Leituras complementares
tropicália
Tropicália
Hélio Oiticica, 4 de março de 1968
Da idéia e conceituação de Nova Objetividade, criada por mim em 1966, nasceu a Tropicália, que foi concluída em princípios de 67 e exposta (projeto ambiental) em abril de 67 (MAM). Com a teoria da Nova Objetividade queria eu instituir e caracterizar um estado de arte brasileira de vanguarda, confrontando-o com os grandes movimentos da arte mundial (Op e Pop) e objetivando um estado brasileiro da arte ou das manifestações a ela relacionadas (ver catálogo das exposições Nova Objetividade Brasileira no MAM – abril 1967). A conceituação da Tropicália, apresentada por mim na mesma exposição, veio diretamente desta necessidade fundamental de caracterizar um estado brasileiro. Aliás, no início do texto sobre Nova Objetividade, invoco Osvaldo de Andrade e o sentido da antropofagia (antes de virar moda, o que aconteceu depois de apresentado entre nós o Rei da Vela) como um elemento importante nesta tentativa de caracterização nacional. Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente objetiva, de impor uma imagem obviamente “brasileira” ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional. Tudo começou com a formulação do Parangolé em 1964, com toda a minha experiência com o samba, com a descoberta dos morros, da arquitetura orgânica das favelas cariocas (e conseqüentemente outras, como as palafitas do Amazonas) e principalmente das construções espontâneas, anônimas, nos grandes centros urbanos – a arte das ruas, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios etc. Parangolé foi o início, a semente, se bem que ainda num plano de idéias universalistas (volta ao mito, incorporação sensorial, etc.), da conceituação de Nova Objetividade e da Tropicália (ver monografias sobre Parangolé, de 1964: Bases Fundamentais e Anotações, lançadas na exposição Opinião, 65, no MAM do Rio, onde, aliás, se deu a primeira manifestação com as capas e tenda Parangolé, com participação de samba e passistas e ritmistas da Mangueira). Ver também a revista GAM nº 6 para mais completa informação sobre Parangolé e o que chamo de “arte ambiental” ou “antiarte”. Na verdade, para chegar-se a entender o que quero com a Nova Objetividade e Tropicália, posteriormente, é imprescindível conhecer e entender o significado deParangolé (coisa que, aliás, muito mais depressa entendeu o crítico londrino Guy Brett quando escreveu noTimes de Londres ser o Parangolé “algo nunca visto” que poderá “influenciar fortemente as artes européia e americana”, etc.). Com a Tropicália, porém, é que, a meu ver, se dá a completa objetivação da idéia. O penetrável principal que compõe o projeto ambiental foi minha máxima experiência com as imagens, uma espécie de campo experimental com as imagens. Para isto criei como que um cenário tropical, com plantas, araras, areia, pedrinhas. Numa entrevista com Mário Barata, no Jornal do Comércio a 21 de maio de 67, descrevo uma vivência que considero importante: parecia-me ao caminhar pelo recinto, pelo cenário da Tropicália, estar dobrando pelas “quebradas” do morro, orgânicas tal como a arquitetura fantástica das favelas – outra vivência: a de “estar pisando a terra” outra vez) Ao entrar no penetrável principal, depois de passar por diversas experiências táteis-sensoriais, abertas ao participador que cria aí o seu sentido imagético através delas, chega-se ao final do labirinto, escuro, onde um receptor de TV está em permanente funcionamento: é a imagem que devora então o participador, pois é ela mais ativa que o seu criar sensorial. Aliás este penetrável deu-me permanente sensação de estar sendo devorado (descrevi isto numa carta pessoal a Guy Brett em julho de 67) – é a meu ver a obra mais antropofágica da arte brasileira. O problema da imagem é posto aqui objetivamente – mas sendo ele universal, proponho também esse problema num contexto típico nacional, tropical e brasileiro. Propositadamente quis ee, desde a designação criada por mim de Tropicália (devo informar que a mesma foi criada por mim, muito antes de outras que sobreviveram, até tornar-se a moda atual) até os seus mínimos elementos, acentuar essa nova linguagem com elementos brasileiros, numa tentativa ambiciosíssima de criar uma linguagem nossa, característica, que fizesse frente à imagética Pop e Op, internacionais, na qual mergulhavam boa parte de nossos artistas. Mesmo na exposição Nova Objetividade podia-se notar isto. Perguntava-me então: por que usar “arts and stripes”, elementos da arte Pop, ou retículas e imagens de Lichtenstein e Warhol (repetição de figuras, etc.) – ou, como os paulistas ortodoxos, o ilusionismo Op (que, aliás, conforme o caso, poderia ter raízes aqui, muito mais que a arte Pop, cuja imagética é completamente inadmissível para nós). Na verdade, porém, a exposição da Nova Objetividade era quase que por completo mergulhada nessa linguagem Pop, híbrida para nós, apesar do talento e força dos artistas nela comprometidos. Por isso creio que a Tropicália, que encerra toda essa série de proposições, veio contribuir fortemente para essa objetivação de uma imagem brasileira total, para a derrubada do mito universalista da cultura brasileira, toda calcada na Europa e na América do Norte, num arianismo inadmissível aqui: na verdade quis eu com a Tropicália criar o mito da miscigenação – somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo – nossa cultura nada tem a ver com a européia, apesar de estar até hoje a ela submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela. Quem não tiver consciência disso que caia fora. Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita européia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia da nossa terra, que na verdade são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é híbrido, intelectualizado ao extremo, vazio de um significado próprio. E agora o que se vê? Burgueses, subintelectuais, cretinos de toda espécie, a pregar Tropicalismo, tropicália (virou moda) – enfim, a transformar em consumo algo que não sabem direito o que é. Ao menos uma coisa é certa: os que faziam “stars and stripes” já estão fazendo suas araras, suas bananeiras, etc., ou estão interessados em favela, escolas de samba, marginais anti-heróis (Cara de Cavalo virou moda) etc. Muito bom, mas não esqueçam que há elementos aí que não poderão ser consumidos por esta voracidade burguesa: o elemento vivencial direto, que vai além do problema da imagem, pois quem fala em tropicalismo apanha a imagem para o consumo, ultra-superficial, mas a vivência existencial escapa, pois não a possuem – sua cultura ainda é universalista, à procura desesperadamente de um folclore, ou a maioria das vezes nem isso. Cheguei então à idéia de que seria a meu ver a vivência principal e fundamental da conseqüência das formulações anteriores: Parangolé, Nova Objetividade, Tropicália: é o Suprasensorial, que apresentei no Simpósio de Brasília em dezembro de 1967, promovido por Frederico Morais, num artigo intitulado “Aparecimento do Suprasensorial”. Esta formulação objetiva certos elementos de dificílima absorção, de quase impossível consumo, o que espero eu, consiga colocar os pontos nos ii: é a definitiva derrubada da cultura universalista entre nós, da intelectualidade que predomina sobre a criatividade – é a proposição da liberdade máxima individual como meio único capaz de vencer essa estrutura de domínio e consumo cultural alienado. Num longo artigo que estou preparando, “A Busca do Suprasensorial”, todos esses problemas são postos e propostos: o velho da “volta ao mito” o da cultura nacional, a supressão definitiva da “obra de arte” (transformada em consumo na estrutura capitalista), o da criatividade no plano coletivo em oposição ao condicionamento vigente, o do uso das drogas alucinógenas no plano coletivo (inclusive mostrando a grande diferença dessa proposição aqui para a de Timothy Leary e adeptos dos USA), o dilatamento da consciência individual para o plano criativo, a incomparável diferença da expressividade do negro e, relação ao branco intelectualizado, criação do mito brasileiro da miscigenação. Como se vê, o mito da tropicalidade é muito mais do que araras e bananeiras: é a consciência de um não condicionamento às estruturas estabelecidas, portanto altamente revolucionário na sua totalidade. Qualquer conformismo, seja intelectual, social, existencial, escapa à sua idéia principal.