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Visões Brasileiras

O Tropicalismo e a MPB
Antonio Cícero
12/08/2004

Foi em 1966 – pouco antes, portanto, do início do tropicalismo, em 1967* – que Caetano Veloso fez, a Augusto de Campos, a sua famosa declaração sobre a “linha evolutiva” da música popular brasileira. Permitam-me citá-la ainda mais uma vez:

Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. Paulinho da Viola me falou há alguns dias da sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos. Tenho certeza de que, se puder levar essa necessidade ao fato, ele terá contrabaixo e terá samba, assim como João Gilberto tem “contrabaixo, violino, trompa, sétimas, nonas e tem samba. Aliás João Gilberto para mim é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente, da música popular brasileira. Creio mesmo que a retomada da tradição da música brasileira deverá ser feita na medida em que João Gilberto fez. Apesar de artistas como Edu Lobo, Chico Buarque, Gilberto Gil, Maria Betânia, Maria da Graça (que pouca gente conhece) sugerirem esta retomada, em nenhum deles ela chega a ser inteira, integral. *

À época dessa declaração, a linha evolutiva a que se referia Caetano era apenas a que vinha do samba à bossa nova; se, portanto, considerarmos o tropicalismo, que surgiria no ano seguinte a essa declaração, como justamente a retomada da linha evolutiva da MPB, então essa linha terá de ser estendida da bossa nova ao tropicalismo: a essa altura, isto é, em 1967, samba, bossa nova e tropicalismo serão os três pontos entre os quais se terá traçado a linha da evolução da MPB; e, em princípio, a mesma linha poderá projetar-se indefinidamente além do tropicalismo, rumo a uma série futura e ainda indefinida de pontos consecutivos.

Antes de prosseguir, preciso ressaltar que a declaração de Caetano não tem nem nunca pretendeu ter caráter teórico, de modo que ele não pode ser considerado responsável pelos erros ou equívocos em que eu acaso incorra nas interpretações ou ilações que em seguida exponho. Jovem compositor, ele estava, na realidade, a esboçar a articulação dos seus projetos musicais, a partir da reflexão sobre o que a Revista Civilização Brasileira considerava a “crise da música popular brasileira”.* Preocupavam-no questões como a dificuldade de, nas palavras citadas, ter “organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação”; e, ao enfrentar semelhantes questões, ele levava em conta também as experiências de seus colegas como Paulinho da Viola, Edu Lobo, Chico Buarque etc.

A questão da evolução na arte

Quero também, desde já, enfrentar algumas prováveis – mas nem por isso justas – críticas às palavras de Caetano, quer tomadas literalmente quer na interpretação que lhes dou. Uma dessas críticas poderia questionar a propriedade de se falar “da” linha evolutiva da MPB, como se houvesse uma só linha evolutiva na MPB, a saber, a linha que tem início com o samba. Como o Brasil é um país musicalmente riquíssimo, poder-se-ia perguntar com que direito Caetano privilegia o samba em detrimento do baião ou do frevo, por exemplo, como se o samba fosse a matriz de toda a MPB.

Creio que a melhor resposta a essa objeção é que a novidade da MPB que dera ensejo à noção de “linha evolutiva” tinha sido a bossa nova; ora, a bossa nova se refere ao samba. “João Gilberto”, diz Caetano na entrevista citada, “tem contrabaixo, violino, trompa, sétimas, nonas e tem samba”. A bossa nova é samba e não é samba: ela se distingue do samba tradicional mas, de certa forma, descende dele e ainda pode ser vista como bossa nova do samba. O dado mais interessante da bossa nova – não do ponto de vista estético mas do ponto de vista puramente intelectual – era precisamente a sua novidade. Enquanto toda música popular brasileira – e praticamente toda música popular, com a exceção notável da americana – queria ver-se como tradicional, a bossa nova se jactava de ser nova: e, evidentemente, o era. Quando, portanto, Caetano, ao falar da “linha evolutiva da música popular brasileira”, se refere à linha que vai do samba à bossa nova, ele o faz não porque fosse essa a única linha evolutiva possível – é evidente que outras linhas são possíveis e, já em 68, Gilberto Gil falava de Luís Gonzaga como representante da evolução do Baião* – mas sim porque de fato a bossa nova tinha sido, conscientemente, a mais ambiciosa e bem sucedida das utilizações “da modernidade musical… na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente, da música popular brasileira”.

Outra crítica previsível às palavras de Caetano acima citadas seria a que estigmatizasse, com o epíteto de “evolucionismo”, a própria aplicação da idéia de evolução à arte. Tratar-se-ia de uma crítica também equivocada. Não é verdade simpliciter que não haja evolução na arte. É concebível, por exemplo, que determinada arte, em determinado contexto ou tradição, evolua em riqueza ou complexidade morfológica, sintática, semântica etc. Por comodidade e clareza, doravante denominarei de evolução técnica esse tipo de evolução. Um dos casos mais incontestáveis de evolução nesse sentido é o da música ocidental, que, como diz José Miguel Wisnik em seu esplêndido livro O som e o sentido, vem do cantochão à polifonia, passando através do tonalismo e indo se dispersar no atonalismo, no serialismo e na música eletrônica”.* Não só é inegável que haja esse tipo de evolução no interior da polifonia e do tonalismo, mas, se considerarmos que cada período subseqüente mantém, ao menos enquanto possibilidade teórica, as aquisições dos períodos anteriores, de modo que, por exemplo, as regras da polifonia e do contraponto são válidas desde os séculos XIII e XIV até hoje (tendo sido retomadas e desenvolvidas pelo dodecafonismo), então pode dizer-se haver evolução, no sentido de complexificação, na música ocidental como um todo. Evidentemente, a complexificação de que falo não diz respeito às obras individuais, mas à técnica a partir da qual são produzidas as obras individuais. * Além disso, não se trata de uma complexificação meramente quantitativa ou extensiva, mas também – o que é mais importante – inclui um aspecto qualitativo ou intensivo. Assim, ainda que a música de Machaut ou Gesualdo soe mais dissonantes do que a de Mozart, que lhe é posterior em alguns séculos, a técnica deste incorpora uma dimensão ausente à daqueles. * Se não há a mesma complexidade contrapontística em Mozart, trata-se de uma questão de escolha (sua e/ou de seu século, pouco importa), ao passo que o horizonte de resolução harmônica da música de Mozart não era sequer concebível por Machaut ou Gesualdo.

Só é verdade que não há evolução na arte numa acepção muito precisa: a de que nada garante que a obra mais evoluída nos sentidos já indicados seja também artística* ou esteticamente superior à menos evoluída nesses sentidos. Assim, é possível reconhecer que determinada canção bossa nova use modulações, acordes e ritmos mais complexos do que os que eram empregados por determinado samba tradicional, sem que isso implique tomar aquela por esteticamente superior ou melhor do que este. Por outro lado, o fato de que um artista possa produzir uma obra prima a partir de recursos relativamente escassos não significa que os artistas genuínos não desejem ampliar os seus recursos expressivos até onde não possam mais: mesmo sabendo que esses recursos não serão garantias da produção de obras primas, já que semelhantes garantias não há.

Independentemente disso, o fato de que, às vezes, dá-se evolução na arte, em termos de complexidade, é verificável e até mensurável. Que só essa evolução em complexidade constitua uma evolução real da arte é o que se depreende da afirmação de Schönberg de que “todo progresso, todo desenvolvimento conduz do mais simples ao mais complicado, e precisamente o mais recente desenvolvimento da música, em virtude de sua complexidade adicional, ainda aumenta toda a dificuldade e todos os obstáculos contra os quais o novo na música sempre tem que lutar”. * À primeira vista parece, portanto, perfeitamente legítima a aspiração de Caetano a retomar a linha evolutiva da MPB.

Evolução técnica VS. Elucidação conceitual

Outra coisa inteiramente diferente são as “evoluções” não suscetíveis a esse tipo de verificação. Tenho em mente grande parte da “evolução” da arte de vanguarda. * Fala-se, por exemplo, de uma “evolução da pintura rumo à planaridade”. Na realidade, se há uma progressão nesse sentido, ela não consiste numa evolução técnica, mas numa evolução, ou melhor, numa elucidação do conceito de pintura. Se a pintura se dirigiu para a planaridade, foi ao abandonar a perspectiva. O caminho para a planaridade foi a demonstração prática de que a pintura sem perspectiva continuava sendo pintura: de que, portanto, a perspectiva não era essencial à pintura, tomada como uma das belas-artes. * Diferentes artistas, por diferentes caminhos, e empregando técnicas independentes umas das outras, contribuíram para se chegar a esse discernimento. Tal contribuição consistia simplesmente (mas tome-se esse “simplesmente” cum grano salis) na produção de pinturas que, embora sendo obras de arte, dispensavam a perspectiva. Fundamentalmente ela não foi, portanto, o resultado de uma evolução artística ou técnica, mas de uma elucidação do conceito da pintura que teve como resultado a negação da necessidade, na produção de pintura, do emprego das técnicas artísticas – perspectivísticas – tradicionais. Evidentemente, essa elucidação consiste na ampliação da extensão do conceito da pintura como arte, que deixa de se identificar com a concepção elaborada na Renascença. A uma elucidação conceitual desse tipo pode perfeitamente corresponder, ao invés de uma evolução, uma simplificação, ou melhor, uma voluntária “involução” técnica de determinada arte.

A pintura moderna é uma arte excepcionalmente apta para exemplificar a diferença e mesmo a oposição entre a evolução técnica da arte e a elucidação do conceito da arte. Na música, não se encontra a mesma oposição de modo tão claro senão na segunda metade do século XX, com John Cage. Antes disso, são concomitantes a evolução técnica e a elucidação do conceito da harmonia. Desse modo, “a música do Ocidente”, como observa Wisnik, referindo-se ao historiador da harmonia Jacques Chailley, “se desenvolve ao longo da série harmônica, incorporando a cada fase um novo patamar que, incluído como dissonância ou como consonância parcial num período, torna-se consonância no momento seguinte. A ampliação da faixa daqueles intervalos aceitos como consonância iria seguindo historicamente os passos da série harmônica”. * Assim, o desenvolvimento da harmonia – que, aliás, se deu simultaneamente ao desenvolvimento da orquestra, * – representou não só a evolução técnica da música mas também, pari passu, a ampliação da extensão do próprio conceito de música. Entretanto, tal coincidência não é uma regra geral, mas uma exceção nas artes. De modo geral, é importante evitar a confusão teórica entre a evolução técnica e a elucidação do conceito de uma arte.

A Bossa Nova e o caráter da música popular

Se, depois dessas observações, voltarmos agora a examinar a “linha evolutiva” que antes tracei, o seu caráter nos parecerá mais duvidoso. Eu disse que essa linha se estende do samba à bossa nova, e desta ao tropicalismo. Ora, há sem dúvida uma evolução técnica, isto é, uma evolução no sentido de uma complexificação das estruturas musicais, quando se passa do samba à bossa nova, mesmo se essa passagem, constituindo, no final das contas, uma mudança não apenas quantitativa, mas qualitativa, não se reduz a uma complexificação; mas é evidente que não se pode dizer, sem mais, que se dê uma complexificação análoga na transição da bossa nova ao tropicalismo. Essa transição parece explicar-se melhor como a elucidação do conceito de música popular do que como uma evolução técnica. Examinemos a coisa mais de perto.

Tomemos em primeiro lugar a bossa nova. Um fator extremamente importante a ser levado em conta quando se pensa na influência que ela exerceu é a qualidade de alguns dos artistas que a produziam, em particular a de João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Morais. Caetano já algumas vezes salientou o fato de que, para ele, João Gilberto é um dos maiores artistas brasileiros. Em Verdade tropical, ele conta que à época do surgimento do tropicalismo já considerava João Gilberto um artista maior, em todos os sentidos: “um poeta, pelas rimas de ritmo e de frase musical que ele entretecia com os sons e os sentidos das palavras cantadas. Um criador revolucionário como Glauber Rocha – sem os defeitos: sem mão pesada ou inábil. À altura de João Cabral e de João Guimarães Rosa, mas atuando para uma larga audiência, e influenciando imediatamente a arte e a vida diária dos brasileiros”. * Com o tempo, o juízo de Caetano sobre João Gilberto se tornou ainda mais superlativo, de modo que, em algumas declarações, chega a afirmar que João Gilberto é o maior artista brasileiro de todos os tempos. Estará sendo hiperbólico? Creio que sim, mas pouco importa: o importante é ressaltar que João Gilberto é um artista de primeiríssima grandeza, cuja obra – como cantor e instrumentista – tem lugar entre as mais altas realizações artísticas do nosso tempo.

Isso significa que tais realizações são possíveis no âmbito da música popular. Conseqüentemente, a hierarquia tradicionais das artes, na qual a música popular ocupa um lugar bastante modesto, deve ser revista. Ordinariamente, “popular” se opõe, no contexto da música, a “erudito/a”. Quem qualifica de “popular” uma peça musical pressupõe conotativamente que essa peça possa ser excelente à sua maneira, mas que essa maneira é limitada: e que quanto mais os produtores e intérpretes da música popular reconhecerem essa limitação, melhor. Para semelhante modo de pensar, há duas maneiras diferentes, porém não excludentes, de conceber a música popular. Por um lado, ela pode ser tida como uma música que, ao contrário da erudita, se tenha atrofiado; uma música que, à margem da história, repita incessantemente os motivos e formas que conhece há tempos imemoriais. Por outro lado, ela pode ser considerada como, ao contrário, uma espécie de simplificação, diluição ou degradação eclética de determinadas formas de música erudita. É evidente que de fato existem esses dois tipos de música popular, e que se encontram mesclados das mais variadas maneiras e nas mais diversas proporções. Não é isso, porém, o que João Gilberto faz, nem é isso a bossa nova.

Não é necessário provar, dado que estou falando justamente da novidade da bossa nova, que ela não consista numa repetição de motivos e formas imemoriais. Por outro lado, devo mostrar que ela não se reduz a uma simplificação, diluição ou degradação da música erudita. Fala-se, por exemplo, da influência de Debussy sobre Tom Jobim. Eu poderia responder que o influenciado não é necessariamente um diluidor daquilo que o influencia; a verdade, porém, é que não é essa a questão principal. No caso da bossa nova, de Tom Jobim ou de João Gilberto, o que tenho vontade de dizer é que basta ouvi-los para se saber que se trata de outra coisa, muito diferente da música erudita, e que possui outros recursos e cultiva outras ambições.

Na verdade, creio que, enquanto a música erudita ocidental parece evoluir “ao longo da série harmônica” * como resultado de um afã analítico, a constituição e a eventual progressão da música popular se dá como um empreendimento francamente sintético. Observe-se que não estou afirmando nem que a música erudita seja analítica nem que a música popular seja sintética: isso não teria sentido algum. A distinção que me interessa é a que se dá entre a natureza da história da música erudita e a natureza da história da música popular. O que estou querendo dizer é que, enquanto o que é considerado a história da música erudita – pelo menos até o final do século XX – se manifesta como a explicitação do que se encontra implícito naquilo que está a se desdobrar, a progressão da música popular se manifesta como o aditamento ao já dado de elementos que lhe são adventícios (o que não exclui a – alternativa ou concomitante – subtração de tais ou quais elementos ao já dado). Isso explica o fato de que, ao mesmo tempo em que a evolução artística da música erudita ocidental parece, de certo modo, logicamente necessária, afigura-se problemática a própria aplicação da palavra “evolução” ao que se passa na música popular. Com efeito, qualquer transformação estrutural da música popular parece ser-lhe inteiramente contingente: assim como ocorreu, poderia não ter ocorrido; ou poderia ter ocorrido de outro modo.
Acima afirmei que, na passagem do samba à bossa nova, manifesta-se uma evolução técnica, isto é, uma evolução no sentido de uma complexificação das estruturas musicais. Isso é verdade, mas essa complexificação não deve ser entendida como um desenvolvimento autônomo do próprio samba. Trata-se, sim, da incorporação – sem dúvida felicíssima – ao samba de alguns componentes da música erudita moderna. Para se constituir, a bossa nova precisou desses componentes da música erudita e os utilizou. Embora, do ponto de vista de uma análise estritamente musical, isso possa ser interpretado como uma evolução, tal evolução artística não faz parte de nenhuma linha evolutiva prolongável. A bossa nova é, em última análise, um feito maravilhoso que poderia jamais ter sido realizado, pois não se encontrava inscrita nem nos inexistentes genes nem na inconcebível essência do samba ou da MPB. É por isso que nem a bossa nova nem música popular alguma precisa percorrer as etapas que a música erudita percorreu na sua evolução artística. Se ontem Debussy foi importante para tornar possíveis determinadas transformações da MPB, isso não quer dizer que amanhã ela deva se inspirar em Stravinsky ou Schönberg: amanhã ela talvez prefira Bach, por exemplo, ou a música modal dos pigmeus: ou talvez queira pleonasticamente encerrar-se em si própria. Seria cometer um grande equívoco no que diz respeito à natureza da bossa nova e da música popular pensar que, tendo incorporado intervalos de sétima e de nona, a bossa nova ou a MPB naturalmente deva evoluir de modo a incorporar, por exemplo, intervalos de 11a aumentada e 12a aumentada. Esse equívoco tem sido, de fato, cometido por alguns músicos que pretendem representar a vanguarda da música popular. Por outro lado, não seria menor o equívoco simetricamente inverso, isto é, o de supor que a música popular seja constitucionalmente incapaz de incorporar os ditos intervalos. De toda maneira, o caráter tendencialmente sintético do desenvolvimento da música popular, em oposição ao caráter tendencialmente analítico do desenvolvimento da música erudita, significa, entre outras coisas, que (1) não teria sentido uma “vanguarda” que promovesse a evolução técnica da música popular; e (2) a música popular de hoje não é o arremedo da música erudita de cinquenta anos atrás.

A cada instante, a natureza sintética e, portanto, contingente, das transformações da música popular permite-lhe tanto permanecer no mesmo lugar quanto escolher entre inúmeros caminhos contingentes a seguir. Como mostrou a bossa nova, é possível que alguns desses caminhos configurem evoluções técnicas. Embora isso queira dizer que a música popular é capaz de conhecer evoluções pontuais, não significa que ela tenha uma linha evolutiva. É possível também que alguns dos caminhos da música popular representem uma elucidação do seu próprio conceito. Tentarei mostrar que tal é o caso do Tropicalismo. Contudo, a maioria esmagadora das transformações da música popular não significam nem a sua evolução técnica nem a elucidação do seu conceito: são simplesmente diferentes combinações de elementos já dados.

Eu disse, no início desta conferência, que a linha evolutiva a que se referia Caetano era a que vinha do samba à bossa nova, linha que, em princípio, poderia estender-se até o tropicalismo. Na realidade, não poderia haver tal linha. Se o que venho afirmando está correto, a transição do samba à bossa nova foi antes um acontecimento singular, sem prolongamentos. Nesse sentido, Caetano estava errado ao falar de “linha evolutiva”; mas, como já observei, a sua declaração não tinha pretensões teóricas e, se a lermos com cuidado, veremos que, desde o princípio, o que realmente lhe interessava era manter viva a possibilidade, aberta pela bossa nova, de utilizar a informação da modernidade musical na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira. Ao afirmar a “linha evolutiva”, ele estava simplesmente se opondo àqueles que combatiam qualquer inovação na música popular. Ora, se eu estiver certo, a música popular não tem obrigação alguma: nem a de evoluir tecnicamente, como pensavam alguns vanguardistas, nem a de permanecer no ponto em que se encontra, como pensavam os defensores nacionalistas da sua “pureza”. Era contra estes que Caetano afirmava a “linha evolutiva”.

Vanguarda Vs. Resguardo

Assim, numa entrevista concedida a Augusto de Campos em 1968, Caetano afirma:

Quando cheguei ao Rio eu compartilhava de uma posição que se resguardara. Aos poucos fui compreendendo que tudo aquilo que gerou a bossa nova terminou por ser uma coisa resguardada, por não ser mais uma coragem. Todos nós vivíamos num meio pequeno, numa espécie de Ipanema nacional… E quando no Rio eu comecei a me enfastiar com o resguardo em seriedade da bossa nova, o medo, a impotência, tendo tornado a bossa nova justamente o contrário do que ela era, as coisas menos ‘sérias’ começaram a me atrair. E a primeira dessas coisas foi a que mais assustaria os meus colegas de resguardo: o iê-iê-iê. Passei a olhá-lo de outra forma… *

A noção de “resguardo” é, aqui, de extrema importância. Resguardo é o ato pelo qual, por medo ou impotência, se resguarda, isto é, se põe a salvo, se defende, se reserva, se poupa, se isola alguma coisa. Em arte, o que se quer resguardar são, ostensivamente, sempre as formas: as formas de se fazer e as formas das coisas que são feitas. Parece haver um medo de que se destruam as formas habituais. Pois bem, é fácil destruir coisas individuais, mas difícil destruir formas. Para destruir uma forma artificial, seria preciso destruir não somente todos os exemplares da forma em questão, para que não houvesse mais paradigmas ou protótipos que pudessem ser imitados, como seria preciso também destruir a técnica (ela mesma uma forma) de produzi-los: ora, para destruir uma técnica seria necessário destruir toda memória (escrita ou não) dessa técnica. Isso é, em geral, praticamente impossível. Por isso, normalmente nada é mais irracional do que o temor da destruição das formas. Na realidade, o que se teme não é tanto a sua destruição quanto a descoberta de que outras formas são possíveis: de que as formas habituais eram apenas habituais ou convencionais e não naturais. É para se manter a ilusão de que determinadas formas são naturais – ou, às vezes, sobrenaturais – que se tenta impedir a produção de formas alternativas. Teme-se, ademais, um efeito dominó na queda das formas: se algumas formas que se supõem naturais se revelarem apenas convencionais, que acontecerá com as demais formas convencionais? “Pois devemos nos resguardar”, diz Platão em A república, “de mudar para uma forma nova de música, por ser algo extremamente arriscado. De maneira nenhuma se mexem os modos da música sem que se mexam algumas das mais importantes convenções sociais e políticas”.

No polo oposto ao de Platão, muitos artistas de vanguarda do século XX denunciaram o perigo que representam a impotência e o medo para a evolução da sua arte. “A evolução”, afirmava Kandinsky, referindo-se à arte em geral, “o movimento para a frente e para o alto só é possível quando o trajeto está desimpedido, ou seja, quando não há barreiras no caminho… O novo valor [artístico] é alvo de risos e invectivas”.* Observe-se que a “evolução” a que se refere Kandinsky não consiste no que chamei de evolução técnica mas sim no que denominei elucidação conceitual. As barreiras que essa elucidação deve remover são os pre-conceitos em conseqüência dos quais é excluída da arte em questão qualquer forma que não corresponda a determinadas especificações: por exemplo, preconceitos segundo os quais toda pintura autêntica é necessariamente realista ou representacional. Continuemos a lê-lo:

Trata-se do horror de viver… A alegria de viver é a irresistível e constante vitória do novo valor. Só aos poucos o novo valor conquista os homens… e, quando ele se evidencia em muitos olhos, esse valor, que foi inevitavelmente necessário hoje, é transformado em muro erigido contra o amanhã. Toda evolução, ou seja, todo desenvolvimento interior e toda cultura exterior são, por conseguinte, um remover de barreiras. As barreiras são constantemente criadas a partir dos novos valores, que deitaram abaixo as antigas barreiras. Vê-se assim que o mais importante não é o novo valor, mas o espírito que nele se revela. E, mais ainda, a liberdade necessária para essa revelação. Vê-se assim que o absoluto não deve ser buscado na forma… A forma é sempre temporal, ou seja, relativa, pois nada mais é que o meio, hoje necessário, através do qual a revelação [artística] se manifesta, ressoa.*

O parentesco da posição de Caetano com a de Kandinsky é óbvio. Ambos consideram a transformação da arte um valor positivo. Kandinsky ataca o horror de viver que erige muros contra o amanhã; Caetano ataca a falta de coragem, o medo e a impotência que levam a bossa nova a se resguardar; Kandinsky evoca a liberdade necessária para remover barreiras; Caetano confessa sentir-se atraído pelas coisas menos sérias e que assustariam os seus colegas da bossa nova; quando, finalmente, Kandinsky elogia a alegria, como não pensar no próprio título da canção que lançou o tropicalismo?

O Tropicalismo enquanto elucidação conceitual da música popular

Em seu livro Verdade tropical, Caetano descreve o processo minuciosamente planejado pelo qual foi construída a canção Alegria alegria. Em determinado ponto, depois de contar que, inicialmente, tinha contemplado convidar a banda de iê-iê-iê de Roberto Carlos, o RC7, para acompanhá-lo na gravação (coisa que acabou não fazendo “mais por timidez do que por opção estética”), ele explica que era mais condizente com a estratégia tropicalista “utilizar uma ou outra sonoridade reconhecível da música comercial, fazendo do arranjo um elemento independente que clarificasse a canção mas também se chocasse com ela” do que fazer um esforço conjunto “no sentido de encontrar um som homogêneo que definisse o novo estilo”. “De certa forma”, continua ele, “o que queríamos fazer equivalia a “samplear” retalhos musicais, e tomávamos os arranjos como ready-mades. Isso nos livrou de criar uma fusion qualquer, uma maionese musical vulgarmente palatável”. * A exclusão da tentativa de encontrar um som homogêneo, à maneira da bossa nova, mostra a novidade radical do tropicalismo, situando-o não no âmbito da evolução técnica mas no da elucidação conceitual. Isso é evidenciado, na recapitulação de Caetano, pelo emprego do conceito de “ready-made”, que constitui, como se sabe, um dos marcos da arte conceitual.

O interesse pelo iê-iê-iê mostra que não passava mais – se é que já houvesse passado – pela cabeça de Caetano que a bossa nova projetasse uma linha de evolução técnica à qual ele pretendesse tentar dar continuidade. “Eu tinha consciência”, afirma ele, no parágrafo citado de Verdade tropical, “de que estávamos sendo mais fiéis à bossa nova fazendo algo que lhe era oposto. De fato, nas gravações tropicalistas podem-se encontrar elementos da bossa nova dispostos entre outros de natureza diferente, mas nunca uma tentativa de forjar uma nova síntese ou mesmo um desenvolvimento da síntese extraordinariamente bem-sucedida que a bossa nova tinha sido”.

Os tropicalistas estavam “sendo fiéis à bossa nova fazendo algo que lhe era oposto” não porque assim “preservassem” a “pureza” da bossa nova. Pensar isso seria esquecer que a própria bossa nova havia sido possível porque os artistas que a produziram foram capazes de “violar” a “pureza” do samba. Ora, a própria “pureza” do samba não passa de uma quimera, uma vez que, tendo sido produzido pela articulação e intermediação de ritmos, ritos, danças, instrumen-tos, paradigmas musicais etc. de diferen-tes proveniências africa-nas com, por outro lado, melodias, harmonias, versos, danças, instrumentos, paradigmas musicais etc. de dife-rentes proveniên-cias europeias, ele desde sempre apontou para a possibilidade de infinitas outras combinações de elementos de diversas origens, que dizer da “pureza” da bossa nova? * Ademais – e é o mais importante – uma tentativa de “desenvolver” a bossa nova, fosse bem ou mal sucedida, não arranharia em nada a síntese de João Gilberto / Tom Jobim, que continuaria a existir do mesmo modo, assim como esta não havia em nada arranhado a síntese anterior, isto é, o samba pré-bossa nova, que existe até hoje.

Que os tropicalistas estavam fazendo algo oposto, de certo modo, à bossa nova é uma evidência tanto para quem ouve as canções tropicalistas, quanto para quem lê a descrição, que acabo de citar, da construção de Alegria alegria, ou para quem assiste ao filme de alguma apresentação tropicalista em algum programa de tv. Por que, então, Caetano considera essas canções ou performances como “fiéis à bossa nova”? É que, ao fazê-las, os tropicalistas estavam precisamente utilizando a informação da modernidade musical na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira. Ora, desde o princípio, como já vimos, era nesse ponto que Caetano pretendia emular a bossa nova.

De qualquer maneira, é evidente que a novidade introduzida por Caetano não se encontra em desenvolver do ponto de vista técnico a bossa nova mas sim na elucidação conceitual tanto da música popular brasileira quanto da música popular em geral. Ele o faz ao produzir canções que possuem duas qualidades:

(1) ao invés de seguirem os modelos tradicionais da música brasileira (inclusive os da bossa nova), preferem experimentar coisas novas e “abrir as janelas / pra que entrem todos os insetos”, como ele diria em Janelas abertas # 2; e

(2) são consideradas por ele mesmo como pertencentes à MPB, e reconhecidas como tais pelo público.

Sem a segunda qualidade, as canções que ele produzisse, como o iê-iê-iê, não chegariam a afetar a MPB, que manteria o seu resguardo. Ora, o fato é que as canções tropicalistas não adquirem todo o seu sentido e a sua força senão quando são consideradas como modificação, agitação e transformação revolucionária da (genitivo objetivo e subjetivo) MPB, com a qual se confundem no momento mesmo em que dela tomam distância para comentá-la. O público brasileiro aceita essas canções como pertencentes à MPB por reconhecê-las como suas e por amá-las e admirá-las. Cabe aqui citar o Ezra Pound dos Pisan Cantos: “o que bem amas é tua herança verdadeira / o que bem amas não te será arrancado”. * As músicas tropicalistas são brasileiras demais e boas demais para serem excluídas da MPB.

Em suma, a elucidação conceitual efetuada pelo tropicalismo mostra que a MPB não tem limites pré-estabelecidos, pois não tem essência. Tal elucidação destrói as bases sobre as quais se consideravam como essencialmente ou privilegiadamente brasileiros determinados gêneros ou formas, em detrimento de outros; por outro lado, ela proporciona ao compositor / cantor uma abertura sem preconceitos não só a toda a contemporaneidade mas também a toda a tradição, de um modo que não era sequer concebível, quando imperava a idolatria ou o fetichismo desta ou daquela forma tradicional. É por isso que o tropicalista é capaz de trazer à tona gêneros, canções e cantores que se encontravam condenados ao ostracismo pelos representantes involuntariamente provincianos do bom-gostismo.

Mas um reparo precisa ser feito à afirmação de que o tropicalismo, como a bossa nova, utilizou a informação da modernidade musical na recriação, na renovação, no dar-um-passo-à-frente da música popular brasileira: é que não era apenas a informação da modernidade musical que ele trazia para a MPB mas a informação da modernidade simplesmente: a informação da modernidade musical, poética, cinematográfica, arquitetônica, pictórica, plástica, filosófica etc. Nesse contexto, a informação da modernidade deve ser entendida como a desfolklorização e desprovincianização da música popular, isto é, como a sua inserção no mundo histórico em que se desdobram as artes universais: nada menos do que a proclamação da sua maioridade.

* V., p. ex., Caetano Veloso, Verdade Tropical (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), cap. “Alegria, alegria”, p.156.

** Cit. p. Augusto de Campos, “Boa palavra sobre a música popular”, in Balanço da bossa (São Paulo: Perspectiva, 1978), p.63. Grifado por mim.

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