Ruídos pulsativos
Herdeiros Musicais
A Tropicália representou um momento muito rico da música brasileira e um envolvimento com diversas tendências: a música nordestina, a música erudita, a música pop internacional e local, Roberto Carlos, Luiz Gonzaga. Esse movimento dialogava também com outras coisas muito fortes como a Bossa Nova, a Jovem Guarda, o samba. A partir do momento Tropicália o entendimento de música brasileira mudou bastante.
Eu, pessoalmente, não me considero filho de Caetano, nem sobrinho de Ariano (o escritor Ariano Suassuna). Sou mais descendente de Augusto dos Anjos do que um descendente direto do tropicalismo.
A minha geração foi trabalhando com caco, com lixo, com coisas que aparentemente não prestavam mais, como misturar música brasileira com influências da Índia, da África, do pop americano, do pop britânico
e tal. Eu me apropriei de diversos elementos como os que o Tropicalismo havia lançado e fui percebendo isso no meio do caminho. Eu sabia que eu não estava inventando nada e que isso já tinha acontecido
lá atrás. Para quem vem fazendo música como eu, dos anos 80 para cá, é inevitável que algo feito por esse grupo formado por Tom Zé, Capinan, Gil, Caetano, Rogério Duprat, Os Mutantes, Gal Costa, não tenha deixado uma marca. A marca deles está aí e parte dessa marca está em nós. Mas a gente não pode ver
Gil e Caetano como uma árvore tão grande, cuja sombra impeça os outros de serem vistos e que outras manifestações não possam aparecer, sendo entendidas em sua particularidade.
Quando os tropicalistas fizeram uma festa para a Rede Globo, um programa chamado, sei lá… “Tropicalismo, todos os anos ou 30 anos”, os herdeiros do Tropicalismo a quem eles levaram foram
os cantores de axé music. Eu acho então que a vitória mercadológica do Tropicalismo tem herdeiros
muito claros, mercadológicos. Já está dito. A grande mãe Globo junto com os patriarcas do Tropicalismo,
Caetano Veloso e Gilberto Gil, já disseram isso. Foi feito um evento para dizer isso.
Torquato morreu, Tom Zé foi “exilado”, Capinan vive de dar cursos e o lado do Tropicalismo que se sobrepôs e apareceu nos últimos 20 anos foi esse lado de maior generosidade com o mercado, aí na hora de apontar os herdeiros é a Banda Eva etc. É isso. O herdeiro comercial do Tropicalismo é o axé music. Mas o herdeiro ideológico do Tropicalismo, o herdeiro estético nós não sabemos quem é.
As pessoas que fazem música se apropriam de tudo o tempo inteiro, se apropriam de tecnologias,
de posturas etc. e essa foi, inclusive, a atitude dos tropicalistas. Talvez nós vivamos hoje uma superação do conceito de herança. Não há mais herança, há apropriação. Isso que se chama de herança que,
por um lado, se considera positiva e ela é positiva — e também elogiosa aos pseudo herdeiros — diminui
o trabalho que as pessoas tiveram para reconstruir um conceito de música brasileira que estava se indo por água abaixo.
O que eu sinto como importante pra a gente que está surgindo agora é reconhecer que não há um pai.
Eu não me reconheço nesse pai e esse pai também não me reconhece.
Eu, Carlinhos Brown, Lenine e Chico Science surgimos mais ou menos na mesma época. Essas pessoas vinham fazendo música durante todos os anos 80, mas elas só apareceram na metade dos anos 90.
Aí eu acho que não se pode creditar o aparecimento dessas pessoas à herança pura e simples
do Tropicalismo. Talvez alguém possa se apressar e assumir-se como herdeiro por pura lisonja.
A influência maior da Tropicália é a Geléia Geral, isso nós temos, isso é inegável. Nós existimos, em parte, porque o Tropicalismo existiu e, em parte, apesar dele, porque é uma coisa tão sólida e tão bem plantada que quase impede que outras coisas apareçam como pensamento, como marketing, como tudo. Creio que a nossa influência maior (pelo menos nós os nordestinos) é Luís Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Esses
dois e, em menor medida, João do Vale, na minha opinião, são os primeiros artistas pop do Nordeste. Depois vem essa coisa de colocar tudo na centrífuga que o Tropicalismo fez. Essa atitude centrífuga de pegar tudo, botar ali como diz o Lenine: fazendo um creme rinse de um abacate e combinando coisas aparentemente incombináveis.
Essa reflexão que nós fazemos hoje sobre o Tropicalismo eu creio que encerra o próprio ciclo
do Tropicalismo. Acho que essa reflexão é como olhar o brilho de uma estrela que já morreu. A estrela continua brilhando, mas já morreu. Em vez de dizer que o Tropicalismo está vivo é melhor dizer:
Tom Zé está vivo, Caetano Veloso está vivo, Gilberto Gil está vivo, Gal Costa está viva. Quer coisa menos tropicalista do que Gal Costa hoje? Nada, nada a ver.
Exclusivo para o site Tropicália.