Eubioticamente atraídos
a trama da terra que treme
Verbo tropicalista
A trama da terra que treme
O sentido de vanguarda do grupo baiano
Hélio Oiticica
Correio da Manhã, setembro de 1968
Outro dia dizia eu a um amigo: há no ar, respira-se a repressão cultural neste país: quem pretender criar uma cultura de exportação no dizer de Haroldo de Campos, única maneira de engolir, deglutir o que nos é bombardeado de fora e devolver em criação válida como coisas nossas, neutralizando assim o colonialismo cultural a que nos querem permanentemente submeter, está fadado a ser negado, seja pela indiferença, seja pela sabotagem mais suja, seja pela reação violenta, vestida esta de direita, a la Corção, ou de certo tipo de esquerda (ortodoxa ou equivocada?), que se acaba identificando também com essa direita em determinado tipo de ação, principalmente na cultural. Verifiquei isto bem claro durante os debates promovidos recentemente no MAM no Rio, e, em que pensei ingenuamente haver um paralelo com um pensamento que chamarei de vanguarda, não o havia. Por quê? Se querem, ou dizem querer reformar estruturalmente o Brasil etc. E esta repressão verifica-se não só em posições extremadas, como as que citei acima, mas nas liberais, nas indecisas, nas que flutuam simpaticamente nas várias camadas sociais, nos que “aceitam as inovações seriamente”. E parece que o argumento da “seriedade”, “loucura” etc. é a arma mais doce com que se defendem, apelando inclusive para a desmoralização individual, pelo disse-me-disse, visando roer por baixo a integridade de quem realmente quer “vira a mesa”. Quero chamar de um pensamento de vanguarda, não o que busca a inovação pela inovação, na gratuidade criativa, na redundância do artista sobre si mesmo, mas no que procura realmente virar a mesa com o que nela está posto, e aqui, já se vê , terá que se dar de modo violento, pela condição tão intelectualmente pobre em que nos encontramos, pela indiferença geral, pelo conformismo intelectual, pela gratuidade nas posições, pela conhecida falta de caráter dominante da nossa estrutura social. A repressão é irrespirável, a debilmentalidade generalizada. E não é de hoje: as etapas vencidas foram a grossas marteladas, cujo eco parece querer perder-se no nada: o caso Oswald de Andrade já é superconhecido para que se o cite aqui: desde o começo do Concretismo e Neoconcretismo, todas as tentativas realmente renovadoras no sentido total parecem sofrer a mesma repressão generalizada: uns pulam fora, outros submetem-se a toda espécie de sabotagem, de indiferença por aqui: mais tarde o que foi feito “antes” é invocado como uma qualidade perdida contra o que é proposto no momento, e assim por diante. Realmente a partir desses movimentos, Concretismo e Neoconcretismo, não “ismos“ limitados no espaço e no tempo, mas verdadeiras fontes de um novo modo de “ver” e “sentir” entre nós, é que as coisas foram retomadas em larga escala. Não vou traçar esse desenvolvimento, mas quero assinalar que a “posta em cheque” permanente a que se propuseram, do visual, da linguagem, a criação de novas estruturas, proporcionaram o terreno para uma posição crítica realmente universal, profundamente revolucionária, ao campo das artes, do conhecimento, do comportamento. Hoje podemos dizer que essa questão de “cultura de exportação” (H. Campos) é uma realidade e é revolucionária, talvez a mais de todas: é a consciência de que a cultura e seus produtos, por um método crítico-criativo poderá desmistificar toda tentativa de colonialismo cultural universalista, inegavelmente um instrumento de repressão: no mundo de hoje isto é estruturalmente impossível: não há necessidade da antropofagia e o tal ato de “virar a mesa” nada mais é do que a própria criação, por impulso, isolados ou em grupo, dessa cultura.
Na música popular essa consciência ganhou hoje corpo, o que antes parecia privilégio de artistas plásticos e poetas, de cineastas e teatrólogos, tomou corpo de modo firme no campo da música popular com o grupo baiano de Caetano e Gil, Torquato e Capinam, Tom Zé, que se aliaram a Rogério Duprat, músico ligado ao grupo concreto de São Paulo, e ao conjunto Os Mutantes, e hoje assume uma dramaticidade incrível a luta desses artistas contra a repressão geral brasileira, tão conhecida minha há dez anos (repressão não só da censura ditatorial, mas também da inteligentzia bordejante). Aqui tudo se torna mais dramático, pois está diretamente ligado ao consumo de massa ou à “cultura de massa” etc., e sujeito portanto a maior repressão. Muito já se têm escrito sobre eles (refiro-me especialmente aos trabalhos de Augusto de Campos, os mais densos, onde procura ele a linha evolutiva do grupo). Venho aqui falar no assunto para procurar aclarar certos pontos, no que me toca de perto, tentando estabelecer certas conexões do grupo com problemas universais na arte de vanguarda. É preciso antes de mais nada colocar os pontos claramente, neutralizando a mistificação com que os “do contra” tentam envolver o trabalho deles. Mas este trabalho está mesmo sujeito ao permanente bombardeio, que agora parece ter chegado a um clímax repressivo nunca visto.
Desde o massacre de Roda Viva, num teatro em São Paulo, tudo vem num crescendo impressionante, e culminou com uma das maiores infâmias a que presenciei: a vaia, o ataque brutal, mesmo físico, profundamente reacionário a Caetano e sua música, a Gil, aos Mutantes. Esse ataque não atinge só a eles, mas a todos nós que criamos: é a reação contra o que representa num contexto maior “virar a mesa”, contra o que procura levantar a pele, arrancando-a posteriormente, da velha estrutura a que Oswald de Andrade denunciara, mas que ao contrário do que se poderia supor, tomou um aspecto, desenvolveu-se e explode de modo terrível diante do que lhes procura alterar: eram personagens andradianos, sem dúvida alguma, os que ali se encontravam: estudantes sim, mas reacionários apesar de aclamarem Guevara (o símbolo de Guevara parece ter sido absorvido pela classe dominante e passa a ser também instrumento deles, numa forma qualquer de liberalismo), apesar de serem de “esquerda” – dizer que são revolucionários é uma coisa, agirem como revolucionários é outra e mais real, pois é o modo como se manifestam: isso não é novidade, acontece todos os dias. Nada mais eram do que a burguesia paulista, produtos de uma sociedade industrial em ascensão, cheios de liberalismo “bem nutrido”, e profundamente revolucionários, por isso mesmo. Mas, a meu ver o que provoca essa reação é justamente o caráter revolucionário implícito nas criações e nas posições do grupo baiano. Caetano e Gil, e seus cupinchas, põem o dedo na ferida – não são apenas revolucionários esteticistas, não! Aliás, porque hoje tudo o que revolucionou o faz de modo geral, estruturalmente, jamais limitado a um esteticismo, e é esse o sentido implícito que se convencionou chamar de Tropicalismo: não criar mais um “ismo”, ou um movimento isolado etc., como antes, mas constatar um estado geral cultural onde contribui e que poderia até parecer o oposto – José Celso, Glauber, Concretos de São Paulo, Nova Objetividade (que foi uma tentativa, no Rio, em agrupar artistas plásticos numa tendência geral de vanguarda) etc., além do grupo baiano, principal responsável pela divulgação da idéia etc., mas que tornou-se um “ismo” que ninguém consegue “definir”, o que neutraliza de certo modo esse caráter de “ismo“ fechado. Os baianos, sempre inteligentíssimos, promoveram a maior tarefa crítica da nossa música popular, inclusive cabe a eles a iniciativa da desmistificação, na música, do “bom gosto” como critério de julgamento (há aí um paralelo com problemas enfrentados nas artes plásticas por mim e Gerchman, numa fase, e no teatro por José Celso), a reavaliação desta (reposição do que é significativo na música popular no passado próximo ou remoto), a absorção geral de todas as manifestações musicais daqui e de fora etc. Mas tudo isso é feito de modo estrutural, profundo, e logo surge a necessidade, manifestada inicialmente no sentido grupal, do que chamarei de “manifestação ambiental”: a necessidade de guitarras, amplificadores, conjunto, e principalmente a roupagem, que não são acessórios “aplicados” sobre uma estrutura musical, mas fazem parte de uma linguagem complexa que procurei aí criar, uma linguagem universal, onde os elementos não se somam como 1+1=2 mas se redimensionam mutuamente: a coisa é levada mais adiante nas malfadas apresentações do ridículo festival (na verdade esses festivais são como os salões de arte moderna e bienais: velhas estruturas que se tornam cada vez mais acadêmicas e sufocam quaisquer inovações), onde tudo contribui para pulverizá-los. Mas a experiência chegou a ser feita, e o resultado só poderia ter sido mesmo aquele, naquele contexto, tal a radicalidade a que se conduziram Caetano, Gil e os Mutantes: tudo ficou velho diante deles – houve como que uma transubstanciação ambiental, ao mesmo tempo construída e catártica: pareceu-me, na primeira apresentação de Caetano, uma cena do tribunal no filme Napoleão de Abel Gance, onde o cineasta distorce visualmente a tela transformando o tribunal num mar em tempestade, com o movimento do mar visualmente transposto: havia ali algo de heróico, de pioneiro. Como sempre taxaram tudo de loucura, o que é um argumento profundamente reacionário. “É proibido proibir”, a música, é sem sombra de dúvida uma das mais importantes experiências de Caetano, continuação lógica e lícita da sua experiência, aqui aberta a um desenvolvimento que se torna dia a dia mais fascinante. Já em “Enquanto seu lobo não vem” e “Mamãe coragem”, e a estrutura anterior, que ele mesmo chamou de “colagem”, começa a diluir-se numa outra a que eu chamaria de “aberta”: que não querem exprimir conceitos a priori, mesmo quando diz “é proibido proibir”, “eu digo não ao não” etc., não querem “significar alguma coisa”, mas estão abertas aos significados: já cantadas, p. ex., por uma coletividade, esses significados vão sendo dados de modo tão ambivalente quanto as frases originais “não ao não”, “proibido proibir”, negação da negação para afirmar. Caetano joga a contradição afirmativa, mas joga-se de modo aberto também na música (impossível separar letra e música em todas essas experiências), não querendo “doutrinar” mas dar elementos semânticos abertos à imaginação, de modo seco, sintético, e sem dúvida fascinante. Seriam como as frases em passeatas: Ca-la-bou-ço, que ao serem repetidas vão-se incorporando, ritmicamente, aos sucessivos significados, ao coletivo e às vivências individuais. Lembro-me que durante a passeata dos cem mil, vinha-me a todo momento, e também a amigos meus que conheciam a música, o ritmo e as frases de “Enquanto seu lobo não vem”: “vamos passear na floresta escondida meu amor, vamos passear na avenida, vamos passear nas veredas no alto…”. Houve até quem achasse mais tarde que a música fora um prenúncio da passeata. Talvez, quem sabe, mas o que acontece é que Caetano constrói estruturas cada vez mais abertas à imaginação, logo à participação, de modo cada vez mais sintético. A percepção é uma totalidade, tratada como tal, e com isso suas experiências aparelham-se às que são feitas em todos os campos na vanguarda mundial. As artes, como eram divididas, tendem a não mais o serem, há como que uma globalização poética geral: poesia, artes plásticas, teatro, cinema, música, não mais somadas umas às outras mas sem fronteiras mesmo. Essas experiências tendem também a isso, o que as torna incompreensível para nossa crítica local. Lembro-me muito quando, há alguns anos, Lígia Clark começou com seus “bichos”, causando indignação geral, e precisava ela fazer um esforço louco para “explicar” o que fazia. Caetano, incompreendido do jeito que está, pichado de todos os lados, vem construindo uma obra que se ergue dia a dia por sua força criativa, sua imaginação sem par, pela sua seriedade e pioneirismo no terreno tão pobre e tão chato que é o nosso. Nessa apresentação festivalesca tudo funcionou no todo, complexo e cheio de implicações subjetivas, como sempre em Caetano: o arranjo belíssimo de Duprat, os Mutantes, o americano, que a meu ver é mais um instrumento (como se pensou em retira-lo?, só uma organização incompetente e ignorante poderia cogitar tal coisa), as roupas de Caetano que seriam a síntese plástico-visual, em polaridade, do que era manifestado na ação geral. Foi uma das mais ambiciosas tentativas do grupo baiano, não porque houvesse “aparato” superposto à música, desnecessário, mas porque o que os menos avisados consideram aparato é “elemento” intrínseco na obra, nada é gratuito ou “efeito” – efeito gratuito é, sim, a charmosa banda de “dixie” usada pelo talentoso Maranhão em sua música: ali o compositor teve a brilhante idéia de “vestir” sua obra com a banda, o que lhe deu graça, e foi realmente bonito, mas transformação estrutural não houve nenhuma: era mais um música, como tantas outras do autor ou dos festivais, apenas mais bem vestida, mas ainda “bem comportada”. Aí é que está a profunda diferença, queridos criticóides, não vista por vocês: Caetano e Gil, os Mutantes, Duprat, Tom Zé, modificam estruturas, criam novas estruturas, sua experiência é calcada numa modificação a longo prazo, não se reduz a apresentações de chegar, cantar, e pronto, voltar pra casa e dormir sossegado depois de tomar uns whiskys.
Mais incompreendido ainda foi Gil, pois teve uma música desclassificada pelo júri, e era a meu ver importantíssima como elemento na sua evolução: “Questão de ordem” reduz-se, numa severidade impressionante, a sons, guinchos, ruídos, a voz do cantor, e do conjunto que o acompanhou (Os Bichos), passam a ser pura música, as palavras que apareciam o fazem “flutuando” na estrutura geral. Gil parece cantar e compor com todo seu corpo, sua garganta é de fera, num cantoforte que se relaciona com o dos cantadores nordestinos, incisivo, sem meios tons: sua apresentação foi um momento de glória, contido e sem heroísmo aparente, certo do que fazia, enquanto a vaia fascista comia. A obra de Gil merece, urgentemente, um estudo detalhado, profundo (alô alô irmãos Campos), pois realiza nela uma síntese de praticamente todos os ritmos universais, como que os arrancando pela raiz de suas origens, do fundo dos sons, da terra, do suor dos ritos. A meu ver sua desclassificação se deu por esta bobagem de contar pontos por música e letra, critério super acadêmico, que já não servia nem para a música tradicional, quanto mais para experiências dessa envergadura. Nessa experiência de Gil, se bem que ainda no começo, faz-nos esperar coisas bem ambiciosas em termos musicais, livres e profundamente inovadoras, podendo levar o compositor a um campo totalmente novo, o que justifica o caminho em que se vem conduzindo magnificamente: os saudosistas ficarão a lamentar eternamente o Gil de “Louvação” que era grande sim, mas que teve a coragem de romper com tudo e desenvolver sua obra para o desconhecido, para onde ninguém “bem comportadamente” ousaria: ele ousa e sei que vencerá, e não venham falar em “blefe” porque sei que Gil nunca foi tão preciso, tão veemente, tão certo do que quer como agora: agora sim, os que entendem realmente o que querem esses artistas terão que definir: desclassificar “Questão de ordem” mostra profunda ignorância, incapacidade total de julgar, revela a estrutura acadêmica desse festival: pergunto eu, como julgariam com esse critério (lembrem-se os critérios são universais: ou não??), nesse festival, certas obras jazzísticas ou mesmo certos blues em que a voz do cantor não emite sequer uma palavra: por exemplo, “Pinky”, cantado por Sarah Vaughan: como daria o júri notas para a música e a letra: será que ninguém vê que esse critério é o mais acadêmico possível, tão infame quanto os que se usam para artes plásticas como o de separar dialeticamente forma e conteúdo. E ainda dizem que o festival é classe A. Só se for em matéria de incompetência e burrice – sim, burrice mesmo, não há outra explicação.
E os Mutantes (que maravilha de trabalho!), e Tom Zé, relegado à indiferença, e Jorge Ben?? São todos mil pontos acima do resto, essa é a verdade. Seria urgente e necessário ao grupo a criação de um teatro experimental, ou simplesmente um recinto onde pudessem fazer experiências com o público, como fazem pelo mundo afora, principalmente a experiência interior grupal “comigo mesmo”, dig in como designa Bob Dylan segundo me conta Luis Carlos Saldanha: é quase suicida procurar romper o que já está podre, inclusive muito do que poderia ser comunicado perder-se: a solução que é ainda a mais eficaz é essa espécie de nucleização organizada, se bem que expostas sempre à sabotagem, poderão assumir um caráter próprio e terão mais força do que os atos de heroísmo isolados. Como dizia-me José Celso, hoje em dia fazer teatro no Brasil é arriscar diariamente a vida, heroicamente. E nas artes plásticas? Creio que se fizer, hoje, as experiências a que me venho conduzido, em público, serei linchado. Daí a necessidade de grupos, a que denomino “comunidades germinativas”, de certo modo segregadas “dentro” da sociedade (dentro e fora, à espera de dias melhores) dispostas a “virar a mesa” a qualquer custo. O grupo baiano propôs-se, e vem levando a cabo uma das mais importantes revoluções justamente porque estão ligados à “cultura de massas” (sobre cuja natureza há problemas mais sérios a serem discutidos), digamos, e inclusive com a interessantíssima experiência em televisão, mais difícil, quase impossível, mas que foi feita, se bem que uma única vez, no programa Tropicália ou Panis et Circenses, gravado em tape num cabaré paulista. Ali, todo o caráter ambiental pode ser explícito, surgindo o “calor ambiente” como elemento totalizante: a meu ver é algo já além do simples happening organizado: a estrutura é mais aberta, há nela maior dose do imponderável, seria aparentado a uma experiência que levamos a cabo há dois meses no Aterro: a “Apocalipopótese” (termo inventado por Rogério Duarte para designar determinado tipo de experiência ligada ao conceito, também dele, de “projeto”, onde a “obra acabada” não existe como tal e sim estruturas abertas ou puramente “estruturas germinativas”, nas quais a participação individual é a própria criação, seja ela imediata ou pela imaginação que sobre ela se cria e se modifica). Mário Pedrosa ao chegar da Europa, tomando conhecimento da “Apocalipopótese”, assinalou-me logo essa diferença que já suspeitava existir e nos prometeu desenvolver algo sobre isto (estou cobrando isto, hein Mário!). A meu ver, a experiência do programa de TV, que possui longa história e acabou por sair bem diferente e muito menos ambicioso em relação ao que poderá ser feito pelo grupo proximamente: o próprio fato de existir um contexto ambiental no qual a ação se dá (o cabaré e a filmagem in loco) e ser esta ação “filmada” e depois “levada á TV”, já inclui, na experiência, uma série de “categorias transformadoras” – cada frase-fase de ação é revelada, é dada à percepção de um modo: a ação local, e filmada, e levada à TV etc. A totalidade aí não se reduz a um happening isolado, a algo que acontece como se fora uma obra polidimensional – era, sim, uma totalidade que existia e existe à medida em que é “vivida” nas suas múltiplas aparências, ou vivaparências – nela mesma, no filme, na transmissão de TV, e quantas outras fossem possíveis, tais como as relações poetizadas ou setoriadas de cada vivência individual daí geradas, como um __________ enedimensional: estruturas abertas transformáveis pela participação.
Os argumentos depreciativos contra esse tipo de experiência, ou sejam os que as rotulam de “loucura proposital”, de fundo reacionário e para o consumo, a redução de todas as tentativas de criação às de propaganda, cultura de dominação etc., soam logo falsas se examinarmos na origem a evolução do processo, como é encaminhado nas tendências a que denominamos vanguardas. Há o uso dos elementos ligados a essa cultura de massa sim, como a propaganda, mas são eles usados como veículo único de comunicação global para exprimir “processos criativos abertos”, onde se procuram exercícios experimentais num campo onde esses exercícios são estranhos ou aparecem ao acaso, sem intenção predeterminada. A ausência de uma ideologia rígida longe de ser algo reacionário, ou uma forma de liberalismo, liga-se mais a um processo anárquico que visa desintegrar estruturas ou anular o que se convencionou chamar como sendo o “belo”, o “bom gosto”, a “moral”, a “obra acabada” de artes etc. O argumento de loucura sim, é reacionário, porque na verdade para quem cria, ele não existe: como já disse uma vez, loucura é o conformismo de “não experimentar”, a vivência morta, porque não levada a cabo, castrada a priori, por que motivo repressivo for: ideológico, moral, sexual etc. A quebra dos condicionamentos e a tentativa de “não formular” conceitos rígidos, direções ou programas, visa às transformações contínuas no processo sob o perigo de criar um novo condicionamento, como sempre acontece. A necessidade desse “exercício experimental da liberdade” (M. Pedrosa) é permanente hoje nessas vanguardas, e este só se pode dar por experiências em que a participação criadora em estruturas abertas seja possível, em que sejam propostas não “soluções” mas “invenções criativas” que não se relativizem em pequenos atos de liberdade, inconseqüentes dentro do conformismo social, instrumento de dominação, mas que atuam no comportamento individual de modo profundo. Caetano veste-se como quer, não por loucura premeditada para ganhar dinheiro, vendendo disco (e não faz mal que isso aconteça), sua intenção fundamental quando diz que deseja “quebrar estruturas” é exatamente abrir-se a todas as demandas de sua imaginação criadora, como um exercício ou um ritual, mas ritual que se transfere continuamente, e ao comunicar isso cria condições para sua propagação ou germinação: se quero ficar nu, fico; se quero usar colares, roupa de plástico, uso – o mesmo que dizer: faça isso você também, se o quiser, ou faça o que quiser, como eu o faço. Dizer que isso seja acessório à sua música, algo desnecessário imposto pelo comércio de ídolos, pelos meios de comunicação de massa, é pura má vontade de não querer ir ao fundo das coisas, explicando-as então de modo superficial. O processo musical em sua origem em Caetano e seu grupo é exatamente o que se leva a cada etapa, às sucessivas transformações imagéticas, à criação ambiental, à necessidade de propagar o que pensam e querem pelos quatro ventos, que nada mais é do que a necessidade de criar essas condições experimentais necessárias às transformações. Mas tudo isso os conduz ao centro mais importante dessa atitude experimental, que é o atuar sobre o comportamento diretamente, não num puro processo de relaxamento dessublimatório, mas no de estruturação criativa, convocação às transformações e não submissão conformista. É como uma rama que se faz e cresce etapa por etapa: a tramavivência.