Eubioticamente atraídos
tropicália: retratos de uma revolução
Visões estrangeiras
Tropicália: retratos de uma revolução
Marcelo Ballvé
Nacla News, 28 de fevereiro de 2007
Foi exatamente há quarenta anos que a revolução musical que veio a ser conhecida como Tropicália foi introduzida no Brasil e no mundo. O inicio da Tropicália pode ser datado com alguma precisão. Iniciou-se quando dois músicos em seus vinte anos, Caetano Veloso e Gilberto Gil, corajosamente entraram no palco num festival de música em São Paulo em 1967 sabendo muito bem que abalariam profundamente o gosto musical. Sua atuação foi um definidor de épocas. Foi como um big bang do qual depois surgiram muitos acontecimentos na história da música pop brasileira.
Em parte para alfinetar o que esperava ser um público conservador, Veloso selecionou uma banda excêntrica, roqueiros argentinos de cabelos longos para ser sua banda – numa época quando ter cabelos longos ainda era perto de ser um tabu – e tocou a música “Alegria, Alegria”, que eletrificou o público que vaiava e deixou-o em silencio. “Alegria, alegria” foi uma partida sem erros para a tradição das músicas escritas no Brasil. Esse foi um trabalho erudito de gênero arcaico (a música foi colocada em ritmo de marchinha, uma forma de afro-brasileira influenciada pelo ragtime nos anos 20) organizada em volta de uma trindade de acordes de guitarra elétrica. A referência contemporânea que a música fazia sobre a Coca-Cola e a televisão, e a nostalgia confortável da ausência ou sentimentalismo marcaram como um artefato sem erros do presente incerto no Brasil da ditadura militar e fermentação política.
No dia seguinte, no mesmo festival, o parceiro no crime de Caetano, Gil, cantou uma canção igualmente provocativa, “Domingo no Parque”. A letra focava num assassinato duplo cometido por um amante ciumento, e o arranjo musical foi claramente influenciado pelos Beatles. No entanto, a música também continha o som de um berimbau, tradicional instrumento ressoante de origem africana feito de uma cabaça, uma cuia emadeirada e um fio de metal. Foi uma fusão da tradição com a última geração.
Os dois músicos haviam intencionalmente acionado tudo aquilo para fazer acontecer uma revelação musical, e foram bem sucedidos. Seu movimento, a Tropicália, veio para varrer as pequenas divisões que até então haviam dividido roqueiros brasileiros dos radicais da bossa nova e dos cantores da velha escola de samba. A Tropicália poderia combinar as sensibilidades cosmopolitas e a precisão lírica do rock com o a inteira profundidade geológica da considerável tradição musical brasileira.
ADQUIRINDO O GOSTO
A música da Tropicália (às vezes conhecida como Tropicalismo) me acompanha ao longo de quase toda minha vida, no entanto levou quase o mesmo tempo para que eu adquirisse o gosto por ela. No final dos anos 70 na Argentina, meus pais, tios e tias estavam ainda ouvindo cantores que haviam vencido o movimento durante o curto, porém frenético pico, uma década antes no nosso país vizinho, o Brasil. Mas só quando vivi no Rio de Janeiro em 2000 que comecei a me apropriar da música. Numa feira perto do meu apartamento na praia de Copacabana comprei Tropicália 2, um álbum que Caetano Veloso e Gilberto Gil gravaram no inicio dos anos 90 celebrando o 30º aniversário de sua amizade e 25 anos do aniversário da Tropicália.
Comprei o álbum porque reconheci os dois nomes ligados aos músicos brasileiros provavelmente mais famosos internacionalmente, mas o conteúdo me surpreendeu. Isto não era um pop brasileiro tranquilo: a trilha era estranha o suficiente para registrar apenas uma impressão da singularidade geral e do que pareciam ser misteriosas interpretações das formas musicais mais antigos. O problema era que eu não estava familiarizado com essas formas em suas versões originais. Apesar de representar um desafio, o álbum tinha um distinguível coração melódico. Tinha, também, uma consciência social (a urgência política de uma faixa chamada “Haiti” era inconfundível), e tinha vários momentos lindos, assim como a sublime, introdução de flauta na música “Baião Atemporal”. Foi este álbum que me manteve conectado com a música brasileira daquele dia em diante, embora tenha dado continuidade a esse interesse somente de forma desordenada nos próximos doze anos e meio.
Então algo decisivo aconteceu. Por acaso, comecei a escutar discos de samba, principalmente de artistas mais velhos das favelas do Rio que haviam gravado vários álbuns lendários nos anos 70. Estes eram pessoas como Cartola, uma voz grave, cantor, compositor, e co-fundador da escola de samba Estação Primeira de Mangueira em 1928. Ele foi redescoberto em 1970, após ter sobrevivido décadas na obscuridade total. Mas eu não sabia disto na época, essa redescoberta do Cartola aconteceu em parte graças ao interesse musical encorajado pela própria Tropicália. Minha jornada musical estava começando a reverter a si própria. O samba me guiou, por uma série de artistas maravilhosos e discografias, para a bossa nova, e finalmente, para Jorge Ben.
Eu havia chegado. O álbum África Brasil, 1976, de Jorge Ben foi uma revelação. Eu não precisava de fluência nos ritmos brasileiros para entender que esta era uma imperiosa remixagem de séculos de história musical trazida no idioma rústico dos anos 70. Não somente isto, mas Ben transformou seu álbum em um tipo de documento para a experiência negra no Brasil, trabalhando com lendas egípcias, historia da escravidão e conhecimento de filosofia oculta em suas músicas. Cada minuto em seu álbum gritava idéias e surpresas. Ao mesmo tempo foi marcado pela espontaneidade de gênio, e foi também um trabalho claramente unificado, profundamente meditado e juntamente costurado com insinuações e temas que fizeram com que o álbum rodasse em minha cabeça por dias, do começo ao fim, e do fim ao começo, como uma roda gigante barroca.
Eu não sabia disto quando escutei pela primeira vez, mas Jorge Ben foi um tipo de padrinho do movimento da tropicália, Ele foi reconhecido como precursor adorado e um pouco temido por Veloso e Gil, que as vezes estremeciam na sombra do prodigioso talento de Ben. Foram os primeiros álbuns de Ben em 1960 que apontaram o caminho no qual o movimento Tropicália foi, no final das contas, consumado. No seu inteligente livro, Veloso prestou uma homenagem a Jorge Bem, contando a história das origens da Tropicália e sua ascensão meteórica. Em Verdade Tropical (publicado em inglês pela Da Capo em 2002). Veloso escreve: “(Jorge) Ben tornou-se um símbolo, um mito, um mestre para nós.”
O Novo no Velho
Não é surpresa, então, que após escutar a música de Ben eu também fui capaz de processar, se não amar, tudo que a Tropicália colocou no meu caminho, considerando que antes muito de sua música me aturdia. Muitas vezes estranhos, ocasionalmente obtusos e absurdos, sempre conceitualmente elaborados, os tropicalistas do final dos anos 60 e inicio dos anos 70 eram tanto sobre idéias quanto sobre musica.
Com a música de Ben como um tipo de mapa, eu pude curtir as partes roqueiras e barulhentas do super álbum duplo de Gal Costa (Fa-Tal/Gal a todo vapor); onde antes eu conseguia somente engolir seu mais acessível e meloso acústico. Agora, eu pude fazer um certo sentido da música de Jards Macalé. A música de Macalé, rebento tardio, radioativo da Tropicália, virava a música pop de dentro para fora e fazia desconstruções alegres e melodias assustadoras que quase sempre pareciam tombar no abismo da dissonância, sem nunca chegar a cair.
Eu ainda prefiro Ben. Um laboratório musical, ele parece criar sem esforço algum, enquanto a Tropicália, era às vezes pesada (admite Veloso em seu livro). Os dois estavam atrás de algo, no entanto: tirar o novo do velho, criar um som que, embora permeado do tradicional, era uma proposta completamente nova.
Em seu livro Veloso menciona o crítico e poeta brasileiro Augusto Campos, como um inovador. “O velho que uma vez foi novo é tão novo quanto o mais novo do novo”, escreve Campos, cuja poesia concreta influenciou fortemente a Tropicália. Campos ofereceu mais que um simples trava-língua com seu trabalho. O que ele propunha era uma atitude diferente em relação ao passado e não uma exposição por meio da postura tradicional dos revolucionários na arte. Ao invés de jogar fora o passado, ele sugere uma visão transversal da historia da cultura, na qual os picos de criatividade apareçam ao longo do tempo juntamente com um tipo de novo imortal e atemporal.
Muito deste mesmo conceito foi antecipado por Veloso na capa de trás do seu álbum lançado juntamente com Gal Costa, Domingo em 1967 “Não desejo mais viver da nostalgia pelos velhos tempos e lugares; ao contrário, desejo incorporar essa nostalgia num projeto futuro”. De acordo com Veloso, esse foi o mais perto que ele jamais chegou de colocar o manifesto da Tropicália em palavras.
Os Limites da Utopia
É claro que o futuro da Tropicália não era para ser sem limites. Na verdade, a existência real do movimento foi razoavelmente breve. Deslanchou em 1967 e perdeu as forças em 1972. O Governo Militar do Brasil fez o que pode para sufocar o movimento que conscientemente buscou criar uma trilha sonora para a contracultura brasileira, com letras que criticavam a hipocrisia das classes sociais mais altas e do abismo da desigualdade econômica do país. Gil e Veloso foram presos e exilados em Londres por vários anos, voltando a gravar alguns últimos pensamentos sobre a Tropicália em 1972. Independentemente da repressão sofrida por esses artistas, a auto-consciência da abordagem de vanguarda do movimento tornou-se gradativamente irrelevante por ter, em alta escala, atingido seu principal objetivo: “limpar” o preconceito do estabelecimento musical. Como aconteceu a várias outras revoluções, a onda da Tropicália passou uma vez que a mensagem se difundiu o bastante na consciência popular. De herança restou o gostinho do liberalismo da acústica musical na qual a MPB, ou música popular brasileira, continua a expor hoje, para o seu beneficio.
Em seu livro Veloso faz um elogio pontual à Tropicália, evocando os grandes objetivos e as vitórias parciais: “Nós não atingimos o socialismo, nem ao menos achamos um rosto humano, nem entramos na Era de Aquário, nem no Reino da Espírito Santo; não conquistamos o Oeste, não enterramos o racismo, nem abolimos a hipocrisia sexual. Mas, nada será como antes”. Em outras palavras, a Tropicália buscou uma utopia musical e social e fracassou. E mesmo com o fracasso é um dos maiores sucessos na história de uma grande nação musical.
* Marcelo Ballvé’s work has been published in The New York Times, The San Francisco Chronicle, The Washington Post, The Christian Science Monitor, NACLA: Report on the Americas and other publications.