Eubioticamente atraídos

é proibido proibir os baianos

é proibido proibir os baianos

Visões Brasileiras

É proibido proibir
Augusto de Campos
Extraído de Balanço da bossa e outras bossas, Editora Perspectiva, 1993
Publicado originalmente em 1968

Nem todos estão entendendo a atuação do grupo da Tropicália (prefiro falar em Tropicália, em vez de Tropicalismo, como sempre preferi falar em Poesia Concreta em lugar de Concretismo. “Ismo” é o sufixo preferentemente usado pelos adversários dos movimentos de renovação, para tentar historicizá-los e confiná-los. Os baianos estão usando uma metalinguagem musical, vale dizer, uma linguagem critica, através da qual estão passando em revista tudo o que se produziu musicalmente no Brasil e no mundo, para criarem conscientemente o novo, em primeira mão. Por isso seus discos são uma antiantologia de imprevistos, onde tudo pode acontecer e o ouvinte vai, de choque em choque, redescobrindo tudo e reaprendendo a “ouvir com ouvidos livres“, tal como Oswald de Andrade proclamava em seus manifestos: “ver com olhos livres“.

Os compositores e intérpretes da Tropicália nem ignoram a contribuição de João Gilberto, nem pretendem continuar, linearmente, diluindo-as, as suas criações. Eles deglutem, antropofagicamente, a informação do mais radical inovador da BN. E voltam a por em xeque e em choque toda a tradição musical brasileira, bossa-nova inclusive, em confronto com os novos dados do contexto universal. Superbomgosto e supermaugosto, o fino e o grosso, a vanguarda e a jovem guarda, berimbau e beatles, bossa e bolero são inventariados e reinventados, na compressão violenta desses discos-happenings onde até o redundante “Coração Materno” volta a pulsar com os tiros de canhão da informação nova.

É essa abertura sem reservas para o novo que é responsável também por um fato inédito em nossa música popular: a colaboração íntima com músicos eruditos de vanguarda, como Rogério Duprat, numa associação incomum mesmo no plano mundial. E que faz com que as linhas mais avançadas da música de vanguarda – música eletrônica e antimúsica – se encontrem com a música popular numa implosão informativa da qual tudo pode resultar, inclusive uma nova música, uma música ao mesmo tempo de “produção e consumo” ou de “produssumo”  como diria Décio Pignatari.

Em vez de fazer a revolução musical na epiderme temática, Gil, Caetano e seus companheiros, estão fazendo uma revolução mais profunda, que atinge a própria linguagem da música popular. Por isso mesmo eles incomodam, mais do que muitos protestistas ostensivos, logo assimilados pelo Sistema.

Em entrevista que me concedeu, disse Caetano Veloso que considerava o Tropicalismo um Neo-Antropofagismo (aludindo ao movimento da Antropofagia de Oswald de Andrade). Assim também me parece. Se quiserem buscar uma explicação “filosófica” da Tropicália, vão a Oswald, o antropófago indigesto, não engolido pelos nossos literatocratas por muitos e muitos anos, até que os poetas concretos o ressuscitassem e reeditassem, para que ele, depois de sacudir o teatro na extraordinária recriação de José Celso, pudesse chegar a explodir a bomba de suas idéias revolucionárias no consumo, pela voz de Caetano e dos baianos. “A massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico”, previa Oswald, quando os stalinistas de sua época o acusavam de não ser entendido pelo “povo”.

À Tropicália se poderia muito bem aplicar o que disse Haroldo de Campos a propósito do Manifesto Antropófago de Oswald: “uma visão brasileira do mundo sob a espécie da devoração, para uma assimilação crítica da experiência estrangeira e sua reelaboração em termos e circunstâncias nacionais, alegorizando nesse sentido o canibalismo de nossos selvagens. Não se trata aqui de um novo ‘Indianismo’, pretendido pelo grupo ‘Verde-Amarelo’, de 1926 (depois ‘Anta’), que combateu, mas na verdade diluiu os experimentos oswaldianos, transformando-os numa literatura de calungas em tecnicolor, classificada por O.A. de ‘macumba para turistas’. O índio oswaldiano não é, ele próprio o diz, o ‘índio de lata de bolacha’ sentimentalmente idealizado pelo nosso Romantismo, mas o ‘canibal’ de Montaigne (Des Cannibales), a exercer sua crítica desabusada sobre as imposturas do civilizado”. Como se vê, Oswald tinha os mesmos inimigos que os baianos de hoje: os conservadores, os stalinistas e os nacionalóides, que, no caso da música, costumo designar por duas siglas expressivas: T.F.M. e C.C.C. (Tradicional Família Musical e Comando Caça Caetano). Osso atravessado na garganta da literatura brasileira, Oswald, como os compositores da Revolucionária Família Baiana, incomodava e incomoda.

Os que querem a música “participante”, em formas conservadoras, folquilóricas, deveriam se lembrar do que disse o maior dos poetas participantes do nosso tempo, Vladimir Maiakóvski: “não pode haver arte revolucionária sem forma revolucionária”. Não adianta transformar o Che em clichê. É claro que Maiakóvski também incomodou. Desde cedo ele já satirizava os seus “inquisidores”: no poema “Aos Juízes” (1915) Maiakóvski imagina uma vida tropical paradisíaca no Peru até que, de repente, chegam os juízes com sua tábua de proibições:

Bananas, ananás! Peitos felizes.
Vinho nas vasilhas seladas…
Mas eis que de repente como praga
No Peru imperam os juizes!

Encerraram num circulo de incisos
Os pássaros, as mulheres e o riso.
Boiões de lata, os olhos dos juízes
São faíscas num monte de lixo.

Sob o olhar de um juiz, duro como um jejum,
Caiu, por acaso, um pavão laranja-azul:
Na mesma hora virou cor de carvão
A espaventosa cauda do pavão.

No Peru voavam pelas campinas
Livres os pequeninos colibris;
Os juízes apreenderam-lhes as penas
E aos pobres colibris coibiram.

Já não há mais vulcões em parte alguma,
A todo monte ordenam que se cale.
Há uma tabuleta em cada vale:
“Só vale para quem não fuma.”

Nem os meus versos escapam à censura;
São interditos, sob pena de tortura.
Classificaram-nos como bebida
Espirituosa: “venda proibida “ .

0 equador estremece sob o som dos ferros.
Sem pássaros, sem homens, o Peru esta a zero.
Somente, acocorados com rancor sob os livros,
Ali jazem, deprimidos, os juízes.

Pobres peruanos sem esperança,
Levados sem razão à galera, um por um.
Os juízes cassam os pássaros, a dança,
A mim e a vocês e ao Peru.

A luta de Maiakóvski contra os burocratas durou a vida toda. E na sua decisão de suicidar-se interferiu, seguramente, o debate que teve, pouco antes de pôr fim aos seus dias, com os estudantes do Instituto de Economia Popular da U.R.S.S. Acusado de “obscuro” e “incompreensível para os operários”, Maiakóvski exclamou então, amargurado: “Depois que eu morrer, vocês vão ler os meus versos com lágrimas de enternecimento!”

Sintoma da permanente incomodatividade dos baianos foi o que aconteceu no Festival Internacional da Canção quando das eliminatórias paulistas, no TUCA. É verdade que Caetano e Gil foram além do fato musical. E resolveram levar a sua “provocação” ao campo do comportamento físico. Até a roupa tem uma linguagem, é um sistema de signos e tem, ou pode ter, uma mensagem critica. Caetano, coerentemente com a letra de sua música, quis despertar, ao vivo, a consciência da sociedade repressiva que nos submete, ao desafiar os tabus e os preconceitos do público com as suas roupas charinizantes e a intervenção insólita do solo de uivos do americano. Da mesma forma Gil e os Mutantes, com os seus sons e roupas imprevistos. Roupas + dança agressiva + poema de Fernando Pessoa + solo de uivos + melodia + letra faziam parte de um happening, muito bem articulado no contexto musical de vanguarda de Rogério Duprat, que não funcionou como mero arranjador, mas como verdadeiro colaborador da composição ao lhe dar estruturação e elaboração final. É este o problema crucial. Enquanto muitos experimentadores “sérios” da nossa música popular continuam a explorar as dissonâncias, dentro de uma estética mais ou menos impressionista, do fim do século passado, os baianos e os Mutantes, junto com Rogério, já estão trabalhando em termos de música da atualidade, isto é, estão 50 anos à frente, pois levaram em conta o que aconteceu na primeira metade do século, de Stravinski e Webern a Stockhausen e Cage, fazendo explodir na faixa do consumo os happenings, os ruídos e os sons eletrônicos e praticando uma poesia não-linear, não-discursiva uma poesia de montagens viva e cheia de humor, poesia-câmara-na-mão, moderníssima.

Lamentavelmente, foi pífia a resposta dos jovens que compareceram ao TUCA. Eles se comportaram exatamente como a velha Condessa de Pourtalès, quando da apresentação da “Sagração da Primavera” de Stravinski, no Teatro dos Campos Elíseos em Paris, em 1913. Conta Léon Oleggini que houve então “tempestades de risos, zombarias e protestos”. E que a condessa, ofendidíssima, exclamou, agitando o leque de plumas de avestruz: “– Monsieur Astruc, é a primeira vez, em 60 anos, que alguém se atreve a zombar de mim!” Vaiado foi Stravinski, como vaiado fora Schoenberg, em Viena, em 1907, na première de sua “Sinfonia de Câmara”, como vaiado foi, antes, Debussy e vaiado seria, depois, em 1954, Eugene Varése, quando estreou “Déserts”, em Paris. E aí estão quatro dos maiores compositores modernos.

A vaia, esse tipo de vaia, se explica, do ponto de vista da Teoria da Informação. Segundo essa Teoria, que se ocupa da comunicação como um sistema de signos, a mensagem musical oscila numa dialética entre banalidade e originalidade, previsibilidade e imprevisibilidade, redundância e informação. O ouvinte, que recebe a mensagem, está precondicionado por um conjunto de conhecimentos apriorísticos, que constituem o código de convenções com o qual ele afere e confere a mensagem. Código baseado na redundância, na previsibilidade. Daí o choque e a reação irada, quase sempre irracional, quando a mensagem, pela sua novidade e imprevisto, não confere com o código do ouvinte. Mas a informação, o conhecimento novo, só podem existir na medida em que esse código e violado. É a missão dos artistas informativos, os inovadores, contrariar o código de convenções do ouvinte, para forçar o seu amadurecimento criativo, aumentar o seu repertório de informações e enriquecê-lo. Em síntese, o artista dinamita o código dinamiza o sistema. Caetano, Gil e os Mutantes tiveram a inteligência e a coragem de lançar mais esse desafio, e de romper, deliberadamente, com a própria estrutura de Festival, dentro da qual os compositores tudo fazem para agradar o público, buscando na subserviência ao código de convenções do ouvinte a indulgência e a aprovação para as suas músicas “festivalescas”. Gil, o mais sacrificado, cantando “fora do tom“, “fundiu a cuca do júri“ , nas palavras de Caetano. Vale dizer, contrariando violentamente as normas do código convencional de julgamento, fez com que os próprios jurados – que, com exceção do Sr. Chico de Assis, tiveram suficiente lucidez para avaliar a importância de “É Proibido Proibir” – ficassem subitamente transformados em espectadores “simpáticos, mas incompetentes” para opinarem sobre a composição. Daí a desclassificação da música.

No caso do público do Festival, o desencontro verificado entre a informação nova dos baianos e o código do auditório tem um significado crítico e social, que irá se tornando mais claro à medida que os discos das músicas apresentadas forem sendo ouvidos e consumidos. A vaia funciona contra os vaiadores, como um “atestado de velhice”, que põe a nu todo um quadro de preconceitos que os induziu à incompreensão e – pior ainda – à intolerância. O que decepciona, no incidente com Caetano, é que essa incompreensão, levada ao paroxismo, tenha partido da nossa juventude universitária (ou parte dela), pois era esse o público predominante no auditório do TUCA e não “o povo”, como querem fazer crer alguns comentaristas superficiais de última hora. É preciso ter a coragem de dizer que aqueles que insultaram a mil vozes o cantor só nos deram um espetáculo do mais tolo e irracional histerismo coletivo; que aquele público juvenil instigado por um grupo fascistóide, tapado e stalinista (o novo C.C.C.) teve a comunicação com a mensagem musical obturada, bloqueada, por preconceitos pueris que lhe foram insuflados: contra a roupa, contra o sexo, contra a guitarra elétrica e contra os ruídos incorporados à música. A tal ponto foi essa obturação, que eles não ouviram nada, e não entenderam nada, e quando ouviram alguma coisa, conseguiram identificar-se, inconscientemente, com o establishment, que a letra, a música, as roupas e o comportamento físico de Caetano visaram a agredir. E aconteceu o impossível: “jovens” defendendo o Sistema com mais ardor e mais firmeza que as nossas bisavós. A Condessa de Pourtalès não teria feito melhor. Não chegaram nem mesmo a compreender que o Festival era um espetáculo em que todos estavam fantasiados, só que a fantasia de plástico de Caetano, dos Mutantes, de Gil, era ostensiva, não escondia o jogo, enquanto que a de outros era discretamente usada: havia fantasia de robin-hood, de sambista da barra-funda, de jazzman, de estudante, de rapaz simples e muitas outras…

Mas, apesar de tudo, a vaia teve um mérito: conseguiu dar vida e participação real ao texto de Caetano, possibilitou-lhe dizer NÃO ao não e contestar no ato os seus agressores (“Vocês vão sempre, sempre, matar amanhã os velhotes inimigos que morreram ontem” e “se as idéias que vocês têm em política são as mesmas que vocês têm em estética, estamos feitos”). A fala de Caetano, integrada ao happening de sua música, e um contundente documento critico cuja importância transcende a área da música popular para se projetar na história da cultura moderna brasileira, como um desafio da criação e da inteligência, na linha dos pioneiros de 22. E nesse sentido, é fundamental que tenha sido gravada em disco.

“É Proibido Proibir” ficará como um marco de coragem e de integridade artística, apesar de todo o ritual de proibições, que fechou o seu círculo com o veto do Sr. Antônio Marzagão, a quem faltou sensibilidade para compreender que a arte dispensa paternalismos e que aos burocratas não compete policiar a arte, mas simplesmente estimular as suas manifestações. Fez bem Caetano, e foi coerente, não se dobrando às imposições da direção do Festival Internacional da Canção, para que apresentasse a sua canção sem plástico e sem uivos.

Há cronistas e compositores que pensam que o único dever do artista e bajular e badalar o gosto do público. São os defensores da música batizada de “gastronômica” por Umberto Eco: dar ao público o que ele já sabe e espera inconscientemente ver repetido. Respeitar o código para ser respeitado. Na verdade, essa é a melhor maneira de iludir o público e de desrespeitá-lo. Seria fácil a Caetano e Gil cultivarem essa espécie de “bom comportamento”, como fazem outros compositores muito “participantes”, mas que mal escondem a avidez pelo aplauso “ gastronômico”. Mas eles preferiram assumir o risco quase suicida de desagradar para despertar a adormecida consciência de liberdade dos destinatários da sua mensagem. Talvez custem a ser compreendidos. Não importa. Como disse Fernando Pessoa, “o amanhã é dos loucos de hoje”. E como disse Décio Pignatari, prata da casa: “na geléia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e de osso”.

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