Eubioticamente atraídos

cultura e política

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Visões Brasileiras

CULTURA E POLÍTICA, 1964-1969
Alguns esquemas
Roberto Schawrs

Em 1964 instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de garantir o capital e o continente contra o socialismo. O governo populista de Goulart, apesar da vasta mobilização esquerdizante a que procedera, temia a luta de classes e recuou diante da possível guerra civil. Em conseqüência a vitória da direita pôde tomar a costumeira forma de acerto entre generais. O povo, na ocasião, mobilizado mas sem armas e organização própria, assistiu passivamente à troca de governos. Em seguida sofreu as conseqüências: intervenção e terror nos sindicatos, terror na zona rural, rebaixamento geral de salários, expurgo especialmente nos escalões baixos das Forças Armadas, inquérito militar na Universidade, invasão de igrejas, dissolução das organizações estudantis, censura, suspensão de habeas corpus, etc. – Entretanto, para surpresa de todos, a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais, de lá para cá não parou de crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é dominante. Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no país. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e rio, cheias de marxismo, nas estréias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom. Esta anomalia – que agora periclita, quando a ditadura decretou penas pesadíssimas para a propaganda do socialismo – é o traço mais visível do panorama cultural brasileiro entre 64 e 69. Assinala, além de luta, um compromisso.

Antes de apresentá-la em seus resultados, é preciso localizar esta hegemonia e qualificá-la. O seu domínio, salvo engano, concentra-se nos grupos diretamente ligados à produção ideológica, tais como estudantes, artistas, jornalistas, parte dos sociólogos e economistas, a parte raciocinante do clero, arquitetos etc. – mas daí não sai, nem pode sair, por razões policiais. Os intelectuais são de esquerda, e as matérias que preparam de um lado para as comissões do governo ou do grande capital, e do outro para as rádios, televisões e os jornais do país, não são. É de esquerda somente a matéria que o grupo – numeroso a ponto de formar um bom mercado – produz para consumo próprio. Esta situação cristalizou-se em 64, quando grosso modo a intelectualidade socialista, já pronta para prisão, desemprego e exílio, foi poupada. Torturados e longamente presos foram somente aqueles que haviam organizado o contato com operários, camponeses, marinheiros e soldados. Cortadas naquela ocasião as pontes entre o movimento cultural e as massas, o governo Castelo Branco não impediu a circulação teórica ou artística do ideário esquerdista, que embora em área restrita floresceu extraordinariamente. Com altos e baixos esta solução de habilidade durou até 68, quando nova massa havia surgido, capaz de dar força material à ideologia: os estudantes, organizados em semi-clandestinidade. Durante estes anos, enquanto lamentava abundantemente o seu confinamento e a sua impotência, a intelectualidade de esquerda foi estudando, ensinando, editando, filmando, falando etc., e sem perceber contribuíra para a criação, no interior da pequena burguesia, de uma geração maciçamente anti-capitalista. A importância social e a disposição de luta desta faixa radical da população revelam-se agora, entre outras formas, na prática dos grupos que deram início à propaganda armada da revolução. O regime respondeu, em dezembro de 68, com o endurecimento. Se em 64 fora possível a direita “preservar” a produção cultural, pois bastara liquidar o seu contato coma massa operária e camponesa, em 68, quando o estudante e o público dos melhores filmes, do melhor teatro, da melhor música e dos melhores livros já constitui massa politicamente perigosa, será necessário trocar ou censurar os professores, os encenadores, os escritores, os músicos, os livros, os editores – noutras palavras, será necessário liquidar a própria cultura viva do momento. O governo já deu vários passos neste sentido, e não se sabe quantos mais dará. Em matéria de destroçar universidades, o seu acervo já é considerável: Brasília, S. Paulo e Rio, as três maiores do país.

Para compreender o conteúdo, a implantação e as ambigüidades desta hegemonia, é preciso voltar às origens. Antes de 64, o socialismo que se difundia no Brasil era forte em anti-imperialismo e fraco na propaganda e organização da luta de classes. A razão esteve em parte ao menos na estratégia do Partido Comunista, que pregava aliança com a burguesia nacional. Formou-se em conseqüência uma espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico, um complexo ideológico ao mesmo tempo combativo e de conciliação de classes, facilmente combinável com o populismo nacionalista então dominante, cuja ideologia original, o trabalhismo, ia cedendo terreno. O aspecto conciliatório prevalecia na esfera do movimento operário, onde o P.C. fazia valer a sua influência sindical, a fim de manter a luta dentro dos limites da reivindicação econômica. E o aspecto combativo era reservado à luta contra o capital estrangeiro, à política externa e à reforma agrária. O conjunto estava sob medida para a burguesia populista, que precisava da terminologia social para intimidar a direita latifundiária, e precisava do nacionalismo, autenticado pela esquerda, para infundir bons sentimentos nos trabalhadores. Não se pense, é claro, que o populismo seja criação do P.C.; o populismo é que consolidara neste uma tendência, cujo sucesso prático muito grande tornava o Partido, como veremos adiante, invulnerável à esquerda. Ora, uma vez consumada esta aliança tornou-se difícil a separação dos bens. Hoje tudo isto parece claro. Não obstante, este complexo deteve a primazia teórica no país, seja em face das teorias psico-sociológicas do “caráter nacional”, já anacrônicas então, seja em face do nacionalismo simples da modernização, inocente de contradições, seja em face dos simulacros cristãos do marxismo, que traduziam imperialismo e capital em termos de autonomia e heteronomia da pessoa humana, e seja finalmente diante dos marxismos rivais, que batiam incansavelmente na tecla do leninismo clássico, e de hábito se bastavam com a recusa abstrata do compromisso populista. O ponto forte desta posição, que chegou a penetrar as massas, aprofundando nelas o sentido político do patriotismo, estava na demonstração de que a dominação imperialista e a reação interna estão ligadas, que não se muda uma sem mudar a outra. Aliada ao momento político, a repercussão desta tese foi muito grande. A literatura anti-imperialista foi traduzida em grande escala e os jornais fervilhavam de comentários. Foi a época de Brasilino, uma personagem que ao longo de um livrinho inteiro não conseguia mover um dedo sem topar no imperialismo. Se acendia a luz, pela manhã, a força era da Light & Power. Indo ao trabalho, consumia gasolina da Esso, num ônibus da General Motors. As salsichas do almoço vinham da Swift & Armour etc. Os Cadernos do Povo, por sua vez, vendidos por um cruzeiro, divulgavam amplamente as manobras em torno do petróleo, relações entre latifúndio e doença endêmica, questões de reforma agrária, discutiam quem fosse “povo” no Brasil, etc. O país vibrava e as opções diante da história mundial eram pão diário para o leitor dos principais jornais. Neste período aclimatizou-se na fala cotidiana, que se desprovincianizava, o vocabulário e também o raciocínio político da esquerda. Daí uma certa abstração e velocidade específica do novo cinema e teatro, em que as opções mundiais aparecem de dez em dez linhas e a propósito de tudo, às vezes de maneira desastrada, às vezes muito engraçadas, mas sempre erguendo as questões à sua conseqüência histórica, ou a uma caricatura dela. Quando numa peça teatral um namorado diz à namorada, insuficientemente marxista diante das complicações familiares: “generaliza, pô! – são estes anos de Aufklaerung popular que têm a palavra.1 Mas voltemos. Se o P.C. teve o grande mérito de difundir a ligação entre imperialismo e reação interna, a sua maneira de especificá-la foi seu ponto fraco, a razão do desastre futuro de 64. Muito mais anti-imperialista que anti-capitalista, o P.C. distinguia no interior das classes dominantes um setor agrário, retrógrado e pró-americano, e um setor industrial, nacional e progressista, ao qual se aliava contra o primeiro. Ora, esta oposição existia, mas sem a profundidade que lhe atribuíam, e nunca pesaria mais do que a oposição entre as classes proprietárias, em bloco, e o perigo do comunismo. O P.C. entretanto transformou em vasto movimento ideológico e teórico as suas alianças, e acreditou nelas, enquanto a burguesia não acreditava nele. Em conseqüência chegou despreparado à beira da guerra civil. Este engano esteve no centro da vida cultural brasileira de 1950 para cá, e tinha a tenacidade de seu sucesso prático. Esta a dificuldade. A crítica de esquerda não conseguia desfazê-lo, pois todos os dias anteriores ao último davam-lhe razão. Como previsto, Goulart apoiava-se mais e mais no P.C., cuja influência e euforia eram crescentes. Só o que não houve meios de prevenir, na prática, já que as precauções neste terreno perturbariam a disposição “favorável” do presidente, foi o final militar. Estava na lógica das coisas que o P.C. chegasse à soleira da revolução confiando no dispositivo militar da Presidência da República. Em suma, tratava-se de um engano bem fundado nas aparências. Seus termos e seu movimento foram a matéria prima da crítica e da apologética do período. Sumariamente, era o seguinte. – O aliado principal do imperialismo, e portanto o inimigo principal da esquerda, seriam os aspectos arcaicos da sociedade brasileira, basicamente o latifúndio, contra o qual deveria erguer-se o povo, composto por todos aqueles interessados no progresso do país. Resultou no plano econômico-político uma problemática explosiva mas burguesa de modernização e democratização; mais precisamente, tratava-se da ampliação do mercado interno através da reforma agrária,nos quadros de uma política externa independente. No plano ideológico resultava uma noção de “povo” apologética e sentimentalizável, que abraçava indistintamente as massas trabalhadoras, o lumpenzinato, a intelligentzia, os magnatas nacionais e o exército. O símbolo desta salada está nas grandes festas de então, registradas por Glauber Rocha em Terra em Transe, onde fraternizavam as mulheres do grande capital, o samba, o grande capital ele mesmo, a diplomacia dos países socialistas, os militares progressistas, católicos e padres de esquerda, intelectuais do Partido, poetas torrenciais, patriotas em geral, uns em traje de rigor, outros em blue jeans. Noutras palavras, posta de lado a luta de classes e a expropriação do capital, restava do marxismo uma tintura rósea que aproveitava ao interesse de setores (burguesia industrial? burocracia estatal?) das classes dominantes. E de fato, nesta forma, foi parte em grau maior ou menor do arsenal ideológico de Vargas, Kubitschek, Quadros e Goulart. Assim, no Brasil, a deformação populista do marxismo esteve entrelaçada com o poder (particularmente durante o governo Goulart, quando chegou a ser ideologia confessa de figuras importantes na administração), multiplicando os qui-pro-quós e implantando-se profundamente, a ponto de tornar-se a própria atmosfera ideológica do país. De maneira vária, sociologia, teologia, historiografia, cinema, teatro, música popular, arquitetura etc., refletiram os seus problemas. Aliás, esta implantação teve também o seu aspecto comercial – importante, do ponto de vista da ulterior sobrevivência – pois a produção de esquerda veio a ser um grande negócio, e alterou a fisionomia editorial e artística do Brasil em poucos anos. – Entretanto, se nesta fase a ideologia socialista servia à resolução de problemas do capitalismo, a cada impasse invertia-se a direção da corrente. Agitavam-se as massas, a fim de pressionar a faixa latifundiária do Congresso, que assustada aprovaria medidas de modernização burguesa, em particular a reforma agrária. Mas, o Congresso não correspondia; e a direita por sua vez, contrariamente à esquerda populista, que era moderadíssima, promovia ruidosamente o fantasma da socialização. Consolidava-se então, aqui e ali, por causa mesmo da amplitude das campanhas populares oficiais, e por causa de seu fracasso, a convicção de que as reformas necessárias ao país não seriam possíveis nos limites do capitalismo e portanto do populismo. Esta conclusão, embora esparsa, tinha o mesmo vasto raio da propaganda governamental. Foi adotada por quadros de governo, quadros técnicos, estudantes e vanguardas operárias, que em seguida, diante do golpe militar de 64, não puseram em dúvida o marxismo, mas a aplicação que o P.C. fizera dele. Este esquema explica aliás alguma coisa do caráter e do lugar social de parte do marxismo brasileiro. Num país dependente mas desenvolvimentista, de capitalização fraca e governo empreendedor, toda iniciativa mais ousada se faz em contato com o Estado. Esta mediação dá perspectiva nacional (e paternalista) à vanguarda dos vários setores da iniciativa, cujos teóricos iriam encontrar os seus impasses fundamentais já na esfera do Estado, sob forma de limite imposto a ele pela pressão imperialista e em seguida pelo marco do capitalismo. Isto vale para o conjunto da atividade cultural (incluindo o ensino) que precise de meios, vale para a administração pública, para setores de ponta na administração privada, e especificando-se um pouco valeu mesmo para isolados capitalistas nacionais e para oficiais do exército. Em conseqüência a tônica de sua crítica será o nacionalismo anti-imperialista, anti-capitalista num segundo momento, sem que a isto corresponda um contato natural com os problemas da massa. Um marxismo especializado na inviabilidade do capitalismo, e não nos caminhos da revolução. Ora, como os intelectuais não detêm os seus meios de produção, essa teoria não se transpôs para a sua atividade profissional, embora faça autoridade e oriente a sua consciência crítica. Resultaram pequenas multidões de profissionais imprescindíveis e insatisfeitos, ligados profissionalmente ao capital ou governo, mas sensíveis politicamente ao horizonte da revolução – e isto por razões técnicas, de dificuldade no crescimento das forças produtivas, razões cuja tradução política não é imediata, ou por outra, é aleatória e depende de ser captada. Em suma, formara-se uma nova liga nacionalista de tudo que é jovem, ativo e moderno – excluídos agora magnatas e generais – que seria o público dos primeiros anos da ditadura e o solo em que deitaria fruto à crítica aos compromissos da fase anterior. Era tão viva a presença desta corrente, que não faltou quem reclamasse – apesar dos tanques da ditadura rolando periodicamente pelas ruas – contra o terrorismo cultural da esquerda.2

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Este, esquematicamente, o mecanismo através do qual um dúbio temário socialista conquistou a cena. Entretanto, resultados culturais e horizontes de uma ideologia, já porque ela nunca está só, não são idênticos em tudo à sua função. Do contato com as novas tendências internacionais e coma radicalização do populismo, o qual afinal desembocava em meses de pré-revolução, nasciam perspectivas e formulações irredutíveis ao movimento ideológico do princípio, e incompatíveis com ele. Dada a análise que fizemos, este é mesmo um critério de valor: só na medida em que nalgum ponto rompesse com o sistema de conciliações então engrenado, que não obstante lhe dava o impulso, a produção de esquerda escapava de ser pura ideologia. Isto dava-se de muitas maneiras. Por exemplo, as demagógicas emoções da “política externa independente” (Jânio Quadros condecorando Guevara) ou das campanhas de Goulart estimulavam, nas Faculdades, o estudo de Marx e do imperialismo. Em conseqüência vieram de professores – destas longínquas tartarugas – as primeiras exposições mais convincentes e completas da inviabilidade do reformismo e de seu caráter mistificador. outro resultado oblíquo: paradoxalmente, o estudo acadêmico devolvia aos textos de Marx e Lenin a vitalidade que o monopólio do P.C. lhes havia tomado; saindo da aula, os militantes defendiam o rigor marxista contra os compromissos de seus dirigentes. Em suma, como os grupos de 11 e as ligas camponesas escapavam à máquina populista, que entretanto era a sua atmosfera, a cultura dispersava por vezes, em obras isoladas ou mesmo em experimentos coletivos, a fumaceira teórica do P.C., que entretanto era também o clima que lhe garantia audiência e importância imediata. Finalmente, para um exemplo mais complexo desta disparidade entre a prática reformista e seus resultados culturais, veja-se o Movimento de Cultura Popular em Pernambuco (uma bela evocação encontra-se no romance de Antonio Callado, Quarup, de 1967). O Movimento começou em 59, quando Miguel Arraes era prefeito e se candidatava a governador. A sua finalidade imediata era eleitoral, de alfabetizar as massas, que certamente votariam nele se pudessem (no Brasil o analfabeto, 50% da população, não vota). Havia intenção também de estimular toda sorte de organização do povo, em torno de interesses reais, de cidade, de bairro, e mesmo folclóricos, a fim de contrabalançar a indigência e o marginalismo da massa; seria um modo de fortalecê-la para o contato devastador com a demagogia eleitoral. O programa era de inspiração cristã e reformista, e a sua teoria centrava na “promoção do homem”. Entretanto, em seus efeitos sobre a cultura e suas formas estabelecidas, a profundidade do M.C.P. era maior. A começar pelo método Paulo Freire, de alfabetização de adultos, que foi desenvolvido nesta oportunidade. Este método, muito bem sucedido na prática, não concebe a leitura como uma técnica indiferente, mas como força no jogo da dominação social. Em conseqüência procura acoplar o acesso do camponês à palavra escrita com a consciência de sua situação política. Os professores, que eram estudantes, iam às comunidades rurais, e a partir da experiência viva dos moradores alinhavam assuntos e palavras-chave – “palavras geradoras”, na terminologia de P. Freire – que serviriam simultaneamente para discussão e alfabetização. Em lugar de aprender humilhado, aos trinta anos de idade, que o vovô vê a uva, o trabalhador rural entrava, de um mesmo passo, no mundo das letras e no dos sindicatos, da constituição, da reforma agrária, em suma dos seus interesses históricos. Nem o professor, nesta situação, é um profissional burguês que ensina simplesmente o que aprendeu, nem a leitura é um procedimento que qualifique simplesmente para uma nova profissão, nem as palavras e muito menos os alunos são simplesmente o que são. Cada um destes elementos é transformado no interior do método, – em que de fato pulsa um momento da revolução contemporânea: a noção de que a miséria e seu cimento, o analfabetismo, não são acidentes ou resíduo, mas parte integrada no movimento rotineiro da dominação do capital. Assim a conquista política da escrita rompia os quadros destinados ao estudo, à transmissão do saber e à consolidação da ordem vigente. Analogamente para o teatro. Certa feita o governo Arraes procurou estender o crédito agrícola, que em dois meses passou a beneficiar 40.000 pequenos agricultores em lugar de 1000 apenas. Grupos teatrais procuravam então os camponeses, informavam-se e tentavam dramatizar em seguida os problemas da inovação. Num caso destes, quem seria o autor? Quem aprende? A beleza ainda adorna as classes dominantes? De onde vem ela? Com o público, mudavam os temas, os materiais, as possibilidades e a própria estrutura da produção cultural. Durante este breve período, em que polícia e justiça não estiveram simplesmente a serviço da propriedade (notavelmente em Pernambuco), as questões de uma cultura verdadeiramente democrática brotaram por todo canto,na mais alegre incompatibilidade com as formas e o prestígio da cultura burguesa. Aliás, é difícil dar-se conta, em sua verdadeira extensão, da cumplicidade complexa, da complementaridade que muitas vezes existe entre as formas aceitas, artísticas ou culturais, e repressão policial. Foram tempos de áurea irreverência. No Rio de Janeiro os C.P.C. (Centro Popular de Cultura) improvisavam teatro político em portas de fábrica, sindicatos, grêmios estudantis e na favela, começavam a fazer cinema e lançar discos. O vento pré-revolucionário descompartimentava a consciência nacional e enchia os jornais de reforma agrária, agitação camponesa, movimento operário, nacionalização de empresas americanas etc. O país estava irreconhecivelmente inteligente. O jornalismo político dava um extraordinário salto nas grandes cidades, bem como o humorismo. Mesmo alguns deputados fizeram discursos com interesse. Em pequeno, era a produção intelectual que começava a reorientar a sua relação com as massas. Entretanto sobreveio o golpe, e com ele a repressão e o silêncio das primeiras semanas. Os generais, em arte, eram adeptos de uma linha mais tradicional. Em São Paulo, por exemplo, verdade que mais tarde, o comandante do Segundo Exército – famoso pela exclamação de que almoçaria a esquerda antes que ela o jantasse – promovia comentado sarau literário, em que recitou sonetos da lavra paterna, e no final, instado pela sociedade presente, também alguns de sua própria pluma. No Recife o M.C.P. foi fechado em seguida, e sua sede transformada, como era inevitável, em secretaria da assistência social. A fase mais interessante e alegre da história brasileira recente havia-se tornado matéria para reflexão.

Agora, no rastro da repressão de 64, era outra camada geológica do país quem tinha a palavra. “Corações antigos, escaninhos da hinterlândia, quem vos conhece?” Já no pré-golpe, mediante forte aplicação de capitais e ciência publicitária, a direita conseguira ativar politicamente os sentimentos arcaicos da pequena burguesia. Tesouros de bestice rural e urbana saíram à rua, na forma das “Marchas da família, com Deus pela Liberdade”, movimentavam petições contra divórcio, reforma agrária e comunização do clero, ou ficavam em casa mesmo, rezando o “Terço em Família”, espécie de rosário bélico para encorajar os generais. Deus não deixaria de atender a tamanho clamor, público e caseiro, e de fato caiu em cima dos comunistas. No pós-golpe, a corrente da opinião vitoriosa se avolumou, enquanto a repressão calava o movimento operário e camponês. Curiosidades antigas vieram à luz, estimuladas pelo inquérito policial-militar que esquadrinhava a subversão. – O professor de filosofia acredita em Deus? – O senhor sabe inteira a letra do Hino Nacional? – Mas as meninas, na Faculdade, são virgens? – E se forem praticantes do amor livre? Será que o meu nome estava na lista dos que iriam para o paredão? Tudo se resumia nas palavras de ardente ex-liberal: “Há um grandioso trabalho à frente da Comissão Geral de Investigações”. Na província, onde houvesse ensino superior, o ressentimento local misturava-se de interesse: professores do secundário e advogados da terra cobiçavam os postos e ordenados do ensino universitário, que via de regra eram de licenciados da capital. Em São Paulo, speakers de rádio e televisão faziam terrorismo político por conta própria. O Governador do Estado, uma encarnação de Ubu, invocava seguidamente a Virgem – sempre ao microfone – a quem chamava “adorável criatura”. O Ministro da Educação era a mesma figura que há poucos anos expurgara a biblioteca da Universidade do Paraná, de que então era Reitor; naquela ocasião mandara arrancar as páginas imorais dos romances de Eça de Queiroz. Na Faculdade de Medicina, um grupo inteiro de professores foi expulso por outro, menos competente, que aproveitava a marola policial para ajuste de rancores antigos.

Em menos palavras: no conjunto de seus efeitos secundários, o golpe apresentou-se como uma gigantesca volta do que a modernização havia relegado; a revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em lei etc. Para conceber o tamanho desta regressão, lembre-se que no tempo de Goulart o debate público estivera centrado em reforma agrária, imperialismo, salário mínimo ou voto do analfabeto, e mal ou bem resumira, não a experiência média do cidadão, mas a experiência organizada dos sindicatos, operários e rurais, das associações patronais ou estudantis, da pequena burguesia mobilizada etc. Por confuso e turvado que fosse, referia-se a questões reais e fazia-se nos termos que o processo nacional sugeria, de momento a momento, aos principais contendores. Depois de 64 o quadro é outro. Ressurgem as velhas fórmulas rituais, anteriores ao populismo, em que os setores marginalizados e mais antiquados da burguesia escondem a sua falta de contato com o que se passa no mundo: a célula da nação é a família, o Brasil é altivo, nossas tradições cristãs, frases que não mais refletem realidade alguma, embora sirvam de passe-partout para a afetividade e de caução policial-ideológica a quem fala. À sua maneira, a contra-revolução repetia o que havia feito boa parte da mais reputada poesia brasileira deste século; ressuscitou o cortejo dos preteridos do capital. Pobres os poetas, que viam seus decantados maiores em procissão, brandindo cacetes e suando obscurantismo! Entretanto, apesar de vitoriosa, esta liga dos vencidos não pode se impor, sendo posta de lado em seguida pelos tempos e pela política tecnocrática do novo governo. (Fez, contudo fortuna artística ainda uma vez, em forma de assunto. Seu raciocínio está imortalizado nos três volumes do Febeapá – sigla para Festival de Besteira que Assola o País – antologia compilada por Stanislaw Ponte-Preta. E de maneira indireta, o espetáculo de anacronismo social, de cotidiana fantasmagoria que deu, preparou a matéria para o movimento tropicalista –, uma variante brasileira e complexa do Pop, na qual se reconhece um número crescente de músicos, escritores, cineastas, encenadores e pintores de vanguarda. Adiante tentarei apresentá-la.) A sua segunda chance, esta liga veio a tê-la agora em 69, associada ao esforço policial e doutrinário dos militares, que tentam construir uma ideologia para opor à guerra revolucionária nascente. Porém voltemos a 64. O Governo que saía do golpe, contrariamente à pequena burguesia e à burguesia rural, que ele mobilizara mas não ia representa, não era atrazado. Era pró-americano e anti-popular, mas moderno. Levava a cabo a integração econômica e militar com os E.E.U.U., a concentração e a racionalização do capital. Neste sentido o relógio não andara para trás, e os expoentes da propriedade privada rural e suburbana não estavam no poder. Que interesse pode ter um tecnocrata, cosmopolita por definição, nos sentimentos que fazem a hinterlândia marchar? Muito mais interessante é ver o que vêm os seus colegas em Londres, nova York e Paris, Hair, Marat-Sade, Albee e mesmo Brecht. Da mesma forma, quando marchavam pelas ruas contra o comunismo, em saia, blusa e salto baixo, as damas da sociedade não pretendiam renunciar às suas tualetes mais elaboradas. A burguesia entregou aos militares a Presidência da República e lucrativos postos na administração, mas guardava padrões internacionais de gosto. Ora, neste momento a vanguarda cultural do Ocidente trata de um só assunto, o apodrecimento social do capitalismo. Por sua vez, os militares quase não traziam a público o seu esforço ideológico – o qual será decisivo na etapa que se inicia agora – pois dispondo da força dispensavam a sustentação popular. Neste vácuo, foi natural que prevalecessem o mercado e a liderança dos entendidos, que devolveram a iniciativa a quem a tivera no governo anterior. A vida cultural entrava em movimento, com as mesmas pessoas de sempre e uma posição alterada na vida nacional. Através de campanhas contra tortura, rapina americana, inquérito militar e estupidez dos censores, a inteligência do país unia-se e triunfava moral e intelectualmente sobre o governo, com grande efeito de propaganda. Somente em fins de 68 a situação volta a se modificar, quando é oficialmente reconhecida a existência de guerra revolucionária no Brasil. Para evitar que ela se popularize, o policialismo torna-se verdadeiramente pesado, com delação estimulada e protegida, a tortura assumindo proporções pavorosas, e a imprensa de boca fechada. Cresce em decorrência o peso da esfera ideológica, o que se traduziu em profusão de bandeiras nacionais, folhetos de propaganda, e na instituição de cursos de ginástica e civismo para universitários. Subitamente renascida, em toda parte se encontra a fraseologia do patriotismo ordeiro. Que chance tem o governo de forjar uma ideologia nacional efetiva? Se precisa dela, é somente para enfrentar a subversão. Noutro caso, preferia dispensá-la, pois é no essencial um governo associado ao imperialismo, de desmobilização popular e soluções técnicas, ao qual todo compromisso ideológico verificável parecerá sempre um entrave. Além disso há também a penetração instituída e maciça da cultura dos E.U.A., que não casa bem com Deus, pátria e família, ao menos em sua acepção latino-americana. Portanto, a resistência à difusão de uma ideologia de tipo fascista está na força das coisas. Por outro lado, dificilmente ela estará na consciência liberal, que teve seus momentos de vigor depois de 64, mas agora parece quase extinta. Em 67, por ocasião de grandes movimentações estudantis, foi trazida a São Paulo a polícia das docas. A sua brutalidade sinistra, rotineiramente aplicada aos trabalhadores, voltava-se por um momento contra os filhos da burguesia, causando espanto e revolta. Aquela violência era desconhecida na cidade e ninguém supusera que a defesa do regime necessitasse de tais especialistas. Assim também hoje. Contrafeita, a burguesia aceita a programação cultural que lhe preparam os militares.

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Sistematizando um pouco, o que se repete nestas idas e vindas é a combinação, em momentos de crise, do moderno e do antigo; mais precisamente, das manifestações mais avançadas da integração imperialista internacional e da ideologia burguesa mais antiga – e obsoleta – centrada no indivíduo, na unidade familiar e em suas tradições. Superficialmente, esta combinação indica apenas a coexistência de manifestações ligadas a diferentes fases do mesmo sistema. (Não interessa aqui, para o nosso argumento, a famosa variedade cultural do país, em que de fato se encontram religiões africanas, tribos indígenas, trabalhadores ocasionalmente vendidos tal como escravos, trabalho a meias e complexos industriais). O importante é o caráter sistemático desta coexistência, e seu sentido, que pode varia. Enquanto na fase Goulart a modernização passaria pelas relações de propriedade e poder, e pela ideologia, que deveriam ceder à pressão das massas e das necessidades do desenvolvimento nacional, o golpe de 64 – um dos momentos cruciais da guerra fria – firmou-se pela derrota deste movimento, através da mobilização e confirmação, entre outras, das formas tradicionais e localistas de poder. Assim a integração imperialista, que em seguida modernizou para os seus propósitos a economia do país, revive e tonifica a parte do arcaísmo ideológico e político de que necessita para a sua estabilidade. De obstáculo e resíduo, o arcaísmo passa a instrumento intencional da opressão mais moderna, como aliás a modernização, de libertadora e nacional passa a forma de submissão. Nestas condições, em 64 o pensamento caseiro alçou-se à eminência histórica. Espetáculo acabrunhador especialmente para os intelectuais, que já se tinham desacostumado. Esta experiência, com sua lógica própria, deu a matéria prima a um estilo artístico importe, ao tropicalismo, que reflete variadamente a seu respeito, explorando e demarcando uma nova situação intelectual, artística e de classe. Tento em seguida um esquema, sem qualquer certeza, de suas linhas principais. Arriscando um pouco, talvez se possa dizer que o efeito básico do tropicalismo está justamente na submissão de anacronismos desse tipo, grotescos à primeira vista, invitáveis à segunda, à luz branca do ultra-moderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil. A reserva de imagens e emoções próprias ao país patriarcal, rural e urbano, é exposta à forma ou técnica mais avançada ou na moda mundial – música eletrônica, montagem eisensteiniana, cores e montagem do pop, prosa de Finnegans Wake, cena ao mesmo tempo crua e alegórica, atacando fisicamente a platéia. É nesta diferença interna que está o brilho peculiar, a marca de registro da imagem tropicalista.3 O resultado da combinação é estridente como um segredo familiar trazido à rua, como uma traição de classe. É literalmente um disparate – é esta a primeira impressão – em cujo desacerto porém está figurando um abismo histórico real, a conjugação de etapas diferentes do desenvolvimento capitalista. São muitas as ambigüidades e tensões nesta construção. O veículo é moderno e o conteúdo é arcaico, mas o passado é nobre e o presente é comercial; por outro lado, o passado é iníquo e o presente é autêntico; etc. Combinaram-se a política e uma espécie coletiva de exibicionismo social: a força artística lhe vem de citar sem conivência, como se viessem de Marte, o civismo e a moral que saíram à rua – mas com intimidade, pois Marte, fica lá em casa – e vem também de uma espécie de delação amorosa, que traz aos olhos profanos de um público menos restrito os arcanos familiares e de classe. Noivas patéricas, semblantes senatoriais, frases de implacável dignidade, paixões de tango, – sem a proteção da distância social e do prestígio de seu contexto, e gravadas nalguma matéria plástico-metálico-fosforescente e eletrônica, estas figuras refulgem estranhamente, e fica incerto se estão desamparadas ou são malignas, prontas para um fascismo qualquer. Aliás, este fundo de imagens tradicionais é muitas vezes representado através de seus decalques em rádio-novela, opereta, casino e congêneres, o que da’um dos melhores efeitos do tropicalismo: o antigo e autêntico era ele mesmo tão faminto de efeito quanto o deboche comercial de nossos dias, com a diferença de estar fora de moda; é como se a um cavalheiro de cartola, que insistisse em sua superioridade moral, respondessem que hoje ninguém usa mais chapéu. Sistematizando: a crista da onda, que é, quanto à forma, onde os tropicalistas estão, ora alinha pelo esforço crítico, ora pelo sucesso do que seja mais recente nas grandes capitais. Esta indiferença, este valor absoluto do novo, faz que a distância histórica entre técnica e tema, fixada na imagem-tipo do tropicalismo, possa tanto exprimir ataque à reação, quanto o triunfo dos netos citadinos sobre os avós interioranos, o mérito irrefutável de ter nascido depois e ler revistas estrangeiras. Sobre o fundo ambíguo da modernização, é incerta alinha entre sensibilidade e oportunismo, entre crítica e integração. Uma ambigüidade análoga aparece na conjugação de crítica social violenta e comercialismo atirado, cujos resultados podem facilmente ser conformistas, mas podem também, quando ironizam o seu aspecto duvidoso, reter a figura mais íntima e dura das contradições da produção intelectual presente. Aliás, a julgar pela indignação da direita (o que não é tudo), o lado irreverente, escandaloso e comercial parece ter tido, entre nós, mais peso político que o lado político deliberado. – Qual o lugar social do tropicalismo? Para apreciá-lo é necessária familiaridade – mais rara para algumas formas de arte e menos para outras – com a moda internacional. Esta familiaridade, sem a qual se perderia a distância, a noção de impropriedade diante da herança patriarcal, é monopólio de universitários e afins, que por meio dela podem falar uma linguagem exclusiva. Como já vimos, o tropicalismo submete um sistema de noções reservadas e prestigiosas a uma linguagem de outro circuito e outra data, operação de que deriva o seu alento desmistificador e esquerdista. Ora, também a segunda linguagem é reservada, embora a outro grupo. Não se passa do particular ao universal, mas de uma esfera a outra, verdade que politicamente muito mais avançada, que encontra aí uma forma de identificação. Mais ou menos, sabemos assim a quem fala este estilo; mas não sabemos ainda o que ele diz. Diante de uma imagem tropicalista, diante do disparate aparentemente surrealista que resulta da combinação que descrevemos, o espectador sintonizado lançará mão das frases da moda, que se aplicam: dirá que o Brasil é incrível, é a fossa, é o fim, o Brasil é demais. Por meio destas expressões, em que simpatia e desgosto estão indiscerníveis, filia-se ao grupo dos que têm o “senso” do caráter nacional. Por outro lado, este clima, esta essência imponderável do Brasil é de construção simples, fácil de reconhecer ou produzir. Trata-se de um truque de linguagem de uma fórmula para visão sofisticada, ao alcance de muitos. Qual o conteúdo deste esnobismo de massas? Qual o sentimento em que se reconhece e distingüe a sensibilidade tropicalista? Entre parêntesis, sendo simples uma fórmula não é necessariamente ruim. Como veremos adiante, o efeito tropicalista tem um fundamento histórico profundo e interessante: mas é também indicativo de uma posição de classe, como veremos agora. Voltando: por exemplo, no método Paulo Freire estão presentes o arcaísmo da consciência rural e a reflexão especializada de um alfabetizador; entretanto, a despeito desta conjunção, nada menos tropicalista do que o Método. Por quê? Porque a oposição entre os seus termos não é insolúvel: pode haver alfabetização. Para a imagem tropicalista, pelo contrário, é essencial que a justaposição de antigo e novo – seja entre conteúdo e técnica, seja no interior do conteúdo – componha um absurdo, esteja em forma de aberração, a que se referem a melancolia e o humor deste estilo. Noutras palavras, para obter o seu efeito artístico e crítico o tropicalismo trabalha com a conjunção esdrúxula de arcaico e moderno que a contra-revolução cristalizou, ou por outra ainda, com o resultado da anterior tentativa fracassada de modernização nacional. Houve um momento, pouco antes e pouco depois do golpe, em que ao menos para o cinema valia uma palavra de ordem cunhada por Glauber Rocha (que parece evoluir para longe dela): “por uma estética da fome”. A ela ligam-se alguns dos melhores filmes brasileiros, Vidas Secas, Deus e o Diabo e Os Fuzis em particular. Reduzindo ao extremo, pode-se dizer que o impulso desta estética é revolucionário. O artista buscaria a sua força e modernidade na etapa presente da vida nacional, e guardaria quanta independência fosse possível em face do aparelho tecnológico e econômico, em última análise sempre orientado pelo inimigo. A direção tropicalista é inversa: registra, do ponto de vista da vanguarda e da moda internacionais, com seus pressupostos econômicos, como coisa aberrante, o atraso do país. No primeiro caso, a técnica é politicamente dimensionada. No segundo, o seu estágio internacional é o parâmetro aceito da infelicidade nacional: nós, os atualizados, os articulados com o circuito do capital, falhada a tentativa de modernização social feita de cima, reconhecemos que o absurdo é a alma do país é a nossa. A noção de uma “pobreza brasileira”, que vitima igualmente a pobres e ricos – própria do tropicalismo – resulta de uma generalização semelhante. Uns índios num descampado miserável, filmados em tecnicolor humorístico, uma cristaleira no meio da auto-estrada asfaltada, uma festa grã-fina, afinal de contas provinciana, – em tudo estaria a mesma miséria. Esta noção de pobreza não é evidentemente a dos pobres, para quem falta de comida e de estilo não podem ser vexames equivalentes. Passemos entretanto à outra questão: qual o fundamento histórico da alegoria tropicalista? Respondendo, estaríamos explicando também o interesse verdadeiramente notável que estas imagens têm, que ressalta de modo ainda mais surpreendente se ocorre serem parte de uma obra medíocre. A coexistência do antigo e do novo é um fato geral (e sempre sugestivo) de todas as sociedades capitalistas e de muitas outras também. Entretanto, para os países colonizados e depois subdesenvolvidos, ela é central e tem força de emblema. Isto porque estes países foram incorporados ao mercado mundial – ao mundo moderno – na qualidade de econômica e socialmente atrasados, de fornecedores de matéria prima e trabalho barato. A sua ligação ao novo se faz através, estruturalmente através de seu atraso social, que se reproduz em lugar de se extingüir.4 Na composição insolúvel mas funcional dos dois termos, portanto, está figurado um destino nacional, que dura desde os inícios. aliás, cultivando a “latinoamericanidade” – em que tenuemente ressoa o caráter continental da revolução – o que no Brasil de fala portuguesa é raríssimo, os tropicalistas mostram que têm consciência do alcance de seu estilo. De fato, uma vez assimilado este seu modo de ver, o conjunto da América Latina é tropicalista. Por outro lado, a generalidade deste esquema é tal, que abraça todos os países do continente em todas as suas etapas históricas – o que poderia parecer um defeito. O que dirá do Brasil de 64 uma fórmula igualmente aplicável, por exemplo, ao século XIX argentino? Contudo, porque o tropicalismo é alegórico, a falta de especificação não lhe é fatal (seria, num estilo simbólico). Se no símbolo, esquematicamente, forma e conteúdo são indissociáveis, se o símbolo é “aparição sensível” e por assim dizer natural da idéia, na alegoria e a relação entre a idéia e as imagens que devem suscitá-la é externa e do domínio da convenção. Significando uma idéia abstrata com que nada têm a ver, os elementos de uma alegoria não são transfigurados artisticamente: persistem na sua materialidade documental, são como que escolhos da história real, que é a sua profundidade.5 Assim, é justamente no esforço de encontrar matéria sugestiva e datada – com a qual alegorizam a “idéia” intemporal de Brasil – que os tropicalistas têm o seu melhor resultado. Daí o caráter de inventário que têm filmes, peças e canções tropicalistas, que apresentam quanta matéria possam, para que esta sofra o processo de ativação alegórica. Produzido o anacronismo – com seu efeito convencionalizado, de que isto seja Brasil – os ready mades do mundo patriarcal e do consumo imbecil põem-se a significar por conta própria, em estado indecoroso, não estetizado, sugerindo infinitamente as suas histórias abafadas, frustradas, que não chegaremos a conhecer. A imagem tropicalista encerra o passado na forma de males ativos ou ressuscitáveis, e sugere que são nosso destino, razão pela qual não cansamos de olhá-la. Creio que este esquema vigora mesmo quando a imagem é cômica à primeira vista.6

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Comentando algumas casas posteriores a 64, construídas por arquitetos avançados, um crítico observou que eram ruins de morar porque a sua matéria, principalmente o concreto aparente, era muito bruta, e porque o espaço estava excessivamente retalhado e racionalizado, sem proporção com as finalidades de uma casa particular. Nesta desproporção, entretanto, estaria a sua honestidade cultural, o seu testemunho histórico. Durante os anos desenvolvimentistas, ligada a Brasília e às esperanças do socialismo, havia maturado a consciência do sentido coletivista da produção arquitetônica. Ora, para quem pensara na construção racional e barata, em grande escala, no interior de um movimento de democratização nacional, para quem pensara no labirinto das implicações econômico-políticas entre tecnologia e imperialismo, o projeto para uma casa burguesa é inevitavelmente um anti-climax.7 Cortada a perspectiva política da arquitetura, restava entretanto a formação intelectual que ela dera aos arquitetos, que iriam torturar o espaço, sobrecarregar de intenções e experimentos as casinhas que os amigos recém-casados, com algum dinheiro, às vezes lhes encomendavam. Fora de seu contexto adequado, realizando-se em esfera restrita e na forma de mercadoria, o racionalismo arquitetônico transforma-se em ostentação de bom-gosto – incompatível com a sua direção profunda – ou em símbolo moralista e inconfortável da revolução que não houve. Este esquema, aliás, com mil variações embora, pode-se generalizar para o período. O processo cultural, que vinha extravasando as fronteiras de classe e o critério mercantil, foi represado em 64. As soluções formais, frustrado o contato com os explorados, para o qual se orientavam, foram usadas em situação e para um público a que não se destinavam, mudando de sentido. De revolucionárias passaram a símbolo vendável da revolução. Foram triunfalmente acolhidas pelos estudantes e pelo público artístico em geral. As formas políticas, a sua atitude mais grossa, engraçada e didática, cheias do óbvio materialista que antes fora de mau-tom, transformavam-se em símbolo moral da política, e era este o seu conteúdo forte. O gesto didático, apesar de muitas vezes simplório e não ensinando nada além do evidente à sua platéia culta – que exista imperialismo, que a justiça é de classe – vibrava como exemplo, valorizava o que à cultura confinada não era permitido: o contato político com o povo. Formava-se assim um comércio ambíguo que de um lado vendia indulgências afetivo-políticas à classe média mas do outro consolidava a atmosfera ideológica de que falamos no início. A infinita repetição de argumentos, conhecidos de todos – nada mais redundante, a primeira vista, que o teatro logo em seguida ao golpe – não era redundante: ensinava que as pessoas continuavam lá e não haviam mudado de opinião, que com jeito se poderia dizer muita coisa, que era possível correr um risco. Nestes espetáculos, a que não comparecia a sombra de um operário, a inteligência identificava-se com os oprimidos e reafirmava-se em dívida com eles, em quem via a sua esperança. Davam-se combates imaginários e vibrantes à desigualdade, à ditadura e aos E.U.A. Firmava-se a convicção de que vivo e poético, hoje, é o combate ao capital e ao imperialismo. Daí a importância dos gêneros públicos, de teatro, afiches, música popular, cinema e jornalismo, que transformavam este clima em comício e festa, enquanto a literatura propriamente saía do primeiro plano. Os próprios poetas sentiam assim. Num debate público recente, um acusava outro de não ter um verso capaz de levá-lo à cadeia. Esta procuração revolucionária que a cultura passava a si mesma e sustentou por algum tempo não ia naturalmente sem contradições. Algumas podem ser vistas na evolução teatral do período.

A primeira resposta do teatro ao golpe foi musical, o que já era um achado. No Rio de Janeiro, Augusto Boal – diretor do Teatro de Arena de S. Paulo, o grupo que mais metódica e prontamente se reformulou – montava o show Opinião. Os cantores, dois de origem humilde e uma estudante de Copacabana, entremeavam a história de sua vida com canções que calhassem bem. Neste enredo, a música resultava principalmente como resumo, autêntico, de uma experiência social, como a opinião que todo cidadão tem o direito de formar e cantar, mesmo que a ditadura não queira. Identificavam-se assim para efeito ideológico a música popular – que é com o futebol a manifestação chegada ao coração brasileiro – e a democracia, o povo e a autenticidade, contra o regime dos militares. O sucesso foi retumbante. De maneira menos inventiva o mesmo esquema liberal, de resistência à ditadura, servia a outro grande sucesso, Liberdade, Liberdade, no qual era apresentada uma antologia ocidental de textos libertários, de VI a.C. a XX A.D. Apesar do tom quase cívico destes dois espetáculos, de conclamação e encorajamento, era inevitável um certo mal-estar estético e político diante do total acordo que se produzia entre palco e platéia. A cena não estava adiante do público. Nenhum elemento da crítica ao populismo fora absorvido. A confirmação recíproca e o entusiasmo podiam ser importantes e oportunos então, entretanto era verdade também que a esquerda vinha de uma derrota, o que dava um traço indevido de complacência ao delírio do aplauso. Se o povo é corajoso e inteligente, por que saiu batido? E se foi batido, por que tanta congratulação? Como veremos, a falta de resposta política a esta questão viria a transformar-se em limite estético do Teatro de Arena. Redundante neste ponto, Opinião era novo noutros aspectos. Seu público era muito mais estudantil que o costumeiro, talvez por causa da música, e portanto mais politizado e inteligente. Daí em diante, graças também ao contato organizado com os grêmios escolares, esta passou a ser a composição normal da platéia do teatro de vanguarda. Em conseqüência aumentou o fundo comum de cultura entre palco e espectadores, o que permitia alusividade e agilidade, principalmente em política, antes desconhecidas. Se em meio à suja tirada de um vilão repontavam as frases do último discurso presidencial, o teatro vinha abaixo de prazer. Essa cumplicidade tem, é certo, um lado fácil e tautológico; mas cria o espaço teatral – que no Brasil o teatro comercial não havia conhecido – para o argumento ativo, livre de literatice. De modo geral aliás, o conteúdo principal deste movimento terá sido uma transformação de forma, a alteração do lugar social do palco. Em continuidade com o teatro de agitação da fase Goulart, a cena e com ela a língua e a cultura foram despidas de sua elevação “essencial”, cujo aspecto ideológico, de ornamento das classes dominantes, estava a nu. Subitamente, o bom teatro que durante anos discutira em português de escola o adultério, a liberdade, a angústia, parecia recuado de uma era. Estava feita uma espécie de revolução brechtiana, a que os ativistas da direita, no intuito de restaurar a dignidade das artes, responderam arrebentando cenários e equipamentos, espancando atrizes e atores. Sem espaço ritual, mas com imaginação – e também sem grande tradição de métier e sem atores velhos – o teatro estava próximo dos estudantes; não havia abismo de idade, modo de viver ou formação. por sua vez, o movimento estudantil vivia o seu momento áureo, de vanguarda política do país. Esta combinação entre a cena “rebaixada” e um público ativista deu momentos teatrais extraordinários, e repunha na ordem do dia as questões do didatismo. Em lugar de oferecer aos estudantes a profundidade insondável de um texto belo ou de um grande ator, o teatro oferecia-lhes uma coleção de argumentos e comportamentos bem pensados, para imitação, crítica ou rejeição. A distância entre o especialista e o leigo diminuíra muito. Digredindo, é um exemplo de que a democratização, em arte, não passa por barateamento algum, nem pela inscrição das massas numa escola de arte dramática; passa por transformações sociais e de critério, que não deixam intocados os têrmos iniciais do problema. Voltando: nalguma parte Brecht recomenda aos atores que recolham e analisem os melhores gestos que pudessem observar, para aperfeiçoar e devolvê-los ao povo, de onde vieram. a premissa deste argumento, em que a arte e vida estão conciliadas, é que o gesto exista no palco assim como fora dele, que a razão de seu acerto não esteja somente na forma teatral que o sustenta. O que é bom na vida aviva o palco, e vice-versa. Ora, se a forma artística deixa de ser o nervo exclusivo do conjunto, é que ela aceita os efeitos da estrutura social (ou de um movimento) – a que não mais se opõe no essencial – como equivalentes aos seus. Em conseqüência há distensão formal, e a obra entra em acordo com o seu público; poderia diverti-lo e educá-lo, em lugar de desmenti-lo todo o tempo. Estas especulações, que derivam do idílio que Brecht imaginara para o teatro socialista na R.D.A., dão uma idéia do que se passava no Teatro de Arena, – onde a conciliação era viabilizada pelo movimento estudantil ascendente. A pesquisa do que seja atraente, vigoroso e divertido, ou desprezível – para uso da nova geração – fez a simpatia extraordinária dos espetáculos do Arena desta fase. Zumbi, um musical em que se narra uma fuga e rebelião de escravos, é um bom exemplo. Não sendo cantores nem dançarinos, os atores tiveram que desenvolver uma dança e um canto ao alcance prático do leigo, que entretanto tivessem graça e interesse. Ao mesmo tempo impedia-se que as soluções encontradas aderissem ao amálgama singular de ator e personagem: cada personagem era feita por muitos atores, cada ator fazia muitas personagens, além do que a personagem principal era o coletivo. Assim, para que se pudessem retomar, para que o ator pudesse ora ser protagonista, ora massa, as caracterizações eram inteiramente objetivadas, isto é, socializadas, imitáveis. Os gestos poderiam ser postos e tirados, como um chapéu, e portanto adquiridos. O espetáculo era verdadeira pesquisa e oferenda das maneiras mais sedutoras de rolar e embolar no chão, de erguer um braço, de levantar depressa, de chamar, de mostrar decisão, mas também das maneiras mais ordinárias que têm as classes dominantes de mentir, de mandar em seus empregados ou de assinalar, mediante um movimento peculiar da bunda, a sua importância social. Entretanto, no centro de sua relação com o público – o que só lhe acrescentou o sucesso – Zumbi repetia a tautologia de Opinião: a esquerda derrotada triunfava sem crítica, numa sala repleta, como se a derrota não fosse um defeito. Opinião produzira a unanimidade da platéia através da aliança simbólica entre música e povo, contra o regime. Zumbi tinha esquema análogo, embora mais complexo. A oposição entre escravos e senhores portugueses, exposta em cena, correspondia outra, constantemente aludida, entre o povo brasileiro e a ditadura pró-imperialista. Este truque expositivo, que tem a sua graça própria, pois permite falar em público do que é proibido, combinava um antagonismo que hoje é apenas moral – a questão escrava – a um antagonismo político, e capitalizava para o segundo o entusiasmo descontraído que resulta do primeiro. Mais precisamente, o movimento ia nos dois sentidos, que têm valor desigual. Uma vez, a revolta escrava era referida à ditadura; de outra, a ditadura era reencontrada na repressão àquela. Num caso o enredo é artifício para tratar de nosso tempo. A linguagem necessariamente oblíqua tem o valor de sua astúcia, que é política. Sua inadequação é a forma de uma resposta adequada à realidade policial. E a leviandade com que é tratado o material histórico – os anacronismos pululam – é uma virtude estética, pois assinala alegremente o procedimento usado e o assunto real em cena. No segundo caso, a luta entre escravos e senhores portugueses seria, já, a luta do povo contra o imperialismo. Em conseqüência apagam-se as distinções históricas – as quais não tinham importância se o escravo é artifício, mas têm agora, se ele é origem – e valoriza-se a inevitável banalidade do lugar-comum: o direito dos oprimidos, a crueldade dos opressores; depois de 64, como ao tempo de Zumbi (sec. XVII), busca-se no Brasil a liberdade. Ora, o vago de tal perspectiva pesa sobre a linguagem, cênica e verbal, que resulta sem nervo político, orientada pela reação imediata e humanitária (não-política portanto) diante do sofrimento. Onde Boal brinca de esconde-esconde, há política; onde faz política, há exortação. O resultado artístico do primeiro movimento é bom, do segundo é ruim. Sua expressão formal acabada, esta dualidade vai encontrá-la no trabalho seguinte do Arena, o Tiradentes. Teorizando a respeito, Boal observava que o teatro hoje tanto deve criticar como entusiasmar. Em conseqüência, opera com o distanciamento e a identificação, com Brecht e Stanislavski. A oposição entre os dois, que na polêmica brechtiana tivera significado histórico e marcava a linha entre ideologia e teatro válido, é reduzida a uma questão de oportunidade dos estilos.8 De fato, em Tiradentes a personagem principal – o mártir da independência brasileira, homem de origem humilde – é apresentada através de uma espécie de gigantismo naturalista, uma encarnação mítica do desejo de libertação nacional. Em contraste as demais personagens, tanto seus companheiros de conspiração, homens de boa situação e pouco decididos, quanto os inimigos, são apresentados com distanciamento humorístico, à maneira de Brecht. A intenção é de produzir uma imagem crítica das classes dominantes, e outra, essa empolgante, do homem que dá sua vida pela causa. O resultado entretanto é duvidoso: os abastados calculam politicamente, têm noção de seus interesses materiais, sua capacidade epigramática é formidável e sua presença em cena é bom teatro; já o mártir corre desvairadamente em pós a liberdade, é desinteressado, um verdadeiro idealista cansativo, com rendimento teatral menor. O método brechtiano, em que a inteligência tem um papel grande, é aplicado aos inimigos do revolucionário; a este vai caber o método menos inteligente, o do entusiasmo. Politicamente, este impasse formal me parece corresponder a um momento ainda incompleto da crítica ao populismo. Qual a composição social e de interesses do movimento popular? Esta é a pergunta a que o populismo responde mal. Porque a composição das massas não é homogênea, parece-lhe que mais vale uní-las pelo entusiasmo que separá-las pela análise crítica de seus interesses. Entretanto, somente através desta crítica surgiriam os verdadeiros temas do teatro político: as alianças e os problemas de organização, que deslocam noções como sinceridade e entusiasmo para fora do campo do universalismo burguês. Por outro lado, isto não quer dizer que chegando a estes assuntos o teatro vá melhorar. Talvez nem seja possível encená-lo. É verdade também que os melhores momentos do Arena estiveram ligados à sua limitação ideológica, à simpatia incondicional pelo seu público jovem, cujo senso de justiça, cuja impaciência, que têm certamente valor político, fizeram indevidamente as vezes de interesse revolucionário puro e simples. Em fim de contas, é um desencontro comum em matéria artística: a experiência social empurra o artista para as formulações mais radicais e justas, que se tornam por assim dizer obrigatórias, sem que daí lhes venha, como a honra ao mérito, a primazia qualitativa.9 Mas não procurá-las conduz à banalização.

Também à esquerda, mas nos antípodas do Arena, e ambíguo até a raiz do cabelo, desenvolvia-se o Teatro Oficina, dirigido por José Celso Martinez Corrêa. Se o Arena herdara da fase Goulart o impulso formal, o interesse pela luta de classes, pela revolução, e uma certa limitação populista, o Oficina ergueu-se a partir da experiência interior da desagregação burguêsa em 64. Em seu palco esta desagregação repete-se ritualmente, em forma de ofensa. Os seus espetáculos fizeram história, escândalo e enorme sucesso em São Paulo e Rio, onde foram os mais marcantes dos últimos anos. Ligavam-se ao público pela brutalização, e não como o Arena, pela simpatia; e seu recurso principal é o choque profanador, e não o didatismo. A oposição no interior do teatro engajado não podia ser mais completa. Sumariamente, José Celso argumentaria da forma seguinte: se em 64 a pequena burguesia alinhou com a direita ou não resistiu, enquanto a grande se aliava ao imperialismo, todo consentimento entre e platéia é um erro ideológico e estético.10 É preciso massacra-la. Ela, por outro lado, gosta de ser massacrada ou ver massacrar, e assegura ao Oficina o mais notável êxito comercial. É o problema deste teatro. Para compreendê-lo, convém lembrar que nesse mesmo tempo se discutiu muito a perspectiva do movimento estudantil: seria determinada por sua origem social, pequeno-burguesa, ou representa uma função social peculiar – em crise – com interesses mais radicais? O Arena adota esta segunda resposta, em que funda a sua relação política e positiva coma platéia; em decorrência os seus problemas são novos, antecipando sobre o teatro numa sociedade revolucionária; mas têm também um traço de voto-pio, pois o suporte real desta experiência são os consumidores que estão na sala, pagando e rindo, em plena ditadura. O Oficina, que adotou na prática a primeira resposta, põe sinal negativo diante da platéia em bloco, sem distinções. Paradoxalmente, o seu êxito entre os estudantes, em especial entre aqueles a que o resíduo populista do Arena irritava, foi muito grande; estes não se identificavam com a platéia, mas com o agressor. De fato, a hostilidade do Oficina era uma resposta radical, mais radical que a outra, à derrota de 64; mas não era uma resposta política. Em conseqüência, apesar da agressividade, o seu palco representa um passo atrás: é moral e interior à burguesia, reatou com a tradição pré-brechtiana, cujo espaço dramático é a consciência moral das classes dominantes. Dentro do recuo, entretanto, houve evolução, mesmo porque historicamente a repetição não existe: a crise burguesa, depois do banho de marxismo que a intelectualidade tomara, perdeu todo crédito, e é repetida como uma espécie de ritual abjeto, destinado a tirar ao público o gosto de viver. Cristalizou-se o sentido moral que teria, para a faixa de classe média tocada pelo socialismo, a reconversão ao horizonte burguês. Entre parêntesis, esta crise tem já sua estabilidade, e alberga uma população considerável de instalados. Voltando, porém: com violência desconhecida – mas autorizada pela moda cênica internacional, pelo prestígio da chamada desagregação da cultura européia, o que exemplifica as contradições do imperialismo neste campo – o Oficina atacava as idéias e imagens usuais da classe média, os seus instintos e sua pessoa física. O espectador da primeira fila era agarrado e sacudido pelos atores, que insistem para que ele “compre!”. No corredor do teatro, a poucos centímetros do nariz do público, as atrizes disputam, estraçalham e comem um pedaço de fígado cru, que simboliza o coração de um cantor milionário da TV, que acaba de morrer. A pura noiva do cantor, depois de prostituir-se, é coroada rainha do rádio e da televisão; a sua figura, de manto e coroa, é a da Virgem. Etc. Auxiliado pelos efeitos de luz, o clima destas cenas é de revelação, e o silêncio na sala é absoluto. Por outro lado, é claro também o elaborado mau-gosto, evidentemente intencional, de pasquim, destas construções “terríveis”. Terríveis ou “terríveis”? Indignação moral ou imitação maligna? Imitação e indignação, levadas ao extremo, transformam-se uma na outra, uma guinada de grande efeito teatral, em que se encerra e expõe com força artística uma posição política. A platéia, por sua vez, choca-se três, quatro, cinco vezes com a operação, e em seguida fica deslumbrada, pois não esperava tanto virtuosismo onde supusera uma crise. Este jogo, em que a última palavra é sempre do palco, esta corrida no interior de um círculo de posições insustentáveis, é talvez a experiência principal proporcionada pelo Oficina. De maneira variada, ela se repete e deve ser analisada. Nos exemplos que dei, combinam-se dois elementos de alcance e lógica artística diferentes. Tematicamente são imagens de um naturalismo de choque, caricato e moralista: dinheiro, sexo, e nada mais. Estão ligadas contudo a uma ação direta sobre o público. Este segundo elemento não se esgota na intenção explícita com que foi usado, de romper a carapaça da platéia, para que a crítica a possa atingir efetivamente. Seu alcance cultural é muito maior, e difícil de medir por enquanto. Tocando o espectador, os atores não desrespeitam somente a linha entre palco e platéia, como também a distância física que é de regra entre estranhos, e sem a qual não subsiste a nossa noção de individualidade. A colossal excitação e o mal-estar que se apossam da sala vêm, aqui, do risco de generalização: se todos se tocassem? Também nos outros dois exemplos violam-se tabus. Por sua lógica, a qual vem sendo desenvolvida ao que parece pelo Living Theater, estes experimentos seriam libertários, e fazem parte de um movimento novo, em que imaginação e prática, iniciativa artística e reação do público estão consteladas de maneira também nova. No Oficina, contudo, são usados como insulto. O espectador é tocado para que mostre o seu medo, não seu desejo. É fixada a sua fraqueza, e não o seu impulso. Se acaso não ficar intimidado e tocar uma atriz por sua vez, causa desarranjo na cena, que não está preparada para isto. ao que pude observar, passa-se o seguinte: parte da platéia identifica-se ao agressor, às expensas do agredido. Se alguém, depois de agarrado, sai da sala, a satisfação dos que ficam é enorme. A dessolidarização diante do massacre, a deslealdade criada no interior da platéia são absolutas, e repetem o movimento iniciado pelo palco. Origina-se uma espécie de competição, uma espiral de dureza em face dos choques sempre renovados, em que a própria intenção política e libertária que um choque possa ter se perde e se inverte. As situações não valem por si, mas como parte de uma prova geral de força, cujo ideal está na capacidade indefinida de se desidentificar e de identificar-se ao agressor coletivo. É disto que se trata, mais talvez que da superação de preconceitos. Por seu conteúdo, este movimento é desmoralizante ao extremo; mas como estamos no teatro, ele é também imagem, donde a sua força crítica. O que nele se figura, critica e exercita é o cinismo da cultura burguêsa diante de si mesma. Sua base formal, aqui, é a sistematização do choque, o qual de recurso passou a princípio construtivo. Ora, a despeito e por causa de sua intenção predatória, o choque sistematizado tem compromisso essencial com a ordem estabelecida na cabeça de seu público, o que é justamente o seu paradoxo como forma artística. Não tem linguagem própria, tem que emprestá-la sempre de sua vítima, cuja estupidez é a carga de explosivo com que ele opera. Como forma, no caso, o choque responde à desesperada necessidade de agir, de agir diretamente sobre o público; é uma espécie de tiro cultural. Em conseqüência os seus problemas são do domínio da manipulação psicológica, da eficácia – a comunicação é procurada, como na publicidade, pela titilação de molas secretas – problemas que não são artísticos no essencial. Quem quer chocar não fala ao vento, a quem entretanto todo artista fala um pouco. E quem faz política, não quer chocar… Em suma, a distância entre palco e platéia está franqueada, mas numa só direção. Esta desigualdade, que é uma deslealdade mais ou menos consentida, não mais corresponde a qualquer prestígio absoluto de teatro e cultura, nem por outro lado a uma relação propriamente política. Instalando-se no descampado que é hoje a ideologia burguêsa, o Oficina inventa e explora jogos apropriados ao terreno, torna habitável, nauseabundo e divertido o espaço do nihilismo de após-64. Como então afirmar que este teatro conta à esquerda? É conhecido o “pessimismo de olé” da República de Weimar, o Jucheepessimismus, que ao enterrar o liberalismo teria prenunciado e favorecido o fascismo. Hoje, dado o panorama mundial, a situação talvez esteja invertida. Ao menos entre intelectuais, em terra de liberalismo calcinado parece que nasce ou nada ou vegetação de esquerda. O Oficina foi certamente parte nesta campanha pela terra arrasada.

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Em seu conjunto, o movimento cultural destes anos é uma espécie de floração tardia, o fruto de dois decênios de democratização, que veio amadurecer agora, em plena ditadura, quando as suas condições sociais já não existem, contemporâneo dos primeiros ensaios de luta armada no país. A direita cumpre a tarefa inglória de lhe cortar a cabeça: os seus melhores cantores e músicos estiveram presos e estão no exílio, os cineastas brasileiros filmam em Europa e África, professores e cientistas vão embora, quando não vão para a cadeia. Mas, também à esquerda a sua situação é complicada, pois se é próprio do movimento cultural contestar o poder, não tem como tomá-lo. De que serve a hegemonia ideológica, se não se traduz em força física imediata? ainda mais agora, quando é violentíssima a repressão tombando sobre os militantes. Se acrescentarmos a enorme difusão da ideologia guerreira e voluntarista, começada com a guerrilha boliviana, compreende-se que seja baixo o prestígio da escrivaninha. Pressionada pela direita e pela esquerda, a intelectualidade entra em crise aguda. O tema dos romances e filmes políticos do período é, justamente, a conversão do intelectual à militância.11 Se a sua atividade, tal como historicamente se definiu no país, não é mais possível, o que lhe resta senão passar à luta diretamente política? Nos meses que se passaram entre as primeiras linhas deste panorama e a sua conclusão, o expurgo universitário prosseguiu, e foi criada a censura prévia de livros, a fim de obstar à pornografia. A primeira publicação enquadrada foi a última em que ainda se manifestava, muito seletiva e dubiamente, o espírito crítico no país; o seminário Pasquim.12 Noutras palavras, a impregnação política e nacional da cultura, que é uma parte grande da sua importância, deverá ceder o passo a outras orientações. Em conseqüência ouve-se dizer que a Universidade acabou, cinema e teatro idem, demissão coletiva de professores etc. Estas expressões, que atestam a coerência pessoal de quem as utiliza, contêm um erro de fato: as ditas instituições continuam, embora muito controladas. E mais, é pouco provável que por agora o governo consiga transformá-la substancialmente. O que a cada desaperto policial se viu, em escala nacional, de 64 até agora, foi a maré fantástica da insatisfação popular; calado a força, o país está igual, onde Goulart o deixara, agitável como nunca. A mesma permanência talvez valha para a cultura, cujas molas profundas são difíceis de trocar. De fato, a curto prazo a opressão policial nada pode além de paralisar, pois não se fabrica um passado novo de um dia para o outro. Que chance têm os militares de tornar ideologicamente ativas as suas posições? Os pró-americanos, que estão no poder, nenhuma; a subordinação não inspira o canto, e mesmo se conseguem dar uma solução de momento à economia, é ao preço de não transformarem o país socialmente; nestas condições, de miséria numerosa e visível, a ideologia do consumo será sempre um escárnio. A incógnita estaria com os militares nacionalistas, que para fazerem frente aos Estados Unidos teriam que levar a cabo alguma reforma, que lhes desse apoio popular, como no Peru. É onde aposta o P.C. Por outro lado, os militares peruanos parecem não apreciar o movimento de massas… Existe contudo uma presença cultural mais simples, de efeito ideológico imediato, que é a presença física. É um fato social talvez importante que os militares estejam entrando em massa para vida civil, ocupando cargos na administração pública e privada. Na província começam a entrar também para o ensino universitário, em disciplinas técnicas. Esta presença difusa dos representantes da ordem altera o clima cotidiano da reflexão. Onde anteriormente o intelectual conversava e pensava durante anos, sem sofrer o confronto da autoridade, a qual só de raro em raro o tornava responsável por sua opinião, e só a partir de seus efeitos, hoje é provável que um de seus colegas seja militar. A longo prazo esta situação leva os problemas da vida civil para dentro das Forças Armadas. De imediato, porém, traz a autoridade destas para dentro do dia a dia. Nestas circunstâncias, uma fração da intelectualidade contrária à ditadura, ao imperialismo e ao capital vai dedicar-se à revolução, e parte restante, sem mudar de opinião, fecha a boca, trabalha, luta em esfera restrita e espera por tempos melhores. Naturalmente há defecções, como em abril de 64, quando o empuxe teórico do golpe levou um batalhão de marxistas acadêmicos a converterem-se ao estruturalismo. Um caso interessante de adesão artística à ditadura é o de Nelson Rodrigues, um dramaturgo de grande reputação. Desde meados de 68 este escritor escreve diariamente uma crônica em dois grandes jornais de São Paulo e Rio, em que ataca o clero avançado, o movimento estudantil e a intelectualidade de esquerda. Vale a pena mencioná-lo, pois tendo recursos literários e uma certa audácia moral, paga integral e explicitamente – em abjeção – o preço que hoje o capital cobra de seus lacaios literários. Quando começou a série, é fato que produzia suspense na cidade: qual a canalhice que Nelson Rodrigues teria inventado para esta tarde? Seu recurso principal é a estilização da calúnia. Por exemplo, vai à meia-noite a um terreno baldio, ao encontro de uma cabra e de um padre de esquerda, o qual nesta oportunidade lhe revela as razões verdadeiras e inconfessáveis de sua participação política; e conta-lhe também que D. Helder suporta mal o inalcançável prestígio de Cristo. Noutra crônica, afirma de um conhecido adversário católico da ditadura, que não pode tirar o sapato. Por quê? Porque apareceria o seu pé de cabra. Ect. A finalidade cafajeste da fabulação não é escondida, pelo contrário, é nela que está a comicidade do recurso. Entretanto, se é transformada em método e voltada sempre contra os mesmos adversários – contra os quais a polícia também investe – a imaginação abertamente mentirosa e mal-intencionada deixa de ser uma blague, e opera a liquidação, o suicídio da literatura: como ninguém acredita nas razões da direita, mesmo estando com ela, é desnecessário argumentar e convencer. Há uma certa adequação formal, há verdade sociológica nesta malversação de recursos literários: ela registra, com vivacidade, o vale-tudo em que entrou a ordem burguesa no Brasil. – Falamos longamente da cultura brasileira. Entretanto, com regularidade amplitude, ela não atingirá 50.000 pessoas, num país de 90 milhões. É certo que não lhe cabe a culpa do imperialismo e da sociedade de classes. Contudo, sendo uma linguagem exclusiva, é certo também que, sob este aspecto ao menos, contribui para a consolidação do privilégio. Por razões históricas, de que tentamos um esboço, ela chegou a refletir a situação dos que ela exclui, e tomou o seu partido. Tornou-se um abcesso no interior das classes dominantes. É claro que na base de sua audácia estava a sua impunidade. Não obstante, houve audácia, a qual convergindo com a movimentação populista num momento, e com a resistência popular à ditadura noutro, produziu a cristalização de uma nova concepção do país. Agora, quando o Estado burguês – que nem o analfabetismo conseguiu reduzir, que não organizou escolas passáveis, que não generalizou o acesso à cultura, que impediu o contato entre os vários setores da população – cancela as próprias liberdades civis, que são o elemento vital de sua cultura, esta vê nas forças que tentam derrubá-lo a sua esperança. Em decorrência, a produção cultural submete-se ao infra-vermelho da luta de classes, cujo resultado não é lisonjeiro. A cultura é aliada natural da revolução, mas esta não será feita para ela e muito menos para os intelectuais. É feita, primariamente, a fim de expropriar os meios de produção e garantir trabalho e sobrevivência digna aos milhões e milhões de homens que vivem na miséria. Que interesse terá a revolução nos intelectuais de esquerda, que eram muito mais anti-capitalistas elitários que propriamente socialistas? Deverão transformar-se, reformular as suas razões, que entretanto haviam feito deles aliados dela. A História não é uma velhinha benigna. Uma figura tradicional da literatura brasileira deste século é o “fazendeiro do ar”13: o homem que vem da propriedade rural para a cidade, onde recorda, analisa e critica, em prosa e verso, o contato com a terra, com a família, com a tradição e com o povo, que o latifúndio lhe possibilitara. É a literatura da decadência rural. Em Quarup, o romance ideologicamente mais representativo para a intelectualidade de esquerda recente, o itinerário é o oposto: um intelectual, no caso um padre, viaja geográfica e socialmente o país, despe-se de sua profissão e posição social, à procura do povo, em cuja luta irá se integrar – com sabedoria literária – num capítulo posterior ao último livro.

  1. Animalia, de G. Guarnieri.
  2. Para um apanhado histórico das origens da crise de 64, ver R. M. Marini, “Contradições no Brasil Contemporâneo”, in Revista Teoria e Prática, S. Paulo, 1968, nº 3. Para as limitações da burguesia nacional e para a estrutura do poder populista ver respectivamente os trabalhos de F. H. Cardoso e F. C. Weffort, in Les Temps Modernes, outubro de 1967.
  3. Nos casos em que o elemento “antiquado” é recentíssimo e internacional – os hábitos néo-fósseis da sociedade dita de consumo – o Tropicalismo coincide simplesmente com formas do pop.
  4. Para uma exposição ampla destas noções, ver Gunder Frank, Le développement du sous-développement, e Capitalisme et sous-développement.
  5. Idéia e vocabulário são emprestados aqui ao estudo de Walter Benjamin sobre o drama barroco alemão, em que se teoriza a respeito da alegoria.
  6. Alguns representantes desta linha são, para a música, Gilberto Gil e Caetano Veloso; para o teatro José Celso Martinez Correia, com o Rei da Vela e Roda viva; no cinema há elementos de Tropicalismo em Macunaíma de Joaquim Pedro, Os Herdeiros de Carlos Diegues, Brasil ano 2000 de Walter Lima Jr., Terra em Transe e Antonio das Mortes de Glauber Rocha.
  7. Sergio Ferro Pereira, “Arquitetura Nova”, in Revista Teoria e Prática nº 1, S. Paulo, 1967.
  8. Prefácio a Tiradentes. A peça é de G. Guarnieri e A. Boal. Para uma discussão detalhada desta teoria ver A. Rosenfeld, “Heróis e Coringas”, em Teoria e Prática, nº 2.
  9. Este argumento é desenvolvido por Adorno, em seu ensaio sobre os critérios da música nova, quando confronta Schönberg e Webern, in Klangfiguren, Suhrkamp Verlag.
  10. Numa entrevista traduzida em Partisans nº 46 (Paris, Maspero), José Celso explica: “Enfim, é uma relação de luta, uma luta entre os atores e o público. (…) A peça o agride intelectualmente, formalmente, sexualmente, politicamente. Quer dizer que ela qualifica o espectador de cretino, reprimido e reacionário. E nós mesmos também entramos neste banho” (pg. 75). “Se tomamos este público em seu conjunto, a única possibilidade de submetê-lo a uma ação política eficaz reside na destruição de seus mecanismos de defesa, de todas as suas justificações maniqueístas e historicistas (incluso quando elas se apoiam em Gramsci, Lukács e outros). Trata-se de pô-lo em seu lugar, de reduzi-lo a zero. O público representa uma ala mais ou menos privilegiada deste país, a ala que beneficia, ainda que mediocremente, de toda a falta de história e de toda a estagnação deste gigante adormecido que é o Brasil. O teatro tem necessidade hoje de desmistificar, de colocar este público em seu estado original, frente a frente com a sua grande miséria, a miséria do pequeno privilégio obtido em troca de tantas concessões, tantos oportunismos, tantas castrações, tantos recalques, em troca de toda a miséria de um povo. O que importa é deixar este público em estado de nudez total, sem defesa, e incitá-lo à iniciativa, à criação de um caminho novo, inédito, fora de todos os oportunismos estabelecidos (que sejam ou não batizados de marxistas). A eficácia política que se pode esperar do teatro no que diz respeito a este setor (pequena burguesia) só pode estar na capacidade de ajudar as pessoas a compreender a necessidade da iniciativa individual, a iniciativa que levará cada qual a jogar a sua própria pedra contra o absurdo brasileiro”. “Em relação a este público, que não vai se manifestar enquanto classe, a eficácia política de uma peça mede-se menos pela justeza de um critério sociológico dado que pelo seu nível de agressividade. Entre nós, nada se faz com liberdade, e a culpa no caso não é só da censura”.
  11. Pessach, a travessia, romance de Carlos Heitor Cony (Ed. Civilização Brasileira); Quarup, romance de Antonio Callado (E.C.B.); Terra em Transe, filme de Glauber Rocha; O Desafio, filme de Paulo Cesar Sarraceni. É interessante notar que o enrêdo da conversão resulta mais político e artisticamente limpo se o seu centro não é o intelectual, mas o soldado e o camponês, como em Os Fuzis, de rui Guerra, Deus e o Diabo, de Glauber Rocha ou Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Nestes casos, a desproporção fantasmal das crises morais fica objetivada ou desaparece, impedindo a trama de emaranha-se no inessencial.
  12. O Pasquim não foi fechado. Fica o erro sem corrigir, em homenagem aos numerosos falsos alarmes que atormentavam o cotidiano da época.
  13. Título de um livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade.
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