Eubioticamente atraídos

surgimento – uma explosão colorida

surgimento – uma explosão colorida

Visões Brasileiras

O surgimento
Uma explosão colorida
Celso Favaretto
Extraído de Tropicália: Alegria, Alegoria, Ateliê Editorial, 1996

“O Tropicalismo surgiu mais de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como um movimento organizado”1. Em outubro de 1967, quando “Alegria, alegria” e “Domingo no Parque” foram lançadas no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record de São Paulo, não se apresentavam como porta-vozes de qualquer movimento. Contudo, destoavam das outras canções por não se enquadrarem nos limites do que se denominava MMPB (Moderna Música Popular Brasileira). Ao público consumidor desse tipo de música – formado preponderantemente por universitários – tornava-se difícil reconhecer uma postura política participante ou certo lirismo, que davam a tônica à maior parte das canções da época. A novidade – o moderno de letra e arranjo –, mesmo que muito simples, foi suficiente para confundir os critérios reconhecidos pelo público e sancionados por festivais e crítica. Segundo tais critérios, que associavam a “brasilidade” das músicas dos festivais à carga de sua participação político-social, as músicas de Caetano e Gil eram ambíguas, gerando entusiasmos e desconfianças. Acima de tudo, esta ambigüidade traduzia uma exigência diferente: pela primeira vez, apresentar uma canção tornava-se insuficiente para avaliá-la, exigindo-se explicações para compreender sua complexidade. Impunha-se, para crítica e público, a reformulação da sensibilidade, deslocando-se, assim, a própria posição da música popular, que, de gênero inferior, passaria a revestir-se de dignidade – fato só mais tarde evidenciado.

A marchinha pop “Alegria, alegria” denotava uma sensibilidade moderna, à flor da pele, fruto da vivência urbana de jovens imersos no mundo fragmentário de notícias, espetáculos, televisão e propaganda. Tratava, numa linguagem caleidoscópica, de uma vida aberta, leve, aparentemente não empenhada. Tais problemas, enunciados de forma gritante em grande numero de canções da época, articulavam-se à maneira de fatos virados notícias. Através de procedimento narrativo, as descrições de problemas sociais e políticos, nacionais ou internacionais, misturavam-se a índices da cotidianeidade vivida por jovens de classe média, perdendo, assim, o caráter trágico e agressivo. A tranqüilidade do acompanhamento dos Beat Boys e da interpretação de Caetano reforçava tal neutralização, surpreendendo um público habituado a vibrar com declarações de posição frente à miséria e à violência. Ambígua, a música de Caetano intrigava; em sua aparente neutralidade, as conotações políticas e sociais não tinham relevância maior que Brigitte Bardot ou a Coca-Cola, saltando estranhamente da multiplicidade dos fatos narrados. Através da operação que realizava, a linguagem transparente de “Alegria, alegria” fazia que a audição do ouvinte deslizasse da distração ao estranhamento.

Assim, “Alegria, alegria” apresenta uma das marcas que iriam definir a atividade dos tropicalistas: uma relação entre fruição estética e crítica social, em que esta se desloca do tema para os processos construtivos. Na linha da modernidade, esta tendência cool das canções tropicalistas trata o social sem o pathos então vigente. Nesta primeira música tropicalista, surpreendem-se – no procedimento de enumeração caótica e de colagem, tanto na letra quanto no arranjo – indicações certeiras do processo de desconstrução a que o Tropicalismo vai submeter a tradição musical, a ideologia do desenvolvimento e o nacionalismo populista. Nos versos: “uma canção me consola”  e “no coração do Brasil” – o primeiro, uma reminiscência ambígua do iê-iê-iê: dívida de amor à primeira ruptura no círculo bem-comportado da música brasileira e, ao mesmo tempo, reconhecimento das implicações românticas e industriais daquele movimento; o segundo, uma imagem complexa que ressalta alegoricamente as assincronías do país – tais indicações são marcantes. A canção produz uma sensação indefinida, pois nela não fala um sujeito que deteria, por exemplo, a verdade sobre o Brasil, mas uma deriva que dissolve o sujeito enquanto o multiplica.

“Domingo no parque”, de Gilberto Gil, causou impacto pela complexidade construtiva, mais aparente que em “Alegria, alegria”. O forte da música e o arranjo que ele e Rogério Duprat realizaram, segundo uma concepção cinematográfica, assim como a interpretação contraponteada de Gil. Aquilo que poderia tornar-se apenas a narração de uma tragédia amorosa, vivida em ambiente popular, tornou-se uma féerie em que letra, música e canto compõem uma cena de movimentos variados, à imagem da festa sincrética que é o parque de diversões. O processo de construção lembra as montagens eisensteinianas; letra, música, sons, ruídos, palavras e gritos são sincronizados, interpenetrando-se como vozes em rotação. Gil e Duprat construíram uma assemblage de fragmentos documentais: ruídos de parque, instrumentos clássicos, berimbau, instrumentos elétricos, acompanhamento coral 2. Esse procedimento musical conota algo do atonalismo sobreposto a desenvolvimentos sinfônicos atuais. Como “Alegria, alegria”, a música de Gil define um procedimento de mistura, próprio da linguagem carnavalesca, associado à prática antropofágica oswaldiana.

As músicas de Caetano e Gil, apesar do impacto, não foram as vencedoras do festival, ficando, respectivamente, em quarto e segundo lugar. As classificadas em primeiro e terceiro foram “Ponteio”, de Edu Lobo, e “Roda Viva”, de Chico Buarque de Holanda – músicas mais conteudísticas, mais próximas do gosto e dos critérios do sistema dos festivais, em que o arranjo servia de acompanhamento ou de reforço de uma “mensagem”. O festival foi o ponto de partida de uma atividade que logo seria denominada Tropicalismo. A polêmica que havia cercado a apresentação das músicas transformaria Caetano e Gil em astros. A imprensa se encarregou de fazer de suas declarações desabusadas, de sua verve crítica, o prenúncio de uma posição artística, e mesmo política, sincronizada com comportamentos da juventude de classe média, vagamente relacionada ao movimento hippie. A onda era reforçada pelo trabalho de marketing do empresário Guilherme Araújo e aceita pelos, agora, tropicalistas. O Tropicalismo surgiu, assim, como moda; dando forma a certa sensibilidade moderna, debochada, crítica e aparentemente não empenhada. De um lado, associava-se a moda ao psicodelismo, mistura de comportamentos hippie e música pop, indiciada pela síntese de som e cor; de outro, a uma revivescência de arcaísmos brasileiros, que se chamou de “cafonismo” . Os tropicalistas não desdenharam este aspecto publicitário do movimento; sem preconceitos, interiorizaram-no em sua produção, estabelecendo assim uma forma específica de relacionamento com a indústria da canção. Sobre esta versão do nascimento do Tropicalismo, disse Gilberto Gil:

Na verdade, eu não tinha nada na cabeça a respeito do Tropicalismo. Então a imprensa inaugurou aquilo tudo com o nome de Tropicalismo. E a gente teve que aceitar, porque tava lá, de certa forma era aquilo mesmo, era coisa que a gente não podia negar. Afinal, não era nada que viesse desmentir ou negar a nossa condição de artista, nossa posição, nosso pensamento, não era. Mas a gente é posta em certas engrenagens e tem que responder por elas.3

A aceitação das solicitações do estrelato, sentida de início como uma necessidade não apenas comercial, levou-os a um ponto insuportável. Caetano e Gil, encerrado o movimento, consideraram aquele período como angustiante, devido às múltiplas solicitações do sucesso. Entretanto, não menosprezaram a importância de terem entrado em todas as estruturas, como disse Caetano Veloso no discurso happening que fez no III Festival Internacional da Canção, quando ele e Gil viram suas músicas rejeitadas pela repressão do público e do júri.

Desde o lançamento de “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”, e mesmo antes, o trabalho de Caetano e Gil vinha tendo uma outra dimensão, responsável pela virada da música popular brasileira. Trabalhando criticamente o acontecido nos festivais, delinearam, com outros artistas, uma posição cultural de revisão das manifestações críticas, decorrentes do golpe de 64. Tal atitude, após um primeiro momento de oposição à situação cultural e tentativas de reformulação dos processos de análise e compreensão da nova realidade, desembocava numa exigência de violência, visando a anulação das respostas anteriores, no esforço de partir do zero para uma reconstrução 4. O Tropicalismo resultou dessa radicalização, sendo, talvez, o movimento que melhor exprimiu os impasses da intelligentsia brasileira.

Procurando articular uma nova linguagem da canção a partir da tradição da música popular brasileira e dos elementos que a modernização fornecia, o trabalho dos tropicalistas configurou-se como uma desarticulação das ideologias que, nas diversas áreas artísticas, visavam a interpretar a realidade nacional, sendo objeto de análises variadas – musical, literária, sociológica, política. Ao participar de um dos períodos mais criativos da sociedade, os tropicalistas assumiram as contradições da modernização, sem escamotear as ambigüidades implícitas em qualquer tomada de posição. Sua resposta à situação distinguia-se de outras da década de 60, por ser auto-referencial, fazendo incidir as contradições da sociedade nos seus procedimentos. Empregava as produções realizadas ou em processo, pondo-as em recesso, deslocando-as de modo a subtrair sua prática à redução a um momento particular do processo de evolução das formas existentes, com o que fica marcada uma posição de ruptura.

Quando justapõe elementos diversos da cultura, obtém uma suma cultural de caráter antropofágico, em que contradições históricas, ideológicas e artísticas são levantadas para sofrer uma operação desmistificadora. Esta operação, segundo a teorização oswaldiana, efetua-se através da mistura dos elementos contraditórios – enquadráveis basicamente nas oposições arcaico-moderno, local-universal – e que, ao inventariá-las, as devora. Este procedimento do Tropicalismo privilegia o efeito crítico que deriva da justaposição desses elementos.

A singularidade do Tropicalismo provinha, além disso, da maneira como se aproximava da realidade nacional. Diferentemente dos demais movimentos da época, que tratavam referencialmente este tema, os tropicalistas acabaram por esvaziá-lo, enquanto operavam uma descentralização cultural. Realidade nacional não passava, no entanto, de uma expressão abstrata, codificação ideal de uma situação histórica heteróclita, construída para alimentar uma utopia em que se desfariam as contradições de toda ordem, ou, pelo menos, o desejo de uma ordem justa 5. O contexto é articulado nas produções tropicalistas através da justaposição de diversos discursos que o tomam como referência; de várias proveniências artísticas e críticas, essas mensagens se interpenetram constituindo um conjunto plurissignificante – este, contudo, não constitui um estilo. O cafonismo e o humor, responsáveis pelo caráter lúdico das canções tropicalistas, mais que efeito, são, antes, práticas construtivas. Caetano Veloso assim se expressou, na conhecida entrevista em que define o Tropicalismo:

Eu e Gil estávamos fervilhando de novas idéias. Havíamos passado um bom tempo tentando aprender a gramática da nova linguagem que usaríamos, e queríamos testar nossas idéias, junto ao público. Trabalhávamos noite adentro, juntamente com Torquato Neto, Gal, Rogério Duprat e outros. Ao mesmo tempo, mantínhamos contatos com artistas de outros campos, como Glauber Rocha, José Celso Martinez, Hélio Oiticica e Rubens Gerchman. Dessa mistura toda nasceu o Tropicalismo, essa tentativa de superar nosso subdesenvolvimento partindo exatamente do elemento cafona da nossa cultura, fundido ao que houvesse de mais avançado industrialmente, como as guitarras e as roupas de plástico. Não posso negar o que já li, nem posso esquecer onde vivo.6

A mistura tropicalista notabilizou-se como uma forma sui generis de inserção histórica no processo de revisão cultural, que se desenvolvia desde o início dos anos 60. Os temas básicos dessa revisão consistiam na redescoberta do Brasil, volta às origens nacionais, internacionalização da cultura, dependência econômica, consumo e conscientização. Tais preocupações foram responsáveis pelo engajamento de grande parte dos intelectuais e dos artistas brasileiros na causa da construção de um Brasil novo, através de diversas formas de militância política. Os movimentos artísticos mais significativos foram: os de cultura popular, como o CPC da UNE, em que, além de estudantes, se engajaram poetas, cineastas e teatrólogos; espetáculos mistos de teatro, música e poesia, como os do Grupo Opinião; o Cinema Novo; Teatro de Arena e Oficina; a poesia participante de Violão de Rua e alguns romances como Quarup, de Antonio Callado, e Pessach de Carlos Heitor Cony. Estas produções se dirigiam a um público intelectualizado de classe média, principalmente estudantes e artistas.

A pesquisa desses grupos era suplantada pelo imperativo de falar do país. Não havia, assim, interesse pelo experimentalismo, e sim pelo estabelecimento de uma linguagem adequada à conscientização do público. Naquele tempo “a realidade rompia as formas, pondo à mostra o caráter político, interessado, dos valores sociais”, como disse Ferreira Gullar 7. A atividade desses grupos era apaixonada, sendo freqüentemente maniqueísta. Manteve acesa, durante toda a década, uma polêmica de grande alcance cultural, em torno da oposição entre arte alienada e arte participante. Havia agressividade, quando não desprezo, contra as tendências experimentalistas, assim como uma recusa da importação de formas, ritmos e estilos. Embora matizada, a atitude desses grupos gerou uma forma de consciência participante, um público esclarecido, politicamente avançado, que se distinguia, maniqueisticamente, de uma pequena elite, considerada reacionária, por ser formalista.

O Tropicalismo nasceu dessas discussões, que já se exauriam, inclusive por força da repressão. Propunha outro tipo de discussão, substancialmente distinta das anteriores como tática cultural, como proposta ideológica e relacionamento com o público. Era uma posição definidamente artística, musical. Rearticulando uma linha de tradição abandonada desde o inicio da década, retomando pesquisas do modernismo, principalmente a antropofagia oswaldiana, rompeu com o discurso explicitamente político, para concentrar-se numa atitude “primitiva”, que, pondo de lado a “realidade nacional”, visse o Brasil com olhos novos. Confundindo o nível em que se situavam as discussões culturais, o Tropicalismo deu uma resposta desconcertante à questão das relações entre arte e política.

  1. Cf. entrevista de Gilberto Gil a Augusto de Campos, Balanço da Bossa, 2. ed., São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 193; Frederico Morais, Artes Plásticas: A Crise da Hora Atmrl, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975, p. 98.
  2. Cf. Augusto de Campos, op. cit., p. 154.
  3. História da Música Popular Brasileira, São Paulo, Abril Cultural, 1971, fasc. 30, p. 10.
  4. Cf. “As Marcas da Inocência Perdida”, Visão, 1.3.1968, p. 46.
  5. Cf. Luiz Carlos Maciel, “O Esvaziamento da Realidade”, Folha de S. Paulo, Folhetim, 27.2.1977. Cf., também, o depoimento de Gilberto Gil: “Acho que o Tropicalismo foi até certo ponto revolucionário. Porque ele virava a mesa, ele tentava virar a mesa bem-posta, uma mesa de um certo banquete aristocrático da inteligência brasileira de então, que tinha escolhido certos pratos e tal. E o Tropicalismo de uma certa forma abastardava esse banquete, a gente trazia um dado muito plebeu, que era o dado assim da visão de descontinuidade do processo cultural, uma visão do processo cultural como um processo extensivo, e não centralizado. Como um processo radiante, e não aglutinante. Quer dizer, era um processo de difusão de vários caminhos e não um caminho só. A isso tudo eu chamo de visão plebéia, em relação à visão aristocrata da manutenção dos valores tradicionais. Então o Tropicalismo foi revolucionário nesse sentido. E quando estou falando nessa coisa, visão tradicional, valores etc., eu estou falando em relação à arte, quer dizer, esse banquete aristocrático, que eu estou falando, e exatamente em relação aos valores da arte, à discussão música brasileira, música popular, samba. O que é popular, o que não é popular, elétrico e não elétrico. Aquelas coisas todas que se discutiu na época. Vulgar e não vulgar, político e não político, alienado e não alienado. Todo aquele mundo de conceitos, que, aliás, são ainda hoje manipulados pela imprensa. O repertório continua o mesmo”   (Fatos & Fotos, Gente, n. 838, set. 1977).
  6. Realidade, ano III, n. 33, dez. 1968, p. 197, texto de Décio Bar, “Acontece que Ele é Baiano”
  7. Cf. Visão, 11.3.1974, p. 139. Nesta matéria, “Da Ilusão de Poder a uma Nova Realidade”, há um inventário das posições estéticas do período 1964-1974, que retoma e complementa os balanços feitos em 1968, 1972 e 1973, na mesma revista.
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