Eubioticamente atraídos
a explosão de “alegria, alegria”
Reportagens Históricas
A explosão de “Alegria alegria”
Augusto de Campos
Estado de São Paulo, 25 de novembro de 1967
Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, parece-me assumir, neste momento, uma importância semelhante a Desafinado, como expressão de uma tomada de posição crítica em face dos rumos da música popular brasileira. Ao fazer a defesa do “comportamento antimusical” do “desafinado”, Newton Mendonça & Tom Jobim (via João Gilberto) puseram naquela composição a teoria & prática do movimento: o desabafo sentimental do “desafinado” (muito bem afinado, por sinal) era, bem compreendido, um manifesto contra os preconceitos da harmonia clássica que bloqueavam a receptividade da suposta interlocutora (ou do próprio público, àquela altura), impedindo-os de aceitar como “afinadas”, isto é, como familiares ou “musicais”, as harmonias dissonantes da BN. A explosão de Alegria, Alegria soa como um novo desabafo-manifesto, mais do que necessário, ante a crise de insegurança que, gerando outros preconceitos, tomou conta da música popular brasileira e ameaçou interromper a sua marcha evolutiva. Crise que se aguçou nos últimos tempos, com a sintomatologia do temor e do ressentimento, ante o fenômeno musical dos Beatles, sua projeção internacional e sua repercussão local na música da jovem guarda.
Recusando-se à falsa alternativa de optar pela “guerra santa” ao iê-iê-iê ou pelo comportamento de avestruz (fingir ignorar ou desprezar á aparecimento de músicos, compositores e intérpretes, por vezes de grande sensibilidade, quando não verdadeiramente inovadores, como os Beatles, na faixa da “música jovem”), Caetano Veloso e Gilberto Gil, com Alegria, Alegria e Domingo no Parque, se propuseram, oswaldianamente, “deglutir” o que há de novo nesses movimentos de massa e de juventude e incorporar as conquistas da moderna música popular ao seu próprio campo de pesquisa, sem, por isso, abdicar dos pressupostos formais de suas composições, que se assentam, com nitidez, em raízes musicais nordestinas.
Pode-se dizer que Alegria, Alegria e Domingo no Parque representam duas faces complementares de uma mesma atitude, de um mesmo movimento no sentido de livrar a música nacional do “sistema fechado” de preconceitos supostamente “nacionalistas”, mas na verdade apenas solipsistas e isolacionistas, e dar-lhe, outra vez, como nos tempos áureos da bossa-nova, condições de liberdade para a pesquisa e a experimentação, essenciais, mesmo nas manifestações artísticas de largo consumo, como é a música popular, para evitar a estagnação.
Mas é Alegria, Alegria que tem, estampada na própria letra, a consciência verbA dessa postulação crítica. Por isso mesmo, no contexto maior da música popular brasileira, aquele “Por que não?” do estribilho tomou características de um desabafo-desafio. E foi com esse sentido que o compositor, na primeira apresentação da música, triunfando sobre o desagrado com que um público preconcebido recebera o conjunto acompanhante dos Beat Boys, terminou, ao final, por exclamar, braços abertos à platéia conquistada: “Por que não?”
Furando a maré redundante de violas e marias, a letra de Alegria, Alegria traz o imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada, iso morficamente, através de uma linguagem nova, também fragmentária, onde predominam substantivos-estilhaços da “implosão informativa” moderna: crimes, espaçonaves, guerrilhas, cardinales, caras de presidentes, beijos, dentes, pernas, bandeiras, bomba ou Brigitte Bardot. É o mundo das “bancas de revista”, o mundo de “tanta notícia”, isto é, o mundo da comunicação rápida, do “mosaico informativo”, de que fala Marshall McLuhan. Nesse sentido, pode-se afirmar que Alegria, Alegria descreve o caminho inverso de A Banda. Das duas marchas, esta mergulha no passado na busca evocativa da “pureza” das bandinhas e dos coretos da infância. Alegria, Alegria, ao contrário, se encharca de presente, se envolve diretamente no dia-a-dia da comunicação moderna, urbana, do Brasil e do mundo.
Da mesma forma que a excelente letra de Gilberto Gil para Domingo no Parque, a de Caetano Veloso tem características cinematográficas. Mas, como me observou Décio Pignatari, enquanto a letra de Gil . lembra as montagens eisenstenianas, com seus closes e suas “fusões” (“O sorvete é morango – é vermelho / oi girando e a rosa – é vermelha / oi girando, girando – é vermelha / oi girando, girando – Olha a faca / Olha o sangue na mão – ê José / Juliana no chão – ê José / Outro corpo caído – é José / Seu amigo João – ê José”), a de Caetano Veloso é uma “letra-câmara-na-mão”, mais ao modo informal e aberto de um Godard, colhendo a realidade casual “por entre fotos e nomes”.
Os adversários do “som universal” de Caetano e Gil têm colocado mal o problema da inovação nestas composições. Não se trata meramente de adicionar guitarras elétricas à música popular brasileira, como um adorno exterior. O deslocamento dos instrumentos da área musical definida da jovem guarda para o da MPB já tem, em si mesmo, um “significado” que é “informação nova” e tão perturbadora que houve muita gente que se confundiu auditivamente a ponto de não perceberem que ritmo estava sendo tocada Alegria, Alegria. As sonoridades eletrônicas ampliam o horizonte acústico do ouvinte para um universo musical onde são comuns a dissonância e o ruído. Por outro lado, embora simples, a melodia de Alegria, Alegria não deixa de fazer uso dos largos e inusitados intervalos musicais que são uma característica inovadora das músicas de Caetano (Boa Palavra, Um Dia). Já Domingo no Parque joga com uma complexidade maior’ no arranjo musical: na gravação definitiva, a composição é uma verdadeira assemblage de fragmentos documentais (ruídos do parque), instrumentos “clássicos”, ritmo marcadamente regional (capoeira), com o berimbau se associando à maravilha aos instrumentos elétricos e a vocalização típica de Gil contraponteando com o acompanhamento coral da “música jovem” – montagem de ruídos, palavras, sons e gritos.
E aqui deve ser lembrada a contribuição do arranjador, Rogério Duprat, no caso, essencial, e em si mesma um marco para a música popular brasileira. Marco de uma colaboração que muitos julgariam impossível entre um compositor de música popular e um compositor de vanguarda (embora Rogério não goste de ser chamado assim,-seus conhecimentos e sua prática de alta cultura musical contemporânea não suportam outra classificação). Esse encontro, tão bem sucedido, mostra que já não há barreiras intransponíveis entre a música popular e a erudita. Pois o guitarrelétrico Paul McCartney não descobriu o “eletrônico” Stockhausen? Embora a música popular, pela necessidade, que lhe é inerente, de se comunicar com um largo auditório, tenha que laborar essencialmente na faixa da redundância (que, em termos de teoria da informação, é.o contrário da inovação), ela não escapa à lei geral da “estética das formas”, definida por A. Moles como uma dialética banal/original, previsível/imprevisível, redundante/informativa. Portanto, a aproximação com a música erudita de vanguarda (que, ao contrário, trabalha exclusivamente com a informação original) só pode ter efeitos benéficos, no sentido de tornar mais exigentes compositores e ouvintes de música popular, dando a esta um significado maior do que o de mero entretenimento.
Numa entrevista a Dirceu Soares (“Música é Gil é Pop, Música é Pop é Veloso”, Jornal da Tarde, 20-10-67), Gilberto Gil procurou definir a nova linha das suas composições e das de Caetano como “música pop”. A expressão é discutível, porque a pop’art já tem uma semântica definida, no quadro das artes plásticas, e poderia fazer supor uma dependência que, realmente, não existe, embora haja algumas afinidades. Mas a explicação de Gil demonstra que ele sabe muito bem o que quer. Vale a pena repeti-la: “Música pop – diz ele – é a música que se consegue comunicar de maneira tão simples, como um cartaz de rua, um outdoor, um sinal de trânsito, uma história em quadrinhos”. Domingo no Parque joga palavras, música, som, idéia, numa montagem dentro dos moldes da comunicação moderna: o layout, a arrumação, a arte final. Segundo observa Gil, em Alegria, Alegria “as palavras com sentido de atualidade e interesse – guerrilha, Brigitte Bardot, coca-cola, caras de presidentes, espaçonaves – despertam e encaminham á percepção das pessoas para o sentido total das coisas que estão sendo ditas. E a familiaridade, o senso de participação na criação de Veloso tornam Alegria, Alegria, de repente, uma canção da consciência de toda uma classe-média urbana latino-americana”.
Posta nestes termos, a posição de Caetano e Gil os aproxima muito das manifestações artísticas da vanguarda brasileira. E especialmente das postulações da Poesia Concreta, intimamente relacionada, de resto,. com a música de vanguarda de São Paulo, que tem em Rogério Duprat, Damiano Cozzella, Willy Corrêa de Oliveira e Gilberto Mendes os seus mais dotados compositores. No manifesto publicado por Décio Pignatari, em 1956 (Nova Poesia: Concreta), já estava sob o signo antropofágico de Oswald de Andrade:
américa do sul
américa do sol
américa do sal
uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema. uma arte popular.
a importância do olho na comunicação mais rápida: desde os anúncios luminosos até as histórias em quadrinhos. (…) a colaboração das artes visuais, artes gráficas, tipográficas. a série dodecafônica (anton webern) e a música eletrônica (boulez, stockhausen), o cinema. pontos de referência.
Não faltarão, por certo, como não faltaram, quando surgiu a bossa-nova, quando surgiu a poesia concreta, os conselhos e as admoestações das “linhas duras” de todos os tempos para advertir contra os riscos da aventura criativa de Caetano e Gil. Há pouco, li um artigo cujo título é sintomático: “É perigoso ter Alegria, Alegria”. Vieram-me à mente aqueles juízes deprimidos do poema de Maiakóvski, que quiseram “encerrar num círculo de incisos / os pássaros, as mulheres e o riso”.
É precisamente contra isso, contra essa espécie de temor, que a música-manifesto de Caetano Veloso manda a sua mensagem. No estágio de desenvolvimento de nossa música, a discriminação proposta pelos “nacionalistas” só nos poderá fazer retornar à condição de fornecedores de “matéria-prima musical” (ritmos exóticos) para os países estrangeiros. Foi a bossa-nova que pôs fim a esse estado de coisas, fazendo com que o Brasil passasse a exportar, pela primeira vez, produtos acabados de sua indústria criativa, e a ter respeitados, como verdadeiros mestres, compositores como Jobim e intérpretes como João Gilberto.
Tivessem esses renovadores dado ouvidos aos conselheiros de então, que advertiam sobre os perigos de ser desafinado, desafinado, e só viam na bossa-nova a jazzificação da nossa música, e continuaríamos até hoje exportando “macumba para turistas”, como diria Oswald.
É preciso acabar com essa mentalidade derrotista, segundo- a qual um país subdesenvolvido só pode produzir arte subdesenvolvida. A produção artística brasileira (que não exclui, num país de camadas sociais tão diversificadas, o elemento regional, autêntico, e não mimetizado por autores citadino-sebastianistas) já adquiriu maturidade, a partir de 1922, e universalidade, desde 1956. Não tem que temer coisa alguma. Pode e deve caminhar livremente. E para tanto não se lhe há de negar nenhum dos recursos da tecnologia moderna dos países mais desenvolvidos: instrumentos elétricos, montagens, arranjos, novas sonoridades. Não creio que seja preciso, por ora, quebrar o violão, que o de João Gilberto ainda é o lema e o leme de toda a nossa música. Mas que se quebrem umas tantas tradições e tabus é o de menos. “Larga-me, deixa-me gritar”, já dizia o velho anúncio, redescoberto e transformado em happening por Décio Pignatari, Damiano Cozzella, Rogério Duprat e Sandino Hohagen. Deixemos a nossa música andar. Sem peias e sem preconceitos. Sem lenço e sem documento.