Eubioticamente atraídos

as tropas da tropicália e do tropicalismo

as tropas da tropicália e do tropicalismo

Visões estrangeiras

Regiões e regionalismos
As tropas da Tropicália e do Tropicalismo
Charles A. Perrone – Universidade da Flórida
Publicado originalmente em 1999 para Studies in Latin American Popular Culture

Nego-me a folclorizar o meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas
Caetano Veloso, 1967

…topos de conciliação dos contrários, da inconciliação dos mesmos… 
Waly Salomão, 1987

Com o encerramento do século XX, inúmeras observações do milênio ocorrem mundialmente. O Brasil celebra o aniversário de 500 anos do “encontro”, a “descoberta” do novo mundo de Pedro Álvares Cabral. Reflexões sobre formação de estado, legados históricos e identidade nacional afluíram no país. Um exercício esperado na tomada de ações é retroceder na trajetória da cultura do Brasil, desde os primórdios dos tempos coloniais até a atual era da globalização com seus ansiosos adeptos. Em virtude dos imperativos públicos do modernismo e das extensas mudanças que resultaram das revitalizações dos anos 20 e 30, aquele monumento permanece o primeiro ponto de referência para as artes. No que trata da cultura da metade do século XX, é essencial considerar três fenômenos por suas qualidades inerentes e sua inserção nas esferas transnacionais de ação, avaliação e reconhecimento: a poesia concreta, na área restrita, todavia intelectualmente prestigiada da poesia; o futebol(1958, 1962, 1970), campeonatos mundiais – copa do mundo – numa área de interesse universal, apesar da limitada entrada no Estados Unidos, e a Bossa Nova, no domínio de considerável consumo que é a música popular, com extensão significativa, neste caso, também nos Estados Unidos.

Uma década após a poesia concreta, Pelé e a Bossa Nova emergirem, surgiu o prelúdio esplêndido conhecido como Tropicália ou Tropicalismo, um divisor de águas na arte contemporânea brasileira, cuja importância foi comparada à Semana de Arte Moderna de 1922, que lançou o modernismo. O trigésimo aniversário da aventura Tropicalista foi comemorada em 1998 com uma série de eventos e meditações sobre o breve, todavia influente movimento que, assim como a maioria dos projetos artísticos originalmente contestatórios que se tornam um sucesso, foi incorporado à tendência dominante. Discussões renovadas sobre a Tropicália ganharam forte ímpeto com a publicação de Verdade Tropical (1997), memórias variadas do cantor-compositor Caetano Veloso, quase que unanimemente considerado a principal voz do Tropicalismo. Festividades Públicas temáticas (Carnaval em Salvador, 1998) e eventos acadêmicos nos três continentes prestaram homenagem e exploraram ramificações das ocorrências do final dos anos 60, na música, cinema e demais frentes que constituíram o Tropicalismo. Marcos criteriosos de críticos relacionados (ex. Augusto de Campos, Roberto Schwarz, Silviano Santiago, Alberto Vasconcelos, Celso Favaretto) são revisitados em novas deliberações sobre a lenda e canonização de Caetano Veloso, a institucionalização dos momentos do tropicalismo, ou suas reflexões em tendências atuais, como o movimento mangue no Recife. O discurso metafórico e híbrido da música no mangue beat, em particular, são reminiscências de experimentos em música e desempenho no coração da Tropicália. Esta produção Nordestina é outra variante da Música Popular brasileira (MPB) contemporânea que mais uma vez está nos palcos e exposta internacionalmente no final dos anos 90, como visto abaixo especificamente em relação à Veloso e companhia.

Como o tropicalismo perpetuou e tornou-se contorno fundamental de referência nos tratos culturais brasileiros da atualidade? Por que esta conflagração nas artes tem um impacto tão intenso ainda hoje? Porque estes episódios musicais e teatrais tiveram significados tão inflados no final dos anos 60? Essas são questões que têm motivado e ainda provocam críticas ao fenômeno do Tropicalismo, especialmente nesta conjuntura temporal. O presente estudo primeiro abrange a questão da delimitação do Tropicalismo/Tropicália, sua caracterização em termos amplos ou mais estreitos, e procedem na avaliação dos vários níveis de operação, escopo de ataque, ambições e conquistas. Uma das bases de referência mais comumente evocada em relação à articulação do Tropicalismo é a antropofagia, o canibalismo cultural legado pelo modernista Oswald de Andrade. Essas conexões e ligações com os poetas concretos são aqui examinadas em relação às questões inter-relacionadas de identidade nacional e ao valor da contemplação da beleza. A idéia de “poesia para exportação”, além da pertinência a um tipo assertivo de nacionalismo existente no tropicalismo dos anos 60, finalmente, oferece uma ponte à recepção da Tropicália fora do Brasil nos anos 90.

Termos, Tendências, Transformações.

Os termos gêmeos Tropicália e Tropicalismo, totalmente aplicados por alguns usuários, possuem diversas denotações e conotações. Suas fronteiras nominais, disciplinares e temporais não comprimem problemas epistemológicos ou ideológicos, mas sim declarações ou esclarecimentos cujo intuito e abrangência são, em termos pragmáticos, instrumentos para referência e determinação de posicionamento. Como uma tendência ou atitude generalizada, o empreendimento Tropicalista contém as artes visuais, música popular, teatro, filmes e literatura. A primeira menção é dada porque o nome “Tropicália”, que Veloso adotou para sua própria plataforma musical visionária, na verdade surgiu por cause de uma instalação (1962) no Museu de Arte Moderna, de Hélio Oiticica, um artista singular que demonstrou afinidade com os esforços vindouros em outros campos. A centralidade auto-afirmada e a única mistura de música popular que ocorreu no Tropicalismo dificilmente pode ser questionada, com pelo menos em acadêmico respeitado no âmbito cultural tomando a posição de que a extensão do movimento a outras áreas não é justificada. O papel do teatro é ainda confinado essencialmente à versão do Rei da Vela, de Oswald de Andrade, realizada por José Celso Martinez Correia. Esse estágio teve grande impacto em Veloso e foi analisado de forma bastante útil nos termos de tendência. Os vínculos com a literatura são também limitados: jornalistas e colunistas (incluindo Nelson Mota e o poeta lírico Torquato Neto) especularam sobre o movimento nascente, uma subcorrente em poesia foi descrita, e algumas obras de ficção foram estudadas como tendo uma voz tropicalista. Em filmes, o Tropicalismo é uma presença significativa. O épico de Glauber Rocha, Terra em Transe, exerceu influência tanto no diretor de o Rei da Vela e em Caetano Veloso, parceiro na estética de Rocha. Randal Johnson analisou filmes notando o inesperado sucesso de Macunaíma (1969), em conjunto com o “terceiro estágio do Tropicalismo no cinema novo”, enquanto Ismael Xavier e Sampaio examinaram o plano de cinema para questões especiais no tropicalismo.
Historicamente, a abordagem multidisciplinar foi encorajada pelo fato de que fundamentalmente (e mais amplamente citado) em críticas, Schawarz realmente considera drama e filme. Como era gostoso meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), com ligações com o Tropicalismo via antropofagia, surgiram após a fase central do movimento o qual Schwarz e outros concentraram. Se os termos Tropicália/Tropicalismo são, em sua maioria, associados a Veloso e Gilberto Gil, dentre outros, e se geralmente é acordado que a música popular é o principal local desta manifestação cultural, os limites operacionais da MPB Tropicalista podem variar um pouco mais de um ano (final 1967 até 1968) até meia década(1967-1972). A relevante série de apresentações musicais e gravações iniciou-se com o terceiro festival da MPB da TV Record (outubro de 1967). Naquela época, o sufocante AI-5 (dezembro de 1968) começou a ser implantado, o esforço efêmero e experimental do entretenimento já havia sido declarado morto (“O Tropicalismo está morto”, da TV Tupi, em novembro de 1968). Os LPs produzidos por Caetano Veloso e Gilberto Gil antes de serem exilados (meados de 1969) continuaram no estilo de suas primeiras gravações tropicalistas, autorizando uma extensão do movimento na canção. Favaretto e outros críticos analisaram um repertório que engloba trabalhos tão tardios quanto o memorável Araçá Azul (1972) de Veloso, quando o movimento já estava definitivamente historicizado. Tais gravações são lucrativamente desconstruídas, se não necessariamente como parte do Tropicalismo, então com relação às estruturas que constituíram o movimento. Sempre que o imediatismo esteja em questão, contudo, o quadro mais relevante é 1968, um ano marcado pelo anti-establishment e por atividades da contracultura no plano global.
Veloso e Gil preferiram o nome Tropicália a Tropicalismo, porque o primeiro era diferenciado e não apresentava seu projeto simplesmente como outro -ismo numa série de propostas artísticas. Tal lógica acompanha o grupo Noigandres de São Paulo, nos anos 50, que preferiu o termo poesia concreta a concretismo. O nome Tropicalismo tornou-se moeda comum apesar dos desejos dos artistas, e alguma confusão pode surgir quando produções pós 1968 (ou pós 1972) de Gil, Veloso ou outros são chamadas de tropicalistas. Na medida em que o movimento como intervenção calculada, atividade utópica ou ação circunscrita está em questão, a terminologia pode ser fator determinante. Na sequência, preferência será dada ao termo Tropicalismo para se referir à soma de fenômenos multidisciplinares em um espaço de tempo mais amplo, enquanto Tropicália será empregada com respeito à “fase heróica” (final 67 – inicio 69) da música popular.

Objetivos e Papéis

O Tropicalismo decretou uma consciência de inquietude e uma vontade de explorar, colocando em risco valores artísticos já aceitos, tanto aqueles dos círculos convencionais como aqueles da oposição – “ensaio geral de socialização da cultura” – baseado em um modelo popular-nacional. Isso afetou uma revisão crítica da cultura brasileira e acelerou novos paradigmas de pluralidade, permitindo ligações diversificadas com o folclore e semelhanças poéticas da vanguarda industrial. Um gênio “provinciano” criativo (os principais participantes eram provenientes da Bahia) chocou-se e foi ativado, por assim dizer, pelas modernas experiências urbanas da tecnologia e por uma ditadura de pretensões tecnocráticas. Num esforço ilimitado de revitalizar as artes brasileiras, o Tropicalismo construiu uma estratégia neo-atropofágica de contraposição e apropriação. Schwarz primeiramente ponderou que o apelo ao contraste e o foco nas contradições da sociedade nacional, a desconstrução do arcaico e do moderno, constituía uma alegoria. Ele viu ainda a ironia da hegemonia artística de esquerda no meio da dominação política de direita. Favaretto sintetizou efetivamente o efeito do Tropicalismo: “expôs as polarizações e impasses a que tinham chegado às discussões culturais, estéticas e políticas da arte nos anos 60”. A nova música popular de Veloso e Gil, acima de todos, foi “uma prática desconstrutora e descentralizadora operada pelos efeitos críticos derivados da mistura de elementos conflitantes” (“Rastros” 31). Esta prática foi micro e macro -; tais acréscimos poderiam ser realizados em um quadro ou uma cena final, impresso ou no palco, na mesma música, em som ou palavra ou combinações disso, ou em repertório de desempenho e ou na gravação de uma provocativa visão sincrética do Brasil.

O Tropicalismo, especialmente a Tropicália, foi uma opera aperta, um convite à reflexão. Sempre questionou e às vezes quebrou binários comuns, dicotomias de valor, divisões que orientavam os debates em meados dos anos 60, estruturas maniqueístas relacionadas à produção e ao consumo das artes: velho/novo, jovem/adulto, internacional/nacional, desenvolvido/subdesenvolvido, comprometido/alienado, religião/cultura, poesia lírica/música lírica(texto), bom gosto/kitsch(cafona), e alto/baixo ou erudito/popular (de massas).

Hierarquias e Pontes

Na era do pós-modernismo, estudos culturais, multi-culturalismo, democratização, globalização e outras aspirações, houve uma grande diminuição da tendência dos séculos passados de perceber a estética e crítica ocidental pela hierarquização das formas, práticas artísticas e artistas. Se para alguns, as duas espacializações mais comuns (centro/periferia, alto/baixo) se tornaram (pelo menos nominalmente) uma questão muito menos pertinente ou não considerada, existem preconceitos profundamente enraizados que afetam a produção e recepção do espectro das artes. Noções discriminatórias de valor social ou apropriação do estudo de tais tópicos no Brasil continuam além do reconhecimento necessário, de complexos objetivos diferenciados e do entendimento das relações nas diferentes manifestações de tais práticas expressivas.

Nos anos 60, as tendências de classe e distinções entre os campos foi, com efeito, a norma herdada. O cinema (a sétima arte) foi amplamente legitimado ao lado das artes, música, literatura, teatro com suas capitais culturais associadas. A música popular atingiu um novo status, um prestígio entre as artes, no turbulento Brasil dos anos 60. Um processo foi colocado em prática nos anos 50 pelo poeta-diplomata Vinicius de Morais, quando ele direcionou seu talento à composição de canções. A sofisticação da Bossa Nova não poderia passar despercebida pelos guardiões dos portais do reconhecimento cultural. A geração da MPB de Chico Buarque, por sua vez, atingiu níveis excepcionais a então chamada música “popular”. Numa crítica contemporânea, por exemplo, o compositor e artista musical Gilberto Mendes ilustrou com “Ponteio” (Edu Lobo – Capinam, 1967): “tem todo cuidado de fatura e acabamento de uma música erudita nacionalista, com a grande vantagem de ser popular, realizado, autêntico”. Com considerável perspectiva histórica, Ulhoa (1972) destaca que em geral a “estética na MPB emula a colisão da arte musical ocidental, o que significa que a MPB é considerada arte ou erudita”. No final da década, Augusto de Campos extrapolou ao proclamar: “Desde João Gilberto e Tom Jobim, a música popular deixou de ser um dado meramente retrospectivo, ou mais ou menos folclórico, para se constituir num fato novo, vivo, ativo, da cultura brasileira, participando da evolução da poesia, das artes visuais, da arquitetura, das artes ditas eruditas, em suma.”

O erudito na Tropicália emerge tanto em sua atenção à textualidade como em seu engajamento nas figuras não convencionais nas artes musicais – Julio Medaglia, Damiano Cozzela e, sobretudo Rogério Duprat – que aplicou idéias vanguardistas a arranjos populares (pop). As inovadoras implementações tropicalistas concluíram a inovação da música urbana popular além do estagio convencionalmente concebido como “popular”. Os repertórios da MPB, apesar de consumidos por muitos pela mídia de massa, eram de várias maneiras intelectualizados, cheios de nuances e complexos. As idealizações musicais da Tropicália em particular eliminaram o senso de POP como irremediavelmente conservador pois os artistas colocaram vasta quantidade de material literário nas músicas, por vezes de modos paródicos ou satíricos, e exercitaram significantes novos tipos de plurisignificação em poesias musicais e algumas abordagens não-discursivas. Este contexto nas palavras de Favaretto (“Canção” 21) “… levou a atividade musical a assumir posição semelhante, em dignidade artística e prática cultural, daquelas que vinham ocorrendo acaloradamente no teatro, no cinema, na literatura e nas artes plásticas….Realizou no Brasil a definitiva autonomia da canção, estabelecendo-a como um objeto enfim reconhecível como verdadeiramente artístico.”

Ao acessar o impacto da Tropicália, Liv Sovik comparou mudanças nas percepções anglo-Beatles, especialmente com as misturas pop e clássicas de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, com as realizações de Veloso e a rica fonte do trio de Rock os Mutantes: “os Beatles – sem tradição para essa mistura – conseguiram dignificar a música popular de massas sem borrar as fronteiras, enquanto a Tropicália conseguiu estabelecer a hibridação erudito/massivo, escandalosa na época, apoiada na hibridação erudito/popular já existente no Brasil”. Para Sovik, este detalhamento do alto/baixo ilustra uma interpretação instigante da aventura Tropicalista como pós-moderna.

O que moveu muitos outros analistas da MPB e da Tropicália desde o final dos anos 60 não foi necessariamente o desejo de prestar igual atenção aos elementos alto e baixo, nem a incorporação de uma alta cultura de informação de massa (literatura, artes visuais, concertos musicais), mas sim, como esta facção de supostas culturas “baixas” ou “populares” operaram em caminhos visuais com relação ao anterior. Décio Pignatari conceituou a poesia concreta como um objeto útil, como uma intensa forma de produção poética que pode, contudo, ser apreciada, mesmo que intuitivamente de modo muito parecido com um comercial conciso. Para expressar a idéia de arte, especialmente a arte da vanguarda, apta para significante consumo para inventar o termo `prodossumo´. As músicas de Veloso e outros Tropicalistas, para Pignatari e Augusto de Campos marcaram um paralelo: estavam prontos e resolutos para a mídia de massa, todavia informados pelos aspectos sonoros e históricos, poéticos e políticos que os posicionaram em outro plano de produção estética como um todo.

Havia realmente uma curiosa coexistência na Tropicália de um perfil de cultura de massa (completo com o suporte da indústria da cultura), mídia hype, encorajamento da moda e de modismos e um discurso muitas vezes de “qualidade literária” ou lado a lado com as “artes superiores”. Apesar desse esforço, uma anomalia astuta de aparência e sobrevivência da indústria do entretenimento, constantemente revitalizando sua autopromoção, não falhou em ter o imediatismo do pó e uma meditação do rádio/TV e imprensa. Gil chocou alguns de seus colegas idealistas da MPB, as futuras idéias nos dias quando as primeiras idéias tropicalistas foram imaginadas, quando insistiu que deveriam aceitar a música como uma mercadoria e a inevitável realidade comercial de sua marca. A composição e o desempenho desta conscientização provaram ser um dos primeiros traços de distinção da Tropicália, seu “maior acerto” na estimativa de um analista (Teixeira). Veloso até relata este aspecto num senso de progresso baseado no sistema de classes: “Uma das marcas de Tropicália… foi justamente a ampliação do mercado pela prática da convivência na diversidade, alcançada com o desmantelamento da ordem dos nichos e com o desrespeito as demarcações da classe e de graus de educação… saudável destruição de hierarquias” (Verdade Tropical 281). Com a aspiração de fazer um produto com consciência artística que poderia resultar em novas contribuições, para música e para um discurso mais ambicioso de amplitude nacional, mas também personificar o mercado do senso-comum e a qualidade do pronto-para-usar apreciada por consumidores comuns, a Tropicália assumiu uma pose “erudita” que pode ser improdutivamente entendida como “pretensiosa”, o que foi problemático para difundir o consumo do material Tropicalista, com suas contradições internas.

Soluções estavam disponíveis em composições polivalentes, como “Baby” (Veloso, 1968), com seus refinados tons de Bossa Nova num encerramento pop e que, enquanto aparentemente presa ao repetitivo paradigma de namoro adolescente em um nível “paralelo”, personifica, por assim dizer, um “corte epistemológico” e oblíquo comentário sócio-cultural. Aqui e em outros lugares, torções com uma provocante marca fazem a diferença nas noções de mal-gosto e cafona, que são produtivamente revitalizadas. A Tropicália pode limitar potenciais para o Kitsch, sinalizando-o e evidenciando-o para a contemplação. O Kitsch é visto como uma versão fácil de um produto artístico que foi uma vez de vanguarda e agora ilude consumidores ansiosos, ou como um diluidor de temas culturais originais, uma redução de algo superior, uma banalização acrônica de um modelo estabelecido. No Tropicalismo, a aceitação, adoção, inserções em posições não convencionais e reabilitações articuladas de itens como o ícone “vulgar” de Carmem Miranda, o melodrama do cantor Vicente Celestino, ou a bombástica figura televisiva do apresentador Chacrinha, questionam suas caracterizações como tal e superam ou reconfiguram os parâmetros do bom gosto.

Banda Larga: O escopo semi-milenar do Tropicalismo

Uma entrada de “Rock Lírico” na enciclopédia de poesias e poetas da Princeton afirma formas pelas quais textos de músicas anglo-americanas demonstraram poesia, incluindo intertextualidade e um extenso alcance temático. Além de seus freqüentes empregos de dispositivos poéticos, as músicas da Tropicália foram notoriamente “amplas” em suas citações e margem de referência. Todas cobriram o curto espaço de tempo da historia e literatura brasileira, e foram além. As gravações de “Tropicália”, como muitos já notaram, iniciam-se com uma despreparada, todavia extremamente relevante declamação, parodiando “A Carta de Pedro Vaz de Caminha” (1500). Em uma notória performance de “É Proibido proibir”, por outro lado, Veloso recita seleções da (milenar) mensagem, de Fernando Pessoa. Na outra ponta do arco diacrônico, Tom Zé entra no quarto Festival da MPB (1968) com a avançada música “2001”, uma moda de viola com texto liberacional. Momentos cinematográficos do Tropicalismo ativaram calibres semelhantes. Como era Gostoso meu Francês, situado no inicio das décadas da colônia, conectou a música popular por estratégias antropofágicas da intenção anti-regime. O futurista Brasil Ano 2000, dirigido por Walter Lima Jr., com trilha sonora de Gilberto Gil, é deliberadamente um filme Tropicalista, concebido ao final dos anos 60. É coincidentemente difícil que a contra-capa da principal obra criativa, o álbum conceitual Tropicália ou ‘panis et circensis’ (maio 1968), seja estruturada como um roteiro experimental de um filme com referências tão díspares quanto as fundações latinas da civilização luso-brasileira e a antologia Noigandres da poesia concreta.

Haja vista o itinerário do Tropicalismo, o próprio Haroldo de Campos caracterizou-o como “Museu crítico do tropico”. Para sua parte, o participante poeta lírico José Carlos Capenan (1959) usou a frase “Metralhadora giratória da Tropicália” para dar uma idéia de expansão dos alvos e a intensidade do ataque. Composições dele, como “Soy loco por ti América” e “Miserere Nobis” caminharam junto com outras de Torquato Neto para constituir um inventario de “Relíquias do Brasil” para serem estudadas e examinadas sob o olhar Tropicalista. A canção fundamental nesse caso é “Geléia Geral” (Gil Neto), cuja letra multifacetada tende a justaposições e misturas (esp. O refrão “bumba-iê-iê-boi”). Itens concretos e simbólicos do texto carregado incluem a bandeira, a manha tropical, a Bahia Barroca, a indispensável mulata, alusões paródicas ao romântico lugar-comum de Gonçalves Dias e citações em concordância com Oswald de Andrade. Na seqüência dessa canção, Dunn conclui que “a alegoria Tropicalista” das contradições históricas brasileira constitui um local de convergência da ironia e do hibridismo. Nesse sentido, os “relicários do Brasil” de um patrimônio do passado e uma presença autoritária, não estavam apenas “sem território”, estavam ainda encravados pelas “ruínas da história” e expostos em praça pública. O resultado de tal escavação benjaminiana personifica uma intenção incomum num espaço de contemplação que não está restrito às raízes rurais ou novidades urbanas, nem as circunscrições nacionais ou ao cosmopolitanismo transacional. Relicários são objetos representativos, itens culturais, tendências e comportamentos (como o ataque à complacência da classe media em “panis et circenses” – Gil/Veloso), todos valorizados e desvalorizados pela operação Tropicalista. Esta longa gama de implicações ressonou ao movimento expositivo, gesto essencial que precede um pensamento desmantelador. Uma projeção amplo-angular e de longo alcance do Tropicalismo ilustra seu efeito de multiplicidade: manifesta um desejo histórico de lembrar, refletir e visionar. Tal desejo conecta o tropicalismo ao concretismo e Oswald.

AÇÃO: Antropofagia, Concretismo, Tropicalismo

Existe uma série de ligações situacionais e textuais entre Veloso, outros Tropicalistas e Oswald, tanto na herança Modernista e seu repertório atual. A ebulição da cultura sessentista tem sido chamada de “a retomada oswaldiana” (N. Ferreira), e a conexão com a nomenclatura vanguardista de ‘modernismo’ é muito significativo para compreender a Tropicália e suas ramificações. Seus trabalhos são diversas vezes remanescentes do orgulho, deboche, estilo contrastante ou estrutura do primeiro manifesto de Oswald e livros de verso telegráfico. A Poesia Pau-Brasil é bem lida, por exemplo, não como uma coleção padronizada de poemas, mas como uma seqüência, e o LP coletivo Tropicália é um conceito de álbum com uma sucessão de composições interconectadas sem quebras entre as músicas. Em termos de atitude e conseqüências, é útil aplicar ao tropicalismo a interpretação tripartida de Benedito Nunes do programa figurado no segundo manifesto de Oswald:

Como símbolo da voracidade, a Antropofagia é ao mesmo tempo metáfora, diagnóstico e terapia: metáfora orgânica, inspirada na cerimônia guerreira da imolação pelos tupis do inimigo valente apresado em combate, englobando tudo quanto deveríamos repudiar, assimilar e superar para a conquista de nossa autonomia intelectual; diagnóstico da sociedade brasileira como sociedade traumatizada pela repressão colonizadora que lhe condicionou o crescimento… e terapia… contra os mecanismos sociais e políticos, os hábitos intelectuais, as manifestações literárias e artísticas… sob forma de ataque verbal, pela sátira e pela crítica, a terapêutica empregaria o mesmo instinto antropofágico outrora recalcado, então liberado numa catarse imaginária do espírito nacional. (15-16)

O Tropicalismo, um esforço criativo sem ensaios, não tem posição na visão geral intelectual da antropofagia de Oswald, mas sim com musicalizações veementes de idéias-chave para realmente ecoarem como parte de um complexo cultural, tanto imediatista (anos 60) como em larga escala (século XX). A mera adoção de guitarras elétricas e ícones musicais anglo-americanos – Veloso e demais têm de reconhecer – não constitui uma antropofagia; conceitualização, re-elaboração consciente e contextualização são necessárias. As ramificações das aplicações são pessoais, generalistas, profissionais, interdisciplinares e políticas.

A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos ‘comendo’ os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos. Procurei também – e procuro agora – relê-la nos textos originais, tendo em mente as obras que ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia e tal poética surgiram. Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre a experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos dos anos 60. E, se Gil, com o passar dos anos, se retraiu na constatação de que as implicações ‘maiores’ do movimento – e com isso Gil quer dizer suas correlações com o que se deu em teatro, cinema, literatura e artes plásticas – foram talvez fruto de uma super-intelectualização, eu próprio desconfiei sempre do simplismo com que a idéia de antropofagia, por nós popularizada, tendeu a ser invocada.” (Verdade tropical 247-248)

A Tropicália claramente envolveu a voraz informação estética de outros países e de fora das esferas comuns da música popular num esforço de estabelecer um novo tipo de autonomia. Tal apropriação foi conectada a uma percepção da segunda geração de nacionalistas da Bossa-Nova, como desnecessariamente xenofóbicos e, como efeito, traumatizados pela condição de subdesenvolvidos, provavelmente exarcebada pela repressão do governo militar. Com respeito ao primeiro mundo, o núcleo artístico Tropicalista foi pró-ativo e instrumentado com senso de higienização, combatendo noções de vergonha ou desvantagem relativa. O movimento criticou, Veloso disse em retrospecto, “um nacionalismo que parece inocente e defensivo”; ele e seus colegas suspiraram ações, para agir com uma “atitude crítica numa perspectiva cultural, uma atitude agressiva, um nacionalismo nem passivo, nem defensivo”. Em inúmeras ocasiões, Veloso fez referência à futilidade da auto-percepção como periférica, como meras vitimas do imperialismo e da penetração cultural. “Assumimos uma postura imediatista de “estar no mundo” – rejeitamos o papel de um país de terceiro mundo vivendo nas sombras de países mais desenvolvidos”, ele continua: “não nos sentimos humilhados pela presença de influencias culturais de países mais ricos…intelectualmente ou artisticamente inferior ou ofendido”. Apesar de Oswald e outras vertentes, o jovial Veloso e companhia tiveram a esperança de revigorar a auto-estima que poderia ser proveitosamente expandida para outros. Eles buscavam a noção de empowerment em conjunto com maturidade artística para eles mesmos e para o meio no qual operavam. Sua busca daquela que poderia mais tarde modernizar ainda mais seu campo – a Bossa Nova de João Gilberto foi um grande avanço privilegiando um espaço de operação transregional e transnacional. O desejo histórico que manifestaram veio ao encontro do mesmo espírito de Oswald e da poesia concretista, com implicações consideravelmente mais amplas que uma tela de cinema ou um palco de festival.

Desde a independência e o romantismo, as nações latino-americanas têm compartilhado uma concepção da literatura como uma ferramenta para provar seu valor, para trazer conscientização, para impregnar lealdades, para construir sociedades e nações. No caso do Brasil, Antonio Cândido chama esta missão literária de tradição empenhada. Esta tarefa motivadora implicou amplamente no cultivo do que é indígena, natural ou endêmico às Américas, como em uma corrente central da poesia do modernismo e no romance de trinta, no regionalismo da ficção neo-realista dos anos trinta. Cândido ponderou a originalidade baseada no até então chamado de conteúdo nativo em “Literatura e Subdesenvolvimento”. Um ponto central em comum é que “os mais sinceros nativismos correm o risco de se tornar uma manifestação ideológica do mesmo colonialismo cultural que seus praticantes rejeitariam com base na razão pura, e que exibe uma cujos praticantes poderiam rejeitar no plano da clara razão, e que exibe uma situação de subdesenvolvimento e conseqüente dependência” (135). Com a virada da década de 70, Candido dá continuidade à questão do nativismo, afirmando que ele havia ganhado novas nuances, e as “utopias de originalidade isolacionista não mais sobrevive como atitude patriótica” (132). Além disso, acreditava ser simplesmente uma ilusão falar de cortar contato com a Europa. Em comentários também de grande relevância aos debates dos anos 60, Cândido afirmou que poder-se-ia enfrentar a questão das influências culturais com calma e sem paradoxos, embora permanecesse contra as tragédias do sub-desenvolvimento e a favor de mudanças sociais fundamentais. Cândido dá ainda o exemplo do concretismo brasileiro, especialmente na forma pela qual opera “uma redefinição do passado nacional”. Com sua ênfase na “invenção” em Oswald e em outros artistas radicais, em conjunto com amalgamas neo-teórico-criativos e seleção de bases teóricas, o concretismo realmente tornou-se um inexorável ponto de referência, não apenas para poetas brasileiros, mas também para a cultural intelectual expressiva como um todo.

A preocupação com o fortalecimento nacional, associada ao modernismo, voltou-se ao concretismo de formas bastante diferentes. As defesas da poesia concretista contra denúncias de alienação apelaram ao primitivismo do Pau-Brasil de Oswald, o qual buscou uma “originalidade nativa” na fabricação de uma moderna “poesia para exportação” (nível de qualidade, se não literário), para servir como modelo de um fluxo-reverso, e para sua antropofogia, a qual propôs assimilação crítica da informação estrangeira e a re-elaboração em termos nacionais (adicionalmente na forma continuada de Nossos Clássicos). Pontuando a tecnologia textual e o ambiente industrial, os poetas concretistas colocaram um espaço entre eles mesmos e inspirador Oswald, com seu índio-americano e fontes naturais de metáfora. Assim, eles mais efetivamente re-canibalizaram os poetas nacionais e internacionais, liderando seus campos de esforço de vanguarda, realmente mudando o rumo do fluxo da informação, e tornando-se um sucesso. Muito preocupado em distinguir material de trabalho auto-chtonous, o grupo de Noigrandes desenvolveu novos sensos de “qualidade exportação” e agregação de valor técnico, evidenciando realizações modernistas de alcance nacional. Criando uma opção ao esteticismo da metade do século (formalista, verso neo-Parnassiano) e para orientações voltadas à ética no campo das artes, o concretismo elaborou um contra-modelo do lírico que se misturou às fontes locais e globais, tanto em novas obras textuais como em conjuntos de teorias evolutivas, apesar de estabelecer novos parâmetros para a discussão de cultura num período extremamente preocupado com questões do colonialismo e sub-desenvolvimento.

Além disso, colocando a autenticidade autóctone em perspectiva relativa, o tropicalismo, como a antropofagia e a poesia concreta, elaborou contra-modelos experimentais e iconoclásticos, posicionamentos radicais em relação a expressões líricas convencionais, confrontação dos valores do establishment e reação à cultura do imperialismo. Questões comuns de vanguardismo e auto-conceitualização em última análise compreendem afirmações que re-definem e re-configuraram um campo de esforço, em imagem e idealização, com implicações para a nação como um todo. Notando a persistência dos debates sobre a vanguarda no Brasil nos anos 80, Holanda encontrou o mais claro efeito da discussão contínua ao inevitável retorno do tema da identidade nacional. As maiores rupturas através da história das artes no Brasil ocorrem nestes momentos quando a relação entre a metrópole e a colônia são questionadas num modelo radical em busca de independência cultural. Um movimento pode ser entendido como ‘fundamental’ neste caso quando atualiza a tensão entre a identidade cultural brasileira e moderniza impulsos pelo prisma da mudança. Foi o que ocorreu com a antropofagia e a poesia concreta, e com o movimento eclético do tropicalismo.

O concretismo se auto-organizou de forma separatista com seu poder estrutural e, por assim dizer, pela “diversidade da artificialidade”, enquanto em termos de poesia política atribuiu o problema de identidade ao nacionalismo por um prisma diferente. Para usar a metáfora da iluminação, pode-se dizer luz industrial ao invés de luz natural, preferência da maior parte dos Modernistas, pelos poetas engajados e pelos produtores musicais dos anos 50 e 60. Com a integração de sua linha de frente num circuito internacional e com sua ênfase pró-ativa na exploração modernista de recursos intelectuais e técnicos, independentemente da origem, o concretismo auxiliou a re-configurar a nação em termos culturais de forma positiva. Com sua insistência na teoria, reconsiderações históricas e tradição alternativa, a vanguarda concretista “intencionalmente engajou-se numa missão de civilização que resultou na representação de um projeto de modernidade”. É nesse sentido que o concretismo está alinhado com a tradição empenhada, a tradição nacional e continental de engajamento no campo das letras.

Na medida em que existem homologias e paralelos de atividade e atitude entre o concretismo e o tropicalismo, este último, com seu próprio projeto de modernização, participa ainda da construção da ética da nação. A abordagem Tropicalista fez as artes pressuporem uma visão desrespeitadora, todavia edificante, do Brasil oficial e da versão nacional-popular de resistência ao poder constituído. Em termos de manipulação técnica do conhecimento ou organização de uma taxa de câmbio estética, onde a poesia concretista esteve em primeiro plano, a Tropicália não inovaria do mesmo modo, pois a Bossa Nova já havia estabelecido sua marca internacionalmente. Ainda assim, havia amplo espaço para iniciativas em termos de orientações contra a corrente (ser eternamente desafinado) e conceitualizações da música popular, especialmente como um registro delicado do sentimento nacional/nacionalista e da criatividade brasileira. Ainda que produzido em quantidades limitadas, a música iluminadora da Tropicália, com suas múltiplas vozes e vocais, foi um refletor ainda maior que a Bossa Nova. A plataforma musical do tropicalismo foi ainda vislumbrada como um ponto de partida para as intervenções em relações culturais, em discurso nacional, que Veloso caracterizou, no âmago oposto de suas lembranças, como “um desvelamento do mistério da ilha Brasil”, com implícita “responsabilidade pelo destino do homem tropical” (Verdade tropical 16, 501). Tais declarações levaram Ridenti a declarar que as críticas do Tropicalismo ao nacional-popular não implicavam em quebra total com o nacionalismo, mas sim uma dissidência, uma variante na qual “a preocupação básica continuava sendo com a constituição de uma nação desenvolvida e de um povo brasileiro, afinados com as mudanças no cenário internacional” (“A brasilidade” 6). Para Dunn, a Tropicália decretou a superação da mestiçagem, o cômodo modelo da mistura racial e cultural alinhada com o paradigma do nacional-popular e levou à exaustão em termos de conceito contemporâneo de hibridação, nunca, todavia, às custas da intervenção em discurso de identidade acional.

O Tropicalismo e o concretismo estão ambos, enfim, preocupados com um perfil nacional imaculado pelo ufanismo folclórico. Eles foram críticos severos que produziram “contra-ideologias estéticas ou estratégias culturais profundamente semelhantes”, nas palavras da semiótica Santaella. Enquanto ela deixa de usar exemplos do impulso concretista na MPB (exemplo de Perrone “From Noigandres”), aloca outro ponto fundamental em contato com uma compartilhada “abertura do aparato produtivo da criação para a interseção com outras áreas de atividade artística… nessa raiz intersemiótica”. Esta referência para inclinação inter-artes sugere a etiqueta “verbivocovisual” da poesia concretista e, em outro nível, o contato com outras contrapartes em escultura ou show (concerto musical), bem como no caráter multidisciplinar do tropicalismo. As atitudes-guia da nova expressão musical, adicionalmente, estão relacionadas como nunca foram antes, com relação à variedade e variações das partes.

A Performance da Mutação e a permanência da transformação

Veloso, em determinado momento, atribuiu o impacto de sua música a uma conscientização da “necessidade de cada gesto, cada modo de apresentação, cada arranjo, cada instrumento escolhido para expressar uma opinião sobre o panorama da música popular no país”. A performance tropicalista foi animada, explorando vocabulários visuais e gestuais, transformando shows ou recitais em espetáculos ou provocações. Com a padronização de cenas, especialmente para o padrão de apresentações televisivas, ainda ditando o uso de trajes formais (black tie, ternos), Caetano cooperou com os formadores de imagem e tentou ‘moderar’ os trajes. Como notado por Maciel, uma notória casa noturna no Rio provou ser “um autêntico happening em que o estímulo sensorial e físico passava a fazer parte da comunicação dos artistas…”. Isso pode não ser notável, dadas as circunstâncias atuais, todavia para o Brasil do final dos anos 60, foi avassalador. Em outras instâncias menos aclamadas, Veloso vestiu roupas plásticas e uniu-se ao propósito de cooperar do impudente trio de rock Os Mutantes, que teve um papel histórico na transição de noções da música popular brasileira à era eletrônica (exemplo: Calado), e que, décadas mais tarde, liderou um curioso revival da sonoridade Tropicalista fora do domínio nacional.

Oswald vislumbrou uma “poesia para exportação”, e a poesia concretista brasileira foi exibida e exaltada na Europa e na América do Norte. Na música popular, a Bossa Nova alcançou novos patamares musicais em casa e foi uma moda mundial. O Tropicalismo conectou o modernismo e o concretismo de maneiras práticas e conceituais, mas ao invés de exportar, o final dos anos 60 levou ao exílio. Veloso e Gil foram forçados a deixar o país por conta do regime militar, armado com o AI-5, regime este que procedeu com um medo generalizado da nova música urbana popular, independentemente de sua explícita intenção política, como força de mobilização, como um instrumento de resistência ou rompimento, ou simplesmente como personificação da diferença.

A captura e expedição dos líderes da Tropicália determinaram o final do impulso Tropicalista em sua própria casa, e na cortês Londres ele não passava de uma curiosidade. Os participantes da comoção músico-poética do final dos anos 60 mal poderiam imaginar que em três décadas (o total de tempo entre o segundo manifesto de Oswald e o plano piloto da poesia concretista), suas músicas poderiam ser excelente instância para o fenômeno da world music”, no mundo desenvolvido junto do contexto da globalização sobre a qual Gilberto Gil, dentre todos os seus colegas, foi particularmente presciente.

Ao final dos anos 90, a história, performances e artistas da Tropicália tiveram suficiente interesse e consumo nos Estados Unidos – tanto para os maiores artistas de rock e pós-rock, bem como para novas gerações de fãs – para ser o foco de matérias no New York Times, outros jornais pelo país, liderando publicações de entretenimento e espaços musicais contra-culturais. O sexagenário Tom Zé teve dois álbuns produzidos nos Estados Unidos, onde realizou turnê. As músicas dos Mutantes foram bastante procuradas para importação, licenças de reimpressões e coletâneas. Como demonstrou um oportuno estudo, a atração norte-americana pela original banda brasileira pode ser atribuído à correspondência entre seus estilos eletrônicos únicos ao gosto específico da atualidade e à habilidade de sua irônica pastiche para transcender as barreiras da linguagem. Um exemplo adicional da sátira que solidificou o esquema original dos Mutantes profetiza ainda trans-nacionalidades musicais dos anos 90; “Cantor de mambo” (Decario-Baptista-Lee) suspira: “… eu já tenho um Cadillac/ moro aqui em Hollywood/ sou sucesso aqui na América/ sou o rei cantando mambo…” Essa composição inter-relaciona a moda dos ritmos hispânicos existentes e o sentimentalismo musical, estilos de rock emergentes e a paródia do mito do sucesso no show-bizz no centro da indústria do entretenimento.

Os lançamentos dos Mutantes incluem suas interpretações de composições-chave de Gil e Veloso, que tocaram ocasionalmente nos Estados Unidos desde 1986, mas não fizeram sua primeira turnê nacional até 1999. Foi após sua presença em um tributo a Carmen Miranda em Nova Iorque, e um breve artigo do jornal New York Times sobre seu significado para o Brasil e o tropicalismo, que Veloso foi procurado para escrever Verdade Tropical. É curioso, revelador, talvez até irônico, que esta memória, agora o documento mestre de um movimento que apreciou e fez uso de referências internacionais para focar na identidade da cultura nacional nos tumultuados anos 60, teve de ser escrita a pedido de um editor norte-americano, e o autor deve ter concordado em seguir com o projeto com vistas à “…oportunidade de valorizar e situar a experiência da música popular brasileira em termos mundiais”. A versão em inglês foi lançada em 2000, quando o Brasil celebrou tanto seu próprio meio-milênio e, com a comunidade internacional, o milênio – “período de mil anos”… de bom governo, muita alegria e prosperidade.

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