuras que tinham o defeito, conforme repara Amir Haddad em seus depoimentos, de não serem entendidas nem pelos censores nem pelo público…
Não se poderia esperar que, em tal situação de asfixia, o teatro brasileiro fosse conhecer nos anos 70 um período de grande criatividade, mas isso também aconteceu – e exatamente em relação à necessidade de lidar com a censura ditatorial.
Pode-se dizer, grosso modo, que, até 1964, floresciam no Brasil três tipos de teatro. O primeiro era o convencional, às vezes marcadamente comercial, às vezes pretensiosamente artístico, mas sempre visando agradar ao chamado grande público; era o preferido pela crítica oficial e o que, mais tarde, se convencionou chamar de “teatrão”. As diferenças entre seus espetáculos eram de qualidade artística, e os critérios que os mediam eram puramente estéticos.
O segundo, que começava a ser criado pela geração mais jovem, era um teatro com preocupações sociais e políticas. Sua pretensão era contribuir para a transformação da realidade brasileira, sua humanização. Dois grupos, em São Paulo, se destacaram nessa linha de trabalho, norteada pela estética do realismo crítico: o Teatro de Arena e o Teatro Oficina.
Despontava ainda uma terceira orientação, a alternativa da vanguarda, que já rompia com os pressupostos realistas e representativos das outras duas direções em favor de uma estilização teatralista, apresentativa. Eu próprio, quando comecei a fazer teatro, em fins dos anos 50, preferi filiar-me a essa orientação. Os dois primeiros espetáculos que dirigi, em Porto Alegre, foram Os Cegos, de Michel de Ghelderode, e Esperando Godot, de Samuel Beckett – duas obras típicas da avant-garde européia do século passado.
A expansão da censura, nos anos 70, atingiu bastante o teatro comercial e esteticista, principalmente porque, além da repressão ideológica, exercia uma repressão moralista, puritana, que investia contra sinais de uma liberdade no palco que se tornava cada vez mais comum nos centros desenvolvidos, como a liberdade de linguagem – o escandaloso palavrão – e a mais escandalosa ainda moda da nudez.
Mas o principal alvo da censura ditatorial era, como seria de esperar, o teatro político, especialmente se ele ousava referir-se diretamente à realidade brasileira. O depoimento de Fernando Peixoto é particularmente rico e preciso nesse sentido. Tendo trabalhado no Arena e, principalmente, durante muitos anos no Oficina, ao longo de todo o período da repressão, ele nos fornece um retrato amplo, abrangente, sem retoques, dos acontecimentos e de sua conseqüência para o desenvolvimento do teatro brasileiro.
A orientação mais poupada pela censura autoritária era a do teatro de vanguarda, talvez porque os próprios censores não soubessem direito do que se tratava e tinham alguma dificuldade em entender. Essa situação favoreceu o desenvolvimento da vanguarda no Brasil, no começo ainda atrelada aos princípios da literatura dramática, conforme ocorre na avant-garde francesa de Ionesco, Adamov etc. Mas, logo em seguida, na tradição teatralista, do que Ruggero Jaccobi chama de a estética do “espetáculo absoluto”, de Gordon Craig, Antonin Artaud etc., ampliou seus horizontes.
A geração preocupada com um teatro de participação social passou a se dedicar cada vez mais à pesquisa da linguagem do espetáculo, segundo os princípios da tradição teatralista. Nessa conexão, o nome mais importante e a influência mais poderosa foram, sem dúvida, de Bertolt Brecht. O trabalho de Brecht não se deixava prender pelas limitações formais do realismo crítico e avançava ousadamente para a invenção de uma nova linguagem teatral que fosse mais adequada ao seu conteúdo crítico. Inovava a linguagem do espetáculo sem perder a conexão com o compromisso social e político. Mais até: a própria inovação devia servir a esse compromisso.
Na linha de frente da evolução do espetáculo, entre nós, o Oficina foi o responsável pelos desdobramentos mais importantes. Montou Brecht (Na Selva das Cidades, Galileu Galilei), mas também propiciou a presença do “Living Theatre”, de Judith Malina e Julien Beck, entre nós.
Em conseqüência de tudo isso, um dos desenvolvimentos mais interessantes do teatro brasileiro nos anos 70 foi a aproximação da intenção política com a investigação da vanguarda. O depoimento de Amir Haddad é particularmente revelador com relação a isso. Ele conta que, em experiência pessoal, tudo começou porque a censura proibiu seu espetáculo A Construção; ele resolveu então “desmanchar” o espetáculo que, após meses de trabalho, foi totalmente “desconstruído” – e acabou sendo liberado pela própria censura (!) apesar de um conteúdo mais radical do que o de sua forma primitiva.
Assim, conforme depoimento de Amir, foi a própria censura que criou as condições que vieram a propiciar os resultados mais efetivos de sua investigação cênica. O trabalho de “desconstrução” do espetáculo, o aproveitamento de um texto exacerbadamente reacionário, como Morrer pela Pátria, para inovar a comunicação teatral foram experiências marcantes e conseqüentes.
A trajetória de Amir começa no Oficina, passa pela Comunidade no Rio de Janeiro, para desembocar no Tá na Rua, em que o projeto de um teatro popular encontra sua expressão mais simples e direta.
Não foi, no entanto, a fertilização da preocupação social e política pela criação vanguardista, que pode ser vista no trabalho de Amir e principalmente, em função de sua influência, na de José Celso Martinez Corrêa, que determinou o caminho da nova geração. Esse caminho ganha definição no trabalho de Gerald Thomas e de outros jovens diretores de orientação esteticista semelhante. Para isso, eles contaram com o apoio da crítica teatral. A vanguarda teatralista avançou vigorosamente nas últimas décadas, apoiada pelos críticos de teatro que, caracteristicamente, abandonaram a velha postura estética de defesa do texto prévio, da literatura dramática, em favor de uma nova atitude de valorização do espetáculo puro, da teatralidade absoluta.
Foi um turning point curioso. Se, antes, os críticos rejeitavam um espetáculo porque não era suficientemente “fiel ao texto”, agora o elogiam exatamente porque, nele, a importância do texto é menor em face principalmente da invenção visual. Os atores, por exemplo, agora são valorizados pelo trabalho corporal, pouco importando a deficiência das inflexões. Em conseqüência, os professores de expressão corporal passam a ser mais procurados do que os de técnica vocal. A ditadura do olho engolfa o teatro.
O depoimento de Mário Percentini aponta a orientação apolítica da vanguarda da nova geração do teatro brasileiro que se consolidou a partir dos anos 80. Ele declara que o teatro que procurou fazer nada tinha que ver com a intenção política evidente nos depoimentos de Peixoto e Haddad, não se identificando, portanto, nem com o racionalismo clássico do primeiro nem com a liberdade aparentemente até anárquica do segundo. Ele supõe uma nova vanguarda ritualística, litúrgica, como a tendência mais natural dos últimos anos.
Percentini tem razão. Ao contrário das preocupações sociais e políticas, a nova vanguarda, inspirada, por exemplo, em Grotowsky, que fala inclusive de urna “santidade” do ator, procura o significado metafísico do fenômeno da teatralidade pura. Ela pretende oferecer ao teatro uma missão mais ampla e mais profunda do que o simples compromisso político. Sua dimensão própria é espiritual, nada menos. Essa nova vanguarda interessou, além dos críticos, até aos monstros sagrados do teatro brasileiro, como Fernanda Montenegro, e hoje constitui praticamente um novo “teatrão”, ao lado de seu antecessor esteticista e comercial.
Contudo, não se tornou hegemônica. Ao contrário do projeto de minha geração de estabelecer uma política cultural nítida, fundamentada numa estética correta, numa interpretação impecável da realidade, que nos levava a defender o tipo de teatro que queríamos e a exercer uma crítica cáustica, impiedosa de todos os outros, nosso momento atual, na aurora do século XXI e do terceiro milênio, parece dominado por umZeitgeist pós-moderno disposto a impor um ecletismo compulsório.
Hoje, todas as orientações são válidas. Todos os teatros – o comercial, o esteticista, o político, as diferentes vanguardas etc. – coexistem de maneira mais ou menos pacífica, todos têm direito a um lugar ao sol, sem as cruzadas estéticas inspiradas pela programação de políticas culturais. Pode-se dizer até mesmo que a tensão inevitavelmente estabelecida entre todas essas tendências é mutuamente fertilizante.
É bom que seja assim. Os caminhos se fazem ao caminhar, os do teatro inclusive. Evidentemente, o teatro do mundo todo não sabe aonde vai. Mas nem a cultura em geral, nem a política, nem nada.
Assim vai o mundo, como diria Brecht…