Leituras complementares
um caso: a poesia concreta
Um Caso: A Poesia Concreta
Gonzalo Aguiar
Extraído de, Edusp, 2005
O movimento da poesia concreta surgiu na cidade de São Paulo, em meados da década de 1950 (seus primeiros manifestos datam de novembro de 1956). Em seu programa, os concretistas sustentaram os postulados modernistas durante mais de uma década, até que o ciclo modernista se encerrou – e com ele as práticas de vanguarda – no final dos anos 1960. As experimentações com a forma artística; tal como as vanguardas a conceberam, foram restringindo-se cada vez mais, à medida que essas renovações formais eram velozmente apropriadas pelos meios de comunicação de massa (embora o fossem com um nível de densidade mais baixo) e que as possibilidades de uma transformação social integral ou revolucionária se encerravam. No Brasil, isso ocorreu aproximadamente no final de 1969, quando o regime militar instituiu os atos repressivos que frustraram toda possibilidade de mudança. Isso explica a afirmação de Andreas Huyssen de que o concretismo foi o último movimento modernista, embora o diga – presumivelmente – referindo-se ao movimento alemão.
Entretanto, o fato de que o concretismo poético tenha-se desenvolvido na Alemanha e no Brasil e de que, em ambos os casos, caiba a denominação de “último” movimento de vanguarda, não deve ocultar ou suprimir a inflexão latino-americana do grupo brasileiro e sua inserção em uma tendência modernista mundial que – sem deixar de corresponder às características transnacionais do período – teve uma fisionomia própria.
No caso específico da poesia concreta, sua aparição no cenário cultural brasileiro foi independente de seu surgimento na Alemanha, e isso se explica tanto pelo alto grau de organicidade que a perspectiva modernista havia adquirido no Brasil como pelo fortalecimento – em termos institucionais, mas também de elaborações discursivas – dos critérios de homogeneidade, evolução e autonomia. O elemento vanguardista, nesse caso, reside no fato de que o movimento de poesia concreta levou aos extremos esses critérios e conduziu-os a uma posição diferenciada (de deslocamento e não-conciliatória) dentro do âmbito da modernização brasileira de meados do século XX. A evolução realizou-se na constituição de um repertório construído de acordo com o postulado da crise terminal do verso, que ocorreu – segundo os manifestos – em 1897, com Un Coup de Dés, e que se acentuou com as vanguardas históricas e as operações literárias de James Joyce, e. e. cummings e Ezra Pound. O encerramento desse ciclo exigia umahomogeneidade dos materiais (segundo um ponto de vista temporal) e estabelecia uma interdição que fazia com que todo retorno ao verso fosse visto como regressivo. Para explicar esse desdobramento histórico, é necessário considerar o conceito de forma como um processo de experimentação, desgaste e renovação que os concretos interpretaram como um processo autônomo e próprio da dinâmica do material (daí o sintagma, nas palavras de Haroldo de Campos, da “crítica impessoal de formas”).
Selecionar e impor uma forma como campo de ação significa outorgar-lhe uma autonomia relativa. O radicalismo da intervenção concreta, nesse caso, consiste em postular como traços dessa autonomia aqueles que não são tradicionalmente considerados como tais (o verso, por exemplo, foi sempre um traço distintivo que permitia reconhecer de imediato um texto poético). Mas ir contra essa aparência estéticatradicional é algo que não pode ser lido como um ataque à aparência estética em si. De fato, os poetas concretos expuseram seus poemas em museus e em galerias e sua estratégia foi oposta à dos dadaístas: o que eles fizeram foi dar aparência estética a objetos que tradicionalmente não a têm. Os poetas concretos mostraram a reificação do verso, mas o fizeram com o fim de encontrar instâncias imanentes mais inovadoras e reveladoras da forma poética e mais afins às transformações tecnológicas, urbanas e sociais. O distanciamento e a atitude deliberada do criador, que exigem esses três critérios, situa os poetas concretos na tendência construtiva das vanguardas que teve, depois de sua atuação nas primeiras décadas do século xx, uma segunda eclosão nos anos 1950.
Evolução homogênea da forma: nessa linha podem ser lidas a dinâmica e as limitações do programa concreto. Quando a vinculam a uma mudança social inevitável, a evolução perde seu caráter dinâmico para se converter em uma essencialização do progresso. Esse tema, que percorre várias vezes os escritos do grupo, configura a tensão central de toda prática de vanguarda. Sua abertura ao momento e à contingência convivia dificilmente com uma proposta de uma teoria essencialista do progresso, que geralmente se protegia sob a noção do novo. Na oscilação entre uma teoria essencialista do progresso (articulada em torno do novo) e uma concepção estratégica, localista e contingente do elemento artístico (que atua por não-conciliação), a prática vanguardista construiu seu espaço possível. Ela mesma se internou no cárcere do agora, para poder vislumbrar – ainda que só por um instante – o movimento de sua emancipação.