Leituras complementares
pau-brasil, antropofagia, tropicalismo e afins
Pau-Brasil, Antropofagia, Tropicalismo e Afins
O legado modernista de Oswald de Andrade na poesia e canção brasileiras dos anos 60/80
Charles A. Perrone, University of Florida
Não quero o reino dos céus: só me interessa o que não é meu.
Caetano Veloso (1971)
Oswald de Andrade ocupa um lugar todo especial no cânone da literatura brasileira. A formação canônica ocorre com a recepção crítica acumulativa, com o julgamento relativo de autores e obras, e a presença deles e delas em práticas contemporâneas. No caso de Oswald, fato fundamental é a reedição das obras nos anos 60 e o trabalho crítico paralelo de Haroldo de Campos e colegas. Dali parte a re-avaliação do papel de Oswald no Modernismo, como agente de ruptura estética, como estilista radical e como pensador cultural. No processo canônico também influi o impacto de autores e de suas idéias em gerações posteriores em termos de produção textual e de poéticas explícitas ou implícitas. Assim, o extenso reconhecimento de Oswald no âmbito da lírica de 1960 para cá explica a solidificação de seu lugar no cânone. Pois os projetos dele, a Poesia Pau-Brasil e a antropofagia, são pontos de partida para discursos culturais chaves de nossos dias, na literatura e além. Ecos das metáforas oswaldianas centrais ressoam na MPB, no Tropicalismo de fins da década de 60, e em momentos privilegiados da canção de lá para cá, sobretudo no repertório de Caetano Veloso, que alguns consideram como a mais importante voz poética de sua geração. Quanto às variadas poesias e comentários críticos das geraçãos atuais, Oswald tem sido uma fonte básica. Na chamada poesia marginal, os ares oswaldianos são claros, se bem que a avaliação da qualidade do ar seja outra questão. Na produção de grupos mais “construtivistas” ou de intermídia, com certa herança da poesia concreta, a presença oswaldiana se verifica tanto na iconografia de textos visuais quanto nos dizeres de obras puramente verbais. Nesta esfera, as lições modernistas de Oswald se filtram mormente pelos olhos da crítica concretista. Entre os polos de produção “marginal” e “construtivista” das décadas 70 e 80, e em publicações coletivas e individuais, o legado oswaldiano se percebe em atitudes e opções textuais como o coloquialismo, a condensação imagética, e a observação irônica da realidade nacional. Examinar e colocar em questão os mecanismos da recente produção lírica e sígnica ajuda na compreensão dos próprios modos oswaldianos.
A mais evidente instância do ressurgimento oswaldiano desde 1965 é o já famoso tropicalismo, um movimento de pouca vida mas de tremenda influência. Caetano Veloso e sócios fizeram uma revisão crítica da cultura brasileira através da canção e ampliaram os horizontes da música popular como modo “legítimo” de expressão artística. Elaboraram tanto a inovação da Bossa Nova quanto a Jovem Guarda, e na sua música experimental os tropicalistas aplicaram conceitos literários, a partir sobretudo da fonte oswaldiana de irreverência, juxtaposição e iconoclastia. As conexões entre o Tropicalismo e o Modernismo no início foram intuitivas, mas tornaram-se deliberadas via contatos entre músicos e críticos. Em artigos sobre os festivais da música popular brasileira de 1966 e 1967, depois publicados em Balanço da Bossa, Augusto de Campos primeiro usou os termos oswaldianos deglutição e macumba para turistas em discussões de novas músicas. Após ouvir “Alegria, alegria” de Caetano, Augusto o procurou para falar sobre os caminhos da música e da poesia. Na estimativa do crítico, a marcha liricamente implodida de Caetano era construida sobre a consciência verbal de um postulado crítico: liberar a MPB de um sistema de isolamento, solipsismo e preconceito nacionalista para criar condições de livre pesquisa e experimentação. Nas palavras de Augusto, tanto Caetano quanto Gilberto Gil, com “Domingo no parque” estavam a “oswaldianamente deglutir o que há de novo” na pop música international (i.e. Dylan-Beatles- o rock) e a incorporar tudo isto em novas idéias nacionais (A. Campos, 152-153). Caetano manteve contato com Augusto e os outros poetas do grupo Noigandres, que lhe apresentaram a poesia concreta, sua crítica literária, e obras das vanguardas históricas, notadamente o caso nacional de Oswald de Andrade. As posturas e conceitos que enformam a escrita de Oswald vieram a influir no desenrolar do Tropicalismo e no estilo composicional de Veloso.
Vendo as afinidades entre o que fazia Caetano e a obra de Oswald, Augusto caracteriza o disco de 1968 daquele como “oswaldiano, antropófago, desmistificador” (161). Com efeito, as canções de Caetano davam expressão a passagens chave do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”: “A invenção / a surpresa/ Uma nova perspectiva…Ver com olhos livres… A saudade dos pajés e os campos de aviação militar … A floresta e a escola.” (8-9). Especialmente pertinente aqui é a fusão de elementos primitivos da cultura nativa com outros modernos. As canções de 1968 de Caetano raramente empregam a abordagem cubista sintética do verso Pau-Brasil, antes demonstram o uso calculado de linguagem coloquial, humor, e montagem de diversas imagens e referentes culturais. O mais importante talvez seja a veia satírica do novo repertorio de Caetano, que lembra a revisão poética de Oswald da história socio-cultural do país. Cabe Augusto aludir ao “Manifesto Antropófago” porque Caetano faz uma assimilação crítica de experiências estrangeiras — música anglo-americana e fontes “não-musicais,” como a literatura — visando sua re-elaboração em circunstâncias nacionais.
Duas faixas do LP de 1968 ilustram bem a comparação feita por Augusto de Campos. Primeiro “Paisagem útil,” que abre com a frase “olhos abertos em vento,” lembrando o Oswald de “ver com olhos livres,” embora Caetano não estivesse ainda familiarizado com o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” quando compôs aquela canção. Como um todo, a letra sintetiza rápidas percepções como se fosse através do “olho-câmera”, uma típica característica pau-brasil segundo a analise de Haroldo de Campos (“Poética”, 18-19). O elemento oswaldiano nesta letra se sente também na dicotomia estructural desenvolvido / subdesenvolvido e em imagens como “frio palmeiral de cimento”, que efetua uma metamorfose de flora tropical em imagem urbana de postes da Light. A mais importante faixa do LP é a histórica “Tropicália”, alegoria da experiência cultural brasileira. Era “matriz estética do movimento” no dizer de Celso Favaretto (41) e “nossa primeira música pau-brasil”, segundo Augusto (162). A música abre com uma montagem que evoca os trópicos, seguida de uma vocalização improvisada parodiando Pero Vaz Caminha, o que lembra já a primeira secção de Pau Brasil. Um detalhe de produção demonstra o parentesco intuitivo dos músicos com Oswald. O texto histórico de descoberta não figurava na composição, mas a improvisação bem que cabia e ficou na gravação definitiva. A letra de Caetano constrói um monumento simbólico dum país contraditório, com uma série de elementos em oposição em vaivém cómico-séria. Cada refrão justapõe o arcaico e o atual num questionamento explicável em termos Pau-Brasil como “a floresta e a escola.”
O teatro daquele período também revive Oswald e tem impacto sobre a MPB. O acontecimento central de 1967 foi a encenação de O Rei da Vela. A produção marcou época e enfaticamente demonstrou a pertinência da visão de Oswald dramaturgo para aquela conjuntura. A extravagante direção de José Celso Martinez Correa acentuava a farsa do pensamento e do comportamento burguêses, extraindo os máximos efeitos do texto dramático original. A radical encenação talvez seja mais importante que o roteiro e foi uma das mais significativas manifestações extra-musicais do Tropicalismo tido como uma consciência artistica geral abrangendo o teatro e o filme. Mais tarde Zé Celso termina uma versão filmica de O Rei da Vela (cf. foto em Tropicália 20 Anos).
Pouco depois de compor “Tropicália”, que tem esse caráter oswaldiano instintivo, Caetano viu uma apresentação de O Rei da Vela. Em entrevista, ele confirmou o impacto daquela experiência em suas composições subsequentes e o quanto Oswald tinha a ver com o projeto tropicalista. As declarações a seguir marcam o momento em que o interesse em Oswald vira consciente e explícito:
Atualmente componho depois de ter visto O Rei da Vela… Acho a obra de Oswald enormemente significativa… Fico apaixonado por sentir dentro da obra de Oswald um movimento que tem a violência que eu gostaria de ter contra as coisas de estagnação, contra a seriedade… Todas aquelas idéias dele sobre poesia pau-brasil, antropofagismo realmente oferecem argumentos atualíssimos que são novos mesmo diante daquilo que se estabeleceu como novo… O Tropicalismo é um neo-antropofagismo.” (citado por A. Campos, 204-207)
Isto foi antes da institucionalização do tropicalismo com o album coletivo, ainda em 1968, Tropicália ou Panis et Circencis. Este LP conceitual serviu de manifesto e principal produto do movimento. Poucas são as referências específicas a Oswald nas 12 faixas do LP. Geléia Geral, de Gil e Torquato Neto, cita, entre muitas coisas, “a alegria é a prova dos nove” do “Manifesto Antropófago” e “Brutalidade jardim” do romance Serafim Ponte Grande, e alude ao manifesto na frase “roteiro do sexto sentido”. A música “Batmacumba”, de Gil e Caetano, chamada anti-macumba para turistas por Augusto, por sua vez, é tida por “proposta concreto-antropofágica” por quem mais profundamente estudou o movimento, Celso Favaretto (74-75). Se não na abundância das letras, a verdadeira conexão oswaldiana no LP está na inspiração dos tropicalistas, no seu espirito e objetivos.
Na análise de Antônio Risério, as táticas tropicalistas vieram dos Beatles, da Jovem Guarda, e da vanguarda concreto-electrônica. A estratégia dependia do gigante da Bossa Nova, João Gilberto, e de Oswald. Este, provocateur modernista, dava muitas lições criticas: sobre o canibalismo cultural, o potencial artístico de explorar os estratos históricos super-impostos do Brasil, linguagem experimental em perspectivas urbano-industriais, o ready-made, e a criatividade de um povo subdesenvolvido (Expresso 2222, 260-261). Sem esquecer a distância histórica que separa Oswald dos tropicalistas, nem as diferenças entres suas áreas de atuação, podemos dizer que certas bases da literatura de Oswald entram no Tropicalismo: uma posição fundamental de ruptura, um depender da paródia das instituções e das normas, a conceptualização da apropriação, e a justaposição polêmica de culturas estrangeiras e nacionais. Dentre os vários efeitos do Tropicalismo, a contribução à re-leitura da história literária. Vinícius Dantas escreve da agitação tropicalista: “tudo isso foi, aliás, a primeira e retardada aceitação da radicalidade primitivista do Modernismo, festejada então por seus impulsos de vanguarda e agressividade (não mais, como era consenso, pelo prudente reconhecimento do processo construtivo deflagrado pela Semana e que deu os melhores frutos nos anos 30)”.
Em verdadeiro estilo vanguardeiro, os líderes do Tropicalismo o declararam já defunto após terem conseguido mexer com a cabeça dos outros. Embora sem movimento, uma linha oswaldiana continua no repertório de Caetano. Do exílio em Londres escreve em uma de suas cartas: “Não quero o reino dos céus: só me interessa o que não é meu”, emprestado do “Manifesto antropófago”. Na volta, o LP super-experimental de Caetano, Araça Azul (1972), foi qualificado por um crítico de “tropicalismo revisited… homenagem implícita aos poetas concretos, Oswald e Sousândrade” (Risério, “Nome”). O projeto seguinte do compositor fez a homenagem mais explicitamente. Jóia tem um par de faixas que celebram o legado: “Escapulário”, a abertura do livro Pau-Brasil, é musicado como sambão. A canção “Jóia” se toca, se me permitirem, num tempo musical Pau-Brasil. A música ironicamente contrasta urbanismo moderno e nativismo primitivo, isto ouvindo-se nas quartas paralelas vocais que assemelham um canto indigena. A letra é uma dupla foto kodak devoradora:
Beira de mar beira de mar / beira de mar na América do Sul
um selvagem levanta o braço / abre a mão e tira um caju
um momento de grande amor de grande amor
Copacabana Copacabana / louca total e completamente louca
a menina muito contente / toca a Coca Cola na boca
um momento de puro amor de puro amor
A canção lembra Oswald na medida em que os constituentes líricos revelam parentesco específico com “Memórias Sentimentais”, de João Miramar, fragmento 66 do qual começa “beirávamos em auto pelo espelho de aluguel arborizado das avenidas marinhas”, para terminar dizendo “Copacabana era um veludo arrepiado” (42).
Vejamos ainda as circunstâncias do lançamento simultâneo de Jóia e o LP Qualquer Coisa, em 1975. Para cada um, Caetano fez um press releas e em forma de manifesto. Brincando com a expectativa da crítica que procurava a cada passo uma nova etiqueta depois do Tropicalismo, Caetano distribuiu os textos sem indicar que se tratava de pseudos-manifestos de movimentos que não existiam. As duas declarações de princípios de Oswald, naturalmente, ressoam nestes documentos-deboche de Caetano. Com seu humor, fragmentos e linguagem paradoxal, revivem o espírito do Modernismo oswaldiano no contexto da MPB anos 70. Com respeito à música dos LPs, um crítico alude a uma fonte evidente: “Nestes dois lançamentos, Caetano volta a ser um anti-estilista, antroPOPfágico, devorando tudo/todos…” (Varela).
O repertório de Caetano de meados da década é, de certo modo, uma extensão do Tropicalismo, cujo impacto maior se fez sentir antes de 1970. Quanto à história cultural, o movimento foi extremamente importante para a apreciação do Modernismo pela geração jovem e para estabelecer vínculos entre MPB e literatura. Reconhecendo isto numa retrospectiva da poesia, o poeta carioca Armando Freitas Filho traça paralelos oswaldianos:
Também em 1968 explodia na Música Popular Brasileira o movimento tropicalista, que iria representar para as vanguardas o que o movimento antropofágico representou para o Modernismo de 22. A contra-revolução do Tropicalismo procurava, no caos, trazer a arte brasileira para o seu chão, tal como pretendeu, anos antes, Oswald de Andrade. Tínhamos, então, toda uma geração voltada para a lição oswaldiana da retomada das “raízes”, com a diferença, entretanto, de que os produtos não eram especificamente literários, mas interdisciplinados, um pau-brasil eletrificado, ligado na tomada dos amplificadores, um cafarnaúm onde o poema se fazia não apenas na página, mas no papel da voz, no palco, sob o som estridente das guitarras. (89-90)
Operando na área da cultura de massa, mas num novo nível de sofisticação, os tropicalistas praticaram uma inesperada modernidade e influenciaram poetas jovens orientados para a música. Uma observadora atenta da poesia dos 70 no Rio diz que muitos admiraram Caetano, “através de quem se lê Oswald e os concretos”, e que “a música levou à poesia; não foi ao contrário” (Holanda). Na poesia de livro que emerge na esteira do Tropicalismo, durante a re-avaliação critica de Oswald, a estética dele derivado constitui presença marcante. Os comentaristas da produção lírica invocam com notável freqüência o nome de Oswald e suas metáforas, que aparecem em análises especificas de poetas e de poemas. Armando Freitas Filho, por exemplo, fala da importância do Bandeira coloquial e de outros poetas modernistas no verso da virada da década, mas Oswald é favorecido; o poeta-crítico acha que o eixo Cabral/Drummond, dominante nos 60, começa a mudar com a reedição de Poesias reunidas de Oswald de Andrade em 1966, quando “a virada para retomar a lição de 22 por um outro ângulo foi deflagrada. A ‘escrita’ começa a incorporar e tender mais para o take, ‘corte’ e montagem cinematográficos, estilisticamente falando, do que para a abordagem discursiva, linear e paulatina do literário. O poema-minuto, o poema-piada, relegados ao esquecimento, muito por culpa da geração de 45, que tentou engravatar a irreverência de 22 e que . . . a poesia concreta apertou o nó, com a sua ortodoxia formal, começam de novo a entrar em foco e em cena” (98). Isto dito, deve se lembrar que, enquanto o concretismo desencorajava a poesia discursiva, o grupo Noigandres desempenhou, com os esforços críticos e editoriais, importante papel no crescimento do interesse em Oswald.
A subjetividade da nova lírica dos anos 70 relacionável com Oswald já foi associada ao objectivismo e redução verbal próprios das vanguardas, dominadas pela poesia concreta. Por sua parte, Silviano Santiago colocou a seguinte hipótese para examinar este relacionamento de desenvolvimento: “Para determinar a situação atual da poesia jovem no Brasil, é preciso caracterizar primeiro como se deu a passagem de um domínio das vanguardas (Concreto, Práxis, Processo etc.) para a abertura dada por Oswald de Andrade” (“Assassinato”, 179). Para compreender os textos de meados de 70 teria que caracterizar “o deslocamento e a reviravolta geral que se operam na concepção que se tinha do poema (do discurso, ou do não-discurso poético)” (“Assassinato,” 180). Esta poesia nova dava valor às experiências da vida real e se destinava a um leitor mais comum. O livro típico do período conteria poemas curtos, epigramáticos, irônicos, atitudes coloquiais, e um fraseado combinatório que lembra os fragmentos de Oswald. Nesta discussão, Silviano distingue os poetas “marginais” daqueles que repudiam a sintaxe não-linear e se preocupam com a mise-en-page, que veremos mais adiante. Numa discussão relativa à prosa experimental, o crítico se vale de comparações entre Oswald e Mário de Andrade para caracterizar as práticas anti-normativas de autores como o jovem Waly Salomão. A prosa dele se centra na linguagem e tem um viés teórico em favor do “arrojo cubo-futurista de Oswald de Andrade”, distante do interesse de Mário em “uma possível gramatiquinha do falar brasileiro”. Vê-se, enfim, a obra genericamente-ambivalente de Waly na linha das Memórias sentimentais de João Miramar (“Abutres” 131).
A poesia de Francisco Alvim é sintomática da transição dos 60 para 70, pois exibe certos traços neo-oswaldianos num estilo misto. O falecido Merquior percebeu uma maneira de representação peculiar em um poema central: “Paralaxe é um poema em planos múltiplos, onde o tom confessional mais vincado convive com alusões magi-cósmicas ‘antropofágicas’ e com flashes ‘objetivos’ diretamente importados do capitoso capítulo vícios e costumes do Brasil” (77). Nos textos de Alvim e os doutros poetas jovens ditos “marginais” dos 70, ritmos vários veiculam uma linguagem geralmente irreverente, “que passa por Gregório de Matos, Oswald de Andrade, tropicalismo, kitsch, contracultura etc.”, nas palavras de Heloisa Buarque de Holanda e Antônio Carlos de Brito, o Cacaso (82). Os poemas deste marcam as preferências de uma geração. O seu livro A palavra cerzida (1967) “é declaradamente tributária…do Modernismo” conforme Merquior, e o Grupo Escolar (1974) “[é um] livro em que o título parece ser uma homenagem ao Primeiro caderno de aluno de poesia na opinião de Freitas Filho. Este tipo de observação crítica da produção recente recorre constantemente nos últimos vinte anos e é testemunho dos interesses de escritores e dos modelos que respeitam.
Um dos aspectos que marcam a “poesia marginal” é a imediatez de sua subjectividade, incluindo as reações a conjuntura histórica. Aqui também pode detectar-se uma conexão oswaldiana. A sombra da ditadura define o início da década de 70. Era então que o Modernismo ganhava, conforme Vinícius Dantas, uma dimensão mais popular e menos literária, “a partir do cinqüentenário da Semana de Arte Moderna, festivamente comemorado pela ditadura militar”. O nome de Oswald irradiava uma aura de inconformismo que funcionava como antídota contra a censura, a cultura oficial e a falta de perspectivas políticas e culturais. Além disto tudo, Oswald “[t]inha a vantagem de ser o tótem vanguardista oficial e oficiante” (47). Benedito Nunes também ligou tons poéticos e opções estilísticas de poetas como Alvim e Cacaso à atmosfera dos anos negros: “Assim aparece a invariante acre do exílio interno duma geração marcada pelo sofrimento, que se daria totalmente ao subjetivismo romântico se não tivesse aprendido de novo, revalorizando Oswald de Andrade, as dissonâncias e o humor.” (74).
Ao humor dissonante se deve, certamente, parte da agressão anti-autoritária de Papo de índio, de Chacal (20):
Veiu uns ómi de saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui eles disserum qui chamava açúcri.
aí eles falarum e nós fechamu a cara.
depois eles arrepetirum e nós fechamu o corpo.
aí eles insistirum e nós comemu eles.
A inspiração oswaldiana aqui é patente e leva naturalmente a esta interpretação de Cacaso: “o civilizado e colonizador é tematizado pela linguagem de quem o devorou, e que encarna, em ato, o modo de falar e de ver do primitivo, configurando um ritual completo de antropofagia” (Brito 42).
Este poema é, a meu ver, único na produção do tipicamente auto-produzido “marginal” Chacal, quem apareceu originalmente na Navilouca, publicação pos-concretista de caráter intersemiótico. A novidade deste poema de Chacal leva à necessidade de criticar a “poesia marginal” segundo sua digestão do Modernismo agressivo. Os próprios parámetros oswaldianos usados para qualificar a textualidade marginal podem usar-se para sugerir suas limitações. Um poeta contemporáneo mais severo diz assim: “… POESIA MARGINAL, estabelece como paradigma do fazer poetico, o fácil, o diluído, que lê de forma reduzida e facilitada a obra de Oswald de Andrade… Marginal não existe enquanto movimento de ruptura, armação de novos modelos de sensibilidade”. Metaforicamente falando este verso jovem se torna “uma antropofagia banguela” (Bonvicino,”Marginalidade”).
Há de se perguntar: de que maneira faltava a alguns jovens poetas dos 70 uma dentição mais incisiva? Como é que deram a Oswald uma leitura incompleta ou transferiram parcialmente sua visão? Uma metáfora fotográfica descritiva empregada por Freitas Filho sugere parte da resposta: Ele diz: “A poesia brasileira que no Modernismo apelou para a Kodak para descobrir os instantâneos da vida, hoje realiza o poema-polaróide, de revelação instantânea e ‘elabora’ um estilo e uma estética do inacabado, do ‘surpreeendido’ pelo acaso da interferência do poeta” (113). Seguindo isto, se poderia dizer que a fascinação com o flash e momentos potencialmente reveladores talvez impliquem a falta de tempo para revelar a imagem ou para distinguir o ready-made de impacto do meramente circunstancial. Os poetas “marginais” talvez confundam a informalidade com a estilização e a experiência vital com material literariamente aproveitável. Assim, a organizadora de uma conhecida coleção de verso 70 repensa, via um autor específico, um fator chave:
… quando me referi na introdução à antologia 26 Poetas, hoje há uma retomada do coloquial de 22, acredito que não havia entendido então o que significava, em seus aspectos fundamentais, esse binômio arte/vida. Para Oswald de Andrade, a interferência do coloquial no literário era, sem dúvida, um procedimento ainda, e por excelência, literário. Para [o poeta marginal] Charles, é a poetização de uma vivência, é a poetização da experiência do cotidiano…” (Holanda, Impressões 101).
Os elementos empíricos, coloquiais e do ready-made entraram no mundo poético de Oswald através de um processo de seleção e de naturalização interna, isto é justificado pela natureza da obra. As dúvidas acerca da lírica “marginal”, evidentemente, derivam de uma percepção do colapso deste processo seletivo e um consequente depender da naturalização externa, isto é, do mundo real e não do fictício próprio da literatura.
Vinícius Dantas elabora as diferenças entre o Oswald-fonte e o Chacal como representante da sensibilidade “marginal” que se apoia naquele mestre. A desinibição de Chacal resultaria de uma aplicação ingênua da Poesia Pau-Brasil à experiência própria: “o poema-minuto foi interiorizado como subjetividade”. No jovem, técnicas axiais cubistas da poesia de Oswald, como a observação metonímica e a montagem, se naturalizam mundanamente, num sentido literal. Assim, não mais constituem processos estilísticos de estranhamento, como nos anos 20, mas componentes de espontaneidade do poeta. Tal naturalização do quotidiano, com seu sabor populista, tem a grave disvantagem de expelir o elemento utópico do construtivismo de Oswald. A beleza da poesia primitiva de Oswald está no fato de ele ter colocado o processo– as técnicas de fazer e construir — acima de fazer observações sobre o mundo real. Além disso, o fazia em um mundo não-familiarizado com essas mesmas técnicas e a modernidade delas parece, então, excêntrica. O artifício da Poesia Pau-Brasil permitia a apresentação do encanto arcaico dum Brasil pitoresco para idealizar uma modernidade virtual e lúdica. Esta modernidade, nascida do choque e do contraste, revelava uma mitopoética e a projetava virtual e utópica. O Brasil, para usar o termo russo-formalista, era “estranhado”, e Oswald achava traços modernos melhores que os da metrópole. Sua famosa “contribuição milionária de todos os erros” não era impecilho mas “um desejo desrepressor, um programa de vida e beleza, um ideal positivo” (47-48). Essa visão de Dantas pode ser até um pouco generosa para com Oswald, mas certamente faz pensar na validade dos paralelos de hoje.
Com este pano de fundo, pode alegar-se que Chacal e contemporâneos não revelam o mundo com a técnica. Se há fragmentos ou frases truncadas, ou a montagem se usa, o motivo é mimético; é porque o mundo é assim. Os poetas “marginais” não têm um ideal comparável ao de Oswald; eles se deram “à materialidade do dado vivido ou registrado” (Dantas 48). Em vez de filtrar fenômenos ou de refletir intelectual ou ideologicamente, Chacal e companhia vão à fala, às atitudes, às coisas que estão aí. Finalmente, o discurso “marginal”, com sua ênfase na linguagem reles em circunstâncias individuais, não compartilha uma das chaves da poética de Oswald: a criação dum sistema de tomadas breves, flashes, citações etc. organizado em seqüências. O circuito integrado dos manifestos e da Poesia Pau-Brasil — sejam históricas, geográficas ou de desenvolvimento — levam muito mais corrente elétrica que o montante de passagens isoladas e de poemas. Nos termos mais fundamentais, em Oswald há uma estrutura maior, nos marginais não.
O outro polo da nova poesia brasileira 70/80 é a produção pos-concretista de versejadores mais “construtivistas” e dos que fazem a chamada poesia visual. Uma vez que certas atitudes meio “anárquicas” enformam algo desta produção, as distinções entre ela e o “marginal” nem sempre são perfeitamente claras. Até no volume IV da história da literatura brasileira, um conhecido historiador se confunde ao escrever: “A década de 70 assinala, no domínio da poesia, a reposição, na esteira do pós-tropicalismo, do clima antropofágico de Oswald de Andrade, cuja ação como precursor das vanguardas, vinha sendo alardeada pelos concretistas” (Moisés 529). Este autor menciona o “marginal”, a atmosfera de 22 e o coloquialismo, mas cita como publicações exemplares Navilouca, Código, Muda, e Qorpo Extranho, que não integram o rol da bibliografia do verso subjetivo criticado acima, mas da “criação inter-semiótica”, que frequentemente inclui a produção tardia dos poetas concretos. Sejam quais forem as imprecisões do enfoque histórico recente, um clima sintomaticamente oswaldiano tem de fato existido.
Em publicações coletivas dos 70 e 80 no Brasil inteiro, o legado de Oswald se celebra em artes gráficas e textos vários. Há numerosos exemplos na galeria. Os primeiros dois números de Artéria (São Paulo), por exemplo, têm peças notavelmente oswaldianas. No primeiro, aparece de Gabriel Emídio Silva “amor/humor: o máximo do mínimo”, crítica criativa de quatro páginas, com evidentes dívidas com Haroldo de Campos, do poema mais curto de Oswald. O segundo, que vinha numa sacola de plástico, incluia “d”, um curioso convite de Pedro Tavares da Lima e Régis Bonvicino. De maneira parecida, Através #1 traz um desenho de Edgar Braga, com o título “Sob as ordens de mamãe ou Miramar Miramãe”, sendo a primeira frase sub-título das memórias de Oswald. Noutro caso, tanto a poesia concreta como os manifestos de Oswald foram inteligentemente parodiados por Glauco Mattoso nos seus “periódicos poéticos” caseiros revista de domingo e jornal dobrábil, que Augusto de Campos caracterizou como “herdeira da Revista de Antropofagia”. O melhor dos pastiches e plágios-brincadeira de Glauco Mattoso tornou-se antologia. A importância da informação de vanguarda neste jornalismo lúdico-lírico se faz evidente na capa, para a qual foi apropriado um desenho de Oswald pelo argentino Hermenegildo Sábat, originalmente feito para o jornal Opinião (1981).
Fora de São Paulo, nas páginas de publicações efêmeras e mais regulares há bastante oswaldiana digna de atenção. Do Rio, Gandaia #7 (1981) mostra um texto-manifesto e uma imagem “iluminadores” em “Postes da Light”, rúbrica tirada da Poesia Pau Brasil. O precário paranga de Salvador pega emprestado um desenho de Pagu, o qual integra uma seqüência cartunística autobiográfica, e acrescenta palavras referentes ao relacionamento com Tarsila, pressupondo certa familiaridade com a biografia de Oswald. Código — a mais importante de todas as publicações de criação intersemiotica — já tinha publicado anteriormente a seqüência completa descoberta por Augusto de Campos. Em 1981, Código lança uma outra seqüência, desta vez um portfolio de dezessete folhas de desenho com texto; trata-se do para-espírita “oswald psicografado por Décio Pignatari”.
Em Brasília, Bric a brac #2 (1986) visa a levantar um espírito modernista com a carioca subterrânea Maira Parulla e seu “primeiro caderno da alumna de poesia”, páginas com ecos de Trotsky, Pagu e o parceiro dela dos anos 30. Em representações gráficas, um excelente exemplo de deglutição recente é o sul-sol-sal “totem américa / via oswald”, de Alonso Alvarez, da Primeira Mostra de Poesia Visual de São Paulo (1988), publicada pela Livraria Arte Pau-Brasil. A existência desta série seleta confirma o lugar canônico de Oswald, demonstrando seu impacto na criatividade numa esfera específica.
Muitas publicações individuais também ilustram a vitalidade do legado Oswald. Ele é um dos principais referentes do teatro experimental do paulistano José Roberto Aguilar, cujos textos se reunem em A Divina Comédia Brasileira. Não se trata propriamente de poesia, mas a “ópera conceitual” intitulada “O circo antropofágico” invoca abertamente o paradigma modernista. Por sua vez, o “Artaud no Brasil,” super intertextual, chega a seu clímax pouco convencional com a chegada de Oswald. Aludindo às ilustrações dos seus livros de poemas, um desenho abstrato dele é colocado acima de rabiscos do jovem autor e do personagem crítico de teatro. Semelhante é o que faz o poeta Luis Turiba, que constrói um poema-piada de sete partes chamado “Clube do ócio” baseado no lema de Macunaíma, “Ai! que preguiça”, e em quatro excertos do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”. Estilemas seletos de Régis Bonvicino exibem uma dívida maior para com o modelo oswaldiano. No texto de um poema de 1983, Regis interpreta um momento do “Manifesto Antropófago” à procura de um insight contemporâneo:
oswald de andrade
sugere
no manifesto antropofágico
(ó lua nova)
a idéia
de um mundo não datado
minuto mútuo
tempo composto
gema gêmea
de um outro
Num poema contíguo, o jeito anedótico e o nativismo evolucionário de Pau-Brasil se adotam num texto que o autor chama de palinódia (mea culpa):
vingança de português
o português plantou
um pé de ipê
na calçada do prédio
no dia seguinte
os transeúntes desfolharam o ipê
indignado
o português não teve dúvida
— é coisa de índio!
Realça-se o caráter intencional desses dois poemas ao serem colocados face a face no livro Sósia da cópia. A homenagem a Oswald está tanto no repensar uma idéia do manifesto quanto na estilização de um incidente lírico. No livro subsequente Más companhias, Bonvicino inclui uma seqüência de breves poemas inspirados em Pau- Brasil e sua observação irônica da terra nativa. Um exemplo é “brasil”, que reza — “o sol de cima é o dinheiro / do sul” — que tem uma clara alusão ao poema de Oswald, “Hip Hip Hoover” (“América do sul/ sol/ sal…”), e assim relaciona o tema do imperialismo às estruturas nacionais internas. Também pertinente é o poema-minuto “políticos”: “usam terno e gravata / no corpo/ e na língua”. Este tríptico foi na verdade inspirado pela tradução de Augusto de Campos de um poema cáustico de e.e. cummings, mas lembra Oswald na fragmentação do discurso da descoberta. Um terceiro exemplo é “de manhã”: “entre dois edifícios / da avenida paulista// um fio de sol/ dissolve o frio”. Esta é uma micro-realização de uma geometria urbana da imagética, no plano do “turISMO e lirismo visual” que Jorge Schwartz (168 ss.) estudou em Oswald e no argentino Girondo.
Os textos do recém-revelado poeta Horácio Costa podem ser comparados aos de Oswald pela sequencialidade, pela ambigüidade de género e pela aguda consciência nacional-cosmopolita. O livro dos fracta foi citado por um Severo Sarduy entusiasta mesmo antes de sua publicação. A coleção é composta de 54 poemas carnavalescos de tres versos. Densos poemas que operam em vários níveis, exibindo múltiplas linguas, extenso diálogo com a literatura mundial e brasileira, e paradigmas de viagem que ecoam Miramar. No Fracta LII, “Negra Mina”, vem à tona o elemento oswaldiano na fórmula original de Horacio Costa:
Da história saem: carvão e qualquer história. Abelha e aranha se conciliam na ulha. Zumbem, tecem, anti-metódicas. Click! ‘Metáfora lancinante’, pensou o egionário. A mulata desfilava fantasiada de galáxia. Mutcho cósmica darling. (66).
São do mesmo Horácio Costa, the very short stories, micro-narrativas poéticas. O número XIII integra um diário de viagem intertextual cujo título, “El Durazno”, remete ao Serafim e seu veículo utópico. As últimas linhas são enfáticas; saúdam Oswald e sua visão de espírito aberto e implicam a relevância atual e futura dos modelos anti-normativos e festivos: “Todos os mundos foram descobertos por um esforço coletivo. Esta bacanal a bordo não pode terminar. Não, nunca” (27).
Com esta evidência, deixamos a poesia para voltar à música. A confirmação de Oswald tem sido mais constante na area literária, mas os ecos de seu Modernismo ainda chegam à música popular depois dos usos pós-tropicalistas de Caetano. Marcus Vinícius é dos poetas-compositores dos anos 70 que demonstraram verve literária (ver Perrone 119-146). A variada inter-textualidade deste artista abrange interessantes momentos oswaldianos. Em “Trem dos condenados”, o compositor inclui numa letra feita de alusões à linha “lá fora o luar continua”, do primeiro poema da seção “São Martinho”, da Poesia Pau Brasil (98). E a canção “Falido Transatlântico” (1980) se baseia em uma linha da última cena de O Rei da Vela: “Milhões de falidos transatlânticos!” (120). Dentre as mais recentes instâncias notáveis do som “antroPOPfágico” há “Talismã”, tema-título de um LP de Bethânia, com música do Caetano e letra de Waly Salomão. No texto fala um “eu poético” meio literário, que começa: “minha boca saliva porque tenho fome/ e essa fome é uma gula voraz/ que me traz cativo/ atrás do genuíno grão de alegria/ que destrói o tédio.” As últimas duas linhas aludem aos poetas concretos do grupo Noigandres. Mais pertinentemente, a metáfora inicial de fome representa um apetite lírico reminiscente da deglutição oswaldiana. É com estas alusões literárias que a canção constrói sua postura de curiosidade e o desejo de renovação. Outra referência musical a Oswald é a leve composição “Pau Brasil”, de Francis Hime e Geraldo Carneiro. Um ato de dentição praticado por um nativo, seguida de uma frase repetida, sugere o primitivismo de Oswald em liga com Gertrude Stein:
Era uma vez / Uma floresta / Cheia de festa / E balangandã / Na noite fresca / Carnavalesca… Um belo dia / Uma menina / Achou no mato / Uma maçã / Olhou a fruta / Meio de banda / Como se fosse / Coisa malsã / Deu uma dentada / Meteu o dente / e de repente / Tchanchanchanchan / Ouviu na mata /A voz possante / E extravagante / Do Deus Tupã / Que então lhe disse / Mas que tolice / Minha menina / Minha cunha / Uma maçã / É uma maçã / É uma maçã / É uma maçã. . .
Finalmente, há um exemplo oswaldiano até na música da geração rock; é a musicalização de Cazuza da “Balada do Esplanada”. O que ele faz com o poema de Oswald lembra, em certa medida, a nossa leitura dos poetas “marginais”. A gravação é um blues acústico simples. Ela pode ser apreciada por seus próprios méritos, mas não convida uma interpretação como exemplo de antropofagia musical. Versos são cortados do poema original e re-estruturados no molde de uma letra pop convencional com pouca atenção aos aspectos lingüisticos em si. Claro, a canção saúda a memória de Oswald, mas a versão de Cazuza chega a desativar um aspecto central e musicalmente pertinente. A simplicidade do poema de Oswald engana. Haroldo de Campos já notou que ele constitui “uma paródia às baladas tradicionais, a arte dos menestréis. Oswald de Andrade enfatiza-a exigindo que certas palavras sejam pronunciadas à maneira lusitana”. Uma audição cuidadosa não revela intenção paródica por parte de Cazuza. Em vez de cantar “P’ra m’inspirar” do original, ele canta “pra respirar”. Elimina outras vogais fracas e linhas inteiras do original, a saber: “Eu qu’ria / Poder / Encher / Este papel / De versos lindos / É tão distinto ser menestrel / No futuro / As gerações / Que passariam / Diriam / É o hotel / Do menestrel”. A canção pode ser bem sucedida em outros níveis, mas do ponto de vista músico-literária, pode se dizer que o gesto de Cazuza não produz novos efeitos estéticos notáveis. Esta utilização de informação musical do estrangeiro e literária nacional é isolada e mimética; não chega a ser como o estranhamento bem digesto característico do Tropicalismo.
Não admira que seja precisamente com Caetano Veloso que chegamos a fechar o presente balanço da presença de Oswald na atualidade lírica. O show e album de 1989 de Caetano se chama Estrangeiro. Tanto o espetáculo quanto o LP usam como suporte visual primário o cenário pintado por Hélio Eichbauer para a encenação em 1967 de O Rei da Vela. Trata-se de uma vista multi-cromática da Baía da Guanabara. Como em “Febril”, de Gilberto Gil, de 1985 – onde a voz lírica se imagina como “mil troncos de árvores velhas… de pau brasil”, a nova canção de Caetano e sua escolha cênica, sem intenção explícita, remetem à carnavalização do teatro dos anos 60, à música do Tropicalismo e aos encontros artísticos com Oswald de Andrade mais significantes dos últimos 25 anos. Encontros que, por sua vez, ocasionaram novas missões e lições líricas. Caetano e seu projeto tropicalista ainda são os melhores termos contemporâneos de comparação com o que representou o modernista Oswald de Andrade. O alinhamento inicial de Caetano foi intuitivo, como Augusto de Campos viu, e a associação subsequente foi apropriadamente “digestiva,” um processo de absorção e reflexão de parte dum artista que compreendeu as lições de Oswald e outros inventores.
Certos momentos da recente poesia revelam uma dose sadia de Oswald, em termos de apreciação e adaptação. Outras instâncias, talvez mais numerosas, sugerem que sua radicalidade modernista não é tão facilmente absorvível ou transferivel a estas décadas posteriores, que algumas pessoas chamariam de pós-modernas. Oswald manifestou intuição infantil; alguns que partiram daí parecem incorporar o infantil sem ter o dom da intuição ou conseguir a difícil mistura dos dois. Oswald agiu a favor do vernáculo em relação às antiquadas normas literárias e socio-culturais. Armou um esquema novo de paginação e sátira. Posturas coloquiais, lacônicas ou irônicas na poesia recente podem endossar aspectos de sua producão. Mas faltou em tantos casos sequenciar ou aplicar artifício de maneira comparável. A complexidade da simplicidade de Oswald se destaca frente à muita lírica recente que parece adotá-lo como modelo. Oswald de Andrade, mais do que qualquer outro poeta modernista brasileiro, tem que ser lido via seus recursos, especialmente a seqüência histórico-geográfica. Nossa apreciação de artistas da palavra recentes que buscam em Oswald alguma coisa pode ser afetada pelo grau de compreensão deles da distinção de Oswald. Os pontos de comparação qualitativos, estruturais e conceituais entre a poesia dos anos 60 a 80 e o lirismo Poesia Pau-Brasil / Antropofagia serão, no fim das contas, mutuamente esclarecedores. Seja qual for a medida, a lírica recente afirma enfaticamente o lugar especial reservado para Oswald de Andrade na literatura brasileira.
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