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tropicália modernidade, alegoria e contracultura

tropicália modernidade, alegoria e contracultura

Visões estrangeiras

Tropicália, modernidade, alegoria e contracultura
Christopher Dunn, Tulane University

Uma crise de época está no centro do surto extraordinário de invenção e inovação na música popular brasileira do final da década de 1960. Os protagonistas desse florescimento criativo surgiram durante um período de grande otimismo baseado na convicção de que os artistas tinham um papel central a cumprir na construção de uma nação democrática, socialmente justa e moderna. No entanto, muitos desses artistas iniciaram suas carreiras precisamente no momento em que o experimento do Brasil com a democracia foi eclipsado por um golpe militar que instalou um regime autoritário comprometido com um modelo radicalmente diferente de modernização e desenvolvimento. Essa crise produziu um conjunto de tensões que foram dissecadas por um grupo de jovens artistas da Bahia, o epicentro da cultura afro-brasileira, e por aliados intelectuais e artísticos de São Paulo, o centro mais urbanizadas e industrializado do país. Dois impulsos, entrelaçados embora fundamentalmente distintos, orientavam esses artistas, que articularam um projeto sob o nome de Tropicália. Suas principais canções-manifestos eram alegóricas, apresentando o relatos pesarosos da história nacional, muitas vezes sob o disfarce da ironia e da sátira. Suas performances mais importantes, no entanto, apontavam em uma nova direção, informada pela contracultura internacional e carregada de exuberância catártica em face da repressão crescente. A tensão entre esses dois impulsos produziu uma mistura curiosa e potente de melancolia e alegria que definiu a música tropicalista.

A modernidade brasileira e o legado da bossa nova

Em um documentário recente, Caetano Veloso observou que a Tropicália pode ser entendida como o avesso da bossa, o inverso ou o outro lado da bossa nova, o estilo musical que surgiu no final dos anos 1950 nos bares e casas noturnas da zona Sul do Rio de Janeiro. A criação da bossa nova envolveu dezenas de jovens músicos, mas as principais figuras foram o compositor e pianista Antonio Carlos Jobim, o poeta modernista e diplomata Vinicius de Morais e o cantor-violonista João Gilberto, a quem é atribuída a invenção do estilo de dedilhado característico e do estilo vocal atenuado que em seus momentos mais sublimes parecia mais um sussurro. A gravação por João Gilberto da canção “Chega de saudade”, de Jobim e Morais, lançou o movimento em 1958. Quatro anos depois, um grupo de músicos brasileiros exibiu a nova música para um público entusiasmado no Carnegie Hall. Tom Jobim e João Gilberto depois se juntaram ao saxofonista Stan Getz para gravar “Garota de Ipanema”, com Astrud Gilberto nos vocais, que chegou às paradas de sucesso da música pop nos Estados Unidos em 1964.

Com harmonias sofisticadas informadas pelo cool jazz e uma poesia elegante que meditava sobre o amor e a natureza, a bossa nova parecia anunciar uma modernidade cultural característicamente brasileira, ao mesmo tempo cosmopolita e enraizada na tradição popular do samba. O estilo estava ligado também, embora nunca de forma programática, a um período de otimismo associado com a presidência de Juscelino Kubitschek, um populista democrático comprometido com um programa de desenvolvimento nacional simbolizado de forma mais dramática pela rápida construção da capital modernista do país, Brasília.Assim como bossa nova atraía interesse internacional, ela era cada vez mais atacada no Brasil por nacionalistas de esquerda, muitos dos quais admiravam suas realizações estéticas mas a criticavam por não registrar e denunciar os males sociais do país, sustentados em grande medida por sua posição dependente periférica em relação a centros do capital internacional, especialmente os Estados Unidos. Jovens músicos de classe média, muitos deles entusiastas da bossa nova, buscavam crescentemente modos de obter um som mais rústico e simples, apropriando-se de elementos do samba urbano e, de forma mais dramática, da música popular do empobrecido Nordeste rural. Essa tendência na música popular coincidiu com e correspondeu a experimentos no Cinema Novo e num teatro popular radical. Uma cultura de nacionalismo esquerdista floresceu sobre o governo de João Goulart, que se empenhou ativamente em obter o apoio de setores radicalizados dos trabalhadores urbanos e de grupos estudantis.A mudança para um vocabulário de nacionalismo cultural antiimperialista na música popular tornou-se mais urgente depois do golpe militar de abril de 1964, que levou ao poder um regime autoritário de direita aliado com os Estados Unidos. Exacerbando as tensões no campo da música popular, a consolidação do regime militar coincidiu com sucesso popular de um fenômeno de rock’n’roll nativo apelidado iê-iê-iê, liderado pelo cantor telegênico Roberto Carlos e apresentando outros músicos identificados coletivamente como Jovem Guarda. Na metade da década de 1960, a guitarra elétrica era um poderoso diacrítico cultural, significando para muitos uma cultura jovem internacional excitante e moderna e para outros um ícone insidioso da cultura consumista e imperialista dos Estados Unidos. Esse período também assistiu à expansão dramática da televisão, subscrita e promovida pelo regime militar, e ao sucesso maciço de festivais de música televisionados patrocinados pela TV Record em São Paulo e pela TV Globo no Rio de Janeiro. Esses festivais foram decisivos para forjar uma nova categoria socioestética de música popular agrupada sob a rubrica de Música Popular Brasileira, ou simplesmente MPB.Em termos estilísticos, a MPB era definida menos pelo que era do que pelo que não era. Não era rock, associado a uma moda importada passageira, nem era música popular tradicional, mais tipicamente identificada com o samba urbano ou com várias formas de música rural regionais. Era, antes, uma categoria híbrida que surgia das sensibilidades pós-bossa nova mas na qual estavam presentes valores estéticos e preocupações sociais ligados ao imaginário nacional-popular. Sua operação mais básica era fundir “tradição” com “modernidade” sem sucumbir às pressões da popularidade emergente do iê-iê-iê. Apresentar MPB ao vivo diante de públicos compostos de estudantes universitários simpáticos assumia um valor simbólico que transcendia o conteúdo lírico, o qual raramente expressava qualquer coisa mais subversivas do que lamentos brandos pelos apuros vividos pelos trabalhadores urbanos ou pelos camponeses do Nordeste.O grupo de músicos que mais tarde lançaria a revolução tropicalista na música popular se identificava com a MPB, mas mantinha uma atitude ambígua em relação ao aparato ideológico que se formara em torno dela. Em uma famosa mesa-redonda sobre a música popular de 1965, Caetano Veloso se queixou das limitações estéticas da MPB pós-bossa nova, defendendo “a retomada da linha evolutiva” na música popular brasileira tal como exemplificada por João Gilberto e pela primeira onda de artistas da bossa nova que haviam assimilado as técnicas e a “sacadas” da “modernidade musical” (isto é, o jazz), sem aflições a respeito de identidade nacional.1 O filósofo brasileiro Antonio Cícero fez uma leitura sutil do argumento muito debatido de Caetano Veloso, observando que o conceito de “evolução” é problemático se lido meramente como uma declaração teleológica implicando melhora qualitativa ou avanço para um fim específico. No entanto, é possível falar de evolução em termos de maior complexidade técnica ou formal em certos campos da produção artística. Mas os tropicalistas não introduziram maior complexidade na música popular brasileira e certamente não avançaram a evolução formal da bossa nova. Cícero lê a declaração de Caetano Veloso, e, por extensão, o projeto musical tropicalista, em termos de “elucidação conceitual”, um tipo de “evolução” que não tem nada a ver com grau de complexidade formal.2 Os tropicalistas redefiniram o os próprios parâmetros do fazer musical, expandindo os limites do “popular” e abrindo caminho para novos experimentos performativos e sonoros na música popular brasileira. Nesse sentido, eles operavam no terreno explorado por Marcel Duchamp, e depois por Andy Warhol, ao reconfigurar os contornos e limites de seu campo artístico. No Brasil, a música deles corria paralelamente e às vezes se cruzava à “anti-arte ambiente” de Hélio Oiticica, que transformou de forma muito radical o status do objeto de arte e sua relação com o público.Central para o projeto tropicalista de “elucidação conceitual”, foi a apropriação do rock e do pop internacional, inspirada em parte pela Jovem Guarda. Aqui chegamos mais perto do entendimento que Caetano Veloso tem da Tropicália como o avesso da bossa. Os tropicalistas reverenciavam os inventores originais da bossa nova e tinham uma dívida com seu espírito cosmopolita moderno. No entanto, as condições políticas e culturais haviam mudado drasticamente nos anos entre 1958 e 1968, minando o alegre modernismo implícito no projeto da bossa nova. Em meados da década de 1960, uma certa ideologia do bom gosto permeava a MPB, tanto em suas estilizações jazz-bossa quanto em suas manifestações de protesto popular pós-bossa, mais estridentes. Os tropicalistas, insperados pelo rock da Jovem Guarda e por cantores da “era de ouro” do rádio pré-bossa nova como Carmen Miranda, subvertiam com irreverência as elevadas pretensões modernistas da MPB. Assim como os inventores da bossa nova haviam mantido um diálogo produtivo com o jazz, os tropicalistas buscavam uma relação semelhante com o rock inglês e americano, sabendo muito bem que em termos estéticos esse movimento os empurraria para mais longe do som suave e atenuado da bossa nova.

Nesse movimento, os tropicalistas encontraram apoio teórico na antropofagia, formulada e articulada originalmente pelo provocador modernista Oswald de Andrade em seu “Manifesto antropófago” (1928). Eles tinham sido apresentados à obra de Oswald pelo poeta concretista Augusto de Campos, que, junto com seu irmão Haroldo e Décio Pignatari, que estava então reeditando as obras de Oswald revivendo seu legado crítico e poético. Para Oswald de Andrade, a metáfora da antropofagia, inspirada por índios do litoral infames por devorar seus inimigos cativos, entre eles colonizadores portugueses, forneceu um modelo de produção cultural que não era subserviente às tendências metropolitanas na Europa, nem tampouco defensivo ou estreitamente nacionalista. A antropofagia era também um corretivo necessário às noções essencialistas e aistóricas de “brasilidade” tal como imaginadas por alguns dos modernistas mais nacionalistas. Para os tropicalistas, quarenta anos depois, a idéia da antropofagia forneceu um modelo e um discurso para suas releituras da tradição da canção brasileira à luz de desenvolvimentos contemporâneos no pop internacional. Como Caetano Veloso declara em suas memórias, Verdade tropical, “A idéia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos ‘comendo’ os Beatles e Jimi Hendrix”.3A exemplo de outros artistas de sua geração, como Elis Regina, Chico Buarque, Edu lobo e Geraldo Vandré, os tropicalistas conquistaram reconhecimento e aclamação nacional nos festivais de música televisionados da TV Record e da TV Globo. Esses festivais, transmitidos ao vivo diante de audiências de estúdio constituídas basicamente por estudantes de classe média com simpatias nacionalistas e esquerdistas, propiciavam um fórum alternativo para formas oblíquas de protesto político em um momento em que o ativismo da sociedade civil era cada vez mais suprimido pelas autoridades militares. Roberto Carlos e outros roqueiros da Jovem Guarda também participavam, mas sempre apresentavam baladas atenuadas e acústicas/ Além disso, eles nunca chegaram nem perto de ganhar prêmios. Os festivais de música eram implicitamente destinados a serem rituais televisados em defesa da tradição popular elevada contra as incursões da música pop influenciada pelo rock. Caetano Veloso e Gilberto Gil apareceram pela primeira vez na cena nacional no Festival de Música Popular Brasileira da TV Record de São Paulo, em 1967.Quando Caetano Veloso se apresentou com os Beat Boys, uma banda de rock argentina baseada em São Paulo, o público inicialmente zombou dele, mas acabou sendo conquistado pela franca “Alegria, alegria” de Caetano, uma marcha eletrificado de andamento lento cuja letra falava de um flâneur tropical solitário perambulando sem destino pela paisagem urbana enquanto processava um fluxo contínuo de imagens e sensações desconexas. O protagonista sonhador da canção pára diante de uma banca de jornais para ler histórias disparatadas sobre crime urbano, exploração do espaço, Che Guevara e a atriz italiana Claudia Cardinale. Essas imagens formam um panorama caleidoscópio da cultura pop contemporânea em 1967:

Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot

A entrada de Gilberto Gil, “Domingo no parque”, captava melhor o projeto musical formal dos tropicalistas em seus esforços para transcender a divisão entre os tradicionalistas da MPB e a Jovem Guarda. A canção de Gil era notável menos por sua letra, que narrava em flashes cinematográficos comprimidos um crime passional envolvendo dois homens que disputavam o amor de uma mulher, do que por seu arranjo musical.Gil trabalhava com o compositor-arranjador Rogério Duprat, que depois escreveria arranjos para a maioria das gravações tropicalistas. Duprat fazer parte do Música Nova, um grupo de compositores de vanguarda com ambições internacionalistas, de São Paulo, que tinha uma relação estreita com os poetas concretistas. Em 1963, esse grupo publicou um manifesto, apresentado neste volume, convocando a um “compromisso total com o mundo contemporâneo”, que incluía tendências da música experimental assim como música popular, trilhas sonoras, jingles, e sons da vida urbana cotidiana. Em 1967, muitos dos fundadores do Música Nova haviam abandonado a música erudita para seguir carreiras no muito mais vibrante (e lucrativo) campo da música popular. Duprat se destacava como o colaborador mais ambicioso de músicos populares, cumprindo um papel semelhante àquele de George Martin em seu celebrado trabalho com os Beatles. O arranjo de Duprat destacava uma orquestra completa, a banda de rock psicodélico Os Mutantes e um precussionista que tocava um berimbau, instrumento de origem angolana usado para tocar música de capoeira. No palco, Gil ficava posicionado entre o trio de rock, com seus instrumentos elétricos, e o percussionista tradicional, tocando um instrumento emblemático da mpb, o violão. A performance de Gil no festival constituiu uma poderosa síntese sonora e visual de um projeto musical emergente que se consolidaria sobre o nome de Tropicália.

A virada alegórica na canção brasileira

Diferentemente da bossa nova, a música da Tropicália não pode ser definida em termos de estilo ou de forma, mas antes por um conjunto de estratégias ou abordagens do fazer musical caracterizadas por várias formas de canibalização, entre elas a paródia, o pastiche e a citação. Caetano Velloso comparou a abordagem tropicalista da música à prática contemporânea do sampleamento, ao combinar “ready-mades” de uma ampla gama de sons, entre eles marchas tradicionais, bossa nova, bolero, mambo e rock.4 Eles estavam engajados simultaneamente em uma espécie de arqueologia das tradições da canção brasileira, mas ao mesmo tempo subvertiam as noções de “bom gosto” dominantes entre artistas, críticos e consumidores de classe média. Estavam interessados, acima de tudo, no fenômeno da “música pop” e em sua relação com a cultura jovem, a sociedade de consumo e a tradição musical. Os tropicalistas buscavam também fundir ou justapor a música popular internacional com tradições musicais que haviam permanecido nas margens da música popular brasileira. Gilberto Gil falou de uma excursão de 1967 a Pernambuco como um momento de virada. Depois de se apresentar na capital de Recife, ele viajou a para o interior árido onde ouviu pela primeira vez a Banda de Pífanos de Caruaru, uma tradicional trupe de tocadores de pífanos e tambores de uma cidadezinha. Gil explicou recentemente que imaginou o projeto musical tropicalista como um encontro entre a Banda de Pífanos de Caruaru e os Beatles.5A Tropicália também pode ser entendida bem como um “dominante cultural” aparentado à formulação de Frederic Jameson do pós-modernismo em relação ao capitalismo avançado no Ocidente.6 De acordo com um vocabulário jamesoniano, podemos entender a Tropicália como a lógica cultural não tanto do pós-modernismo, mas antes da modernização conservadora, um modelo de crescimento econômico abraçado pelo governo militar baseado em pesados investimentos estrangeiros e no rápido desenvolvimento da indústria e da comunicação de massa, simultaneamente com medidas de austeridade social. Não estou dizendo que os tropicalistas endossassem ou fossem cúmplices da modernização conservadora. Antes, desejo sugerir que os tropicalistas estavam singularmente sintonizados com as duras contradições e mudanças estruturais trazidas pelo governo militar e por seu programa de desenvolvimento. Documentar e comentar o fracasso de uma modernidade democrática, a ascensão de um regime autoritário e o programa de modernização conservadora eram centrais para o projeto tropicalista.Logo após o surgimento do movimento, críticos comentava a revitalização pelos tropicalistas de estratégias de representação associadas à alegoria. A alegoria moderna, tal como conceitualizada por Walter Benjamin, é um modo de representação que, ao contrário do símbolo, resiste a categorias totalizadoras transcendentes. Enquanto a representação simbólica busca capturar tudo no particular e universaliza a cultura por meio da transcendência religiosa ou “aurática”, a alegoria, segundo Benjamin, representa uma relação entre arte e história que revela os aspectos fragmentados, residuais e suprimidos da realidade. Para Benjamin, “as alegorias são, no domínio do pensamento, o que as ruínas são no domínio das coisas”.7Roberto Schwarz foi o primeiro a comentar como a alegoria moderna era desenvolvida na Tropicália. Em um ensaio de 1970, incluído neste volume, ele argumentava que o golpe militar tinha revivido forças sociais arcaicas e valores culturais conservadores na medida em que o regime e os tecnocratas civis estavam modernizando o país ao integrá-los na economia internacional.8 Para Schwarz a alegoria tropicalista era ativada por meio da sujeição de um inventário de emblemas culturais e arcaicos ou anacrônicos à “luz branca do ultra-moderno”. Schwarz admitia que em suas manifestações mais irônicas a Tropicália conseguia “reter a figura mais íntima e dura das contradições da produção intelectual presente”, mas também advertia que ela representava o Brasil como um absurdo. Por absurdo ele entendia que os tropicalistas propunham uma “idéia atemporal de Brasil” na qual suas contradições históricas eram apresentadas como emblemas de identidade nacional.”Tropicália”, canção-manifesto de Caetano Veloso, apresentada em seu primeiro álbum solo de 1968, era igualmente um ponto de referência para a interpretação de Schwarz. O título da canção foi sugerido a Caetano pelo cineasta Luiz Carlos Barreto, que detectou nele uma afinidade, embora difusa, com a famosa instalação “Tropicália”, de Hélio Oiticica, exibida pela primeira vez no início de 1967. A letra da canção apresenta uma montagem de eventos, emblemas, ícones, citações musicais e literárias e ditos populares, para construir uma imagem fantasmagórica do Brasil. O referente primário de “Tropicália” é Brasília, a capital futurista inaugurada em 1960 que foi a realização mais celebrada do programa de modernização do Brasil. Em 1964 ela tornou-se o centro político e administrativo do regime militar. “Tropicália” alude à história recente do Brasil — de um monumento utópico ao progresso nacional e à arquitetura moderna , para um símbolo do autoritarismo militar. Caetano explicou:

Era uma imagem assim de grande ironia, e a descrição do monumento era como se fosse uma descrição de uma imagem mais ou menos inconsciente da sensação de estar no Brasil e de ser brasileiro naquela época. Então, você pensa em Brasília, no planalto central, e há um orgulho pela arquitetura, mas ao mesmo tempo não é disso que está se tratando. Era “que monstro é que ficou”, porque Brasília foi construída e logo depois veio a ditadura e Brasília esteve sempre ali como centro da ditadura.9

Na canção, Brasília é descrita como “monumento” feito de “papel crepom e prata”. O desenho modernista funcionava como uma fachada que cobria falhas de infra-estrutura ao mesmo tempo que a capital futurista e utópica obscurecia o contexto de subdesenvolvimento e a desigualdade social no Brasil.”Tropicália” cita uma ampla variedade de ícones culturais de vários períodos históricos, entre eles o poeta parnasiano Olavo Bilac, o escritor romântico José de Alencar, o repentista Catulo da Paixão Cearense, a estilista do samba e ícone hollywoodiano Carmen Miranda, e o rei do iê-iê-iê Roberto Carlos. A canção se inicia com uma referência paródica à Carta de Pero Vaz de caminha, a primeira carta ao rei de Portugal anunciando a “descoberta” do Brasil em 1500. Uma orquestra de cordas completa, sob a direção de Júlio Medaglia, criava uma atmosfera de suspense e tensão nos acordes iniciais da canção:

sobre a cabeça os aviões
sob os meus pés os caminhões
aponta contra os chapadões
meu nariz
eu organizo o movimento
eu oriento o carnaval
eu inauguro o monumento
no planalto central
do país
viva a bossa-sa-sa
viva a palho-ça-ça-ça-ça

A justaposição de referências a elementos modernos e arcaicos da sociedade brasileira fornece uma estrutura básica para a canção. Bossa, a música popular urbana associada com o nacional-desenvolvimento, rima com palhoça, as casas de taipa que serviam de moradia para milhões de pobres rurais.

A alegoria tropicalista do Brasil foi mais plenamente articulada no álbum Tropicália, ou Panis et Circensis, que apresenta Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa, a cantora de bossa nova Nara leão, o grupo de rock Os Mutantes, o arranjador Rogério Duprat e os poetas Torquato Neto e José Carlos Capinam. Gravado em maio de 1968, ele foi o primeiro álbum conceitual do Brasil que provocou imediatamente comparações com Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles do ano anterior. Nesse álbum é apresentada a canção “Geléia geral”, de Gilberto Gil e Torquato Neto, que é outra canção-manifesto do movimento tropicalista. O conceito de geléia geral foi proposto originalmente por Décio Pignatari para se referir à formação cultural heterogênea e híbrida do Brasil. Em uma discussão com o poeta modernista Cassiano Ricardo, Pignatari teria exclamado: “na geléia geral do Brasil alguém tem que exercer a função de medula e osso!”.10 Em outras palavras, uma dose de construtivismo vanguardista era necessária para dar rigor e forma à arte brasileira.

O letrista, Torquato Neto, reciclou a metáfora de forma extremamente irônica e ambígua. Diferentemente de “Tropicália”, de Caetano Veloso, na qual o arcaico e o moderno parecem se contradizer, “Geléia geral” sugere uma possibilidade de síntese cultural:

“Geléia Geral”
É bumba-iê-iê-boi
ano que vem mês que foi
É bumba-iê-iê-iê
É a mesma dança meu boi

A dança folclórica tradicional do bumba-meu-boi e o rock brasileiro, o iê-iê-iê, tornam-se a “mesma dança”, apontando com otimismo para possibilidades de novos estilos baseados na música tradicional e no pop importado.

“Geléia geral” apresenta um interlúdio musical e poético que fornece um inventário de ditos cotidianos, clichês e objetos kitsch da cultura popular brasileira. Gil anuncia essas “relíquias do Brasil” como se elas estivessem sendo leiloadas ou vendidas na TV:

É a mesma dança na sala
no Canecão na TV
a quem não dança não fala
assiste tudo e se cala
não vê no meio da sala
as relíquias do Brasil:
doce mulata malvada
um elepê de Sinatra
maracujá mês de abril
santo barroco baiano
superpoder de paisano
formiplac e céu de anil
três destaques da Portela
carne seca na janela
alguém que chora por mim
um carnaval de verdade
hospitaleira amizade
brutalidade jardim.

Uma declaração irônica sobre o que constitui ostensivamente a “cultura brasileira”, ela se festeja simultaneamente o excesso, ao mesmo tempo chamando a atenção para sua própria limitação e incompletude. A sátira da brasilidade torna-se mordente nos dois versos finais que justapõem hospitaleira amizade — uma evocação da “cordialidade” brasileira descrita por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1936) — a brutalidade jardim — um verso de Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade (1924).

A sátira mais aguda do discurso da modernização conservadora é “Parque industrial”, de Tom Zé, apresentada tanto em seu álbum solo quanto no álbum conceitual tropicalista. A canção satirizava o orgulho público associado à industrialização em uma sociedade em desenvolvimento. O som de uma banda de metais e ambiência de aglomeração evocam a pompa de uma parada militar. A estrofe de abertura se dirige ao público imaginado de cidadãos patrióticos com o vós imperativo, que é usado tipicamente em ritos litúrgicos no discurso patriótico elevado:

retocai o céu de anil
bandeirolas no cordão
grande festa em toda nação
despertai com orações
o avanço industrial
vem trazer nossa redenção.

Uma expressão batida da poesia romântica e das canções patrióticas, céu de anil, é uma referência à beleza natural do Brasil. Em “Parque industrial” o céu exaltado é reduzido a um artifício que é preciso “retocar” a para a grande ocasião. As estrofes subseqüentes invocam produtos de consumo à venda: os quadros anunciando aeromoças gentis, o “sorriso engarrafado” que pode ser requentado para uso, o jornal da classe operária, e a revista tablóide relatando os “os pecados da vedete”. “Parque industrial” satiriza o zelo desenvolvimentista, como é sugerido na afirmação irônica de que “o progresso industrial vem trazer nossa redenção”. O refrão ressonante em inglês exalta, com uma curiosa mistura de sarcasmo e afirmação, os produtos de exportação e que são “made, made/ made in Brazil”.

Tropicália e contracultura

Em um ensaio sobre a literatura brasileira durante o regime militar, Silviano Santiago fez uma distinção entre o otimismo que caracterizava grande parte da produção literária e cultural antes do golpe militar e a alegria da cultura tropicalistas e pós-tropicalista. Para Santiago, um “otimismo social edificante e construtivo” animado pela fé no desenvolvimento nacional informava muito da cultura politizada do período anterior ao golpe militar. Com ascensão de um regime autoritário, esse otimismo se amainou, mas não foi substituído pelo pessimismo. Antes, o terror político provocou o que Santiago chama de reação “dionisíaca e nietzschiana” contra a repressão e a censura: “A alegria desabrochou tanto no deboche quanto na gargalhada, tanto na paródia e no circo quanto no corpo humano que buscava a plenitude de prazer e gozo na própria dor”.11 Santiago está se referindo aqui à irrupção de uma contracultura jovem brasileira, profundamente informada por movimentos semelhantes na Europa e nos Estados Unidos, centrada na afirmação individual, na liberação do corpo, na celebração da diferença sexual e racial, no humor iconoclástico em face da autoridade. A contracultura brasileira emergiu durante um período dia sublevação política aguda em resposta ao endurecimento do governo autoritário e inspirado por movimento jovens análogos nos Estados Unidos e na Europa. Setores da oposição de esquerda optaram pela luta armada, enquanto outros adotavam uma política de não-conformidade pacifista conhecida como desbunde, que descrevia uma sensibilidade aparentada ao “dropping out” no contexto dos Estados Unidos.

Como nos Estados Unidos e na Europa, a música popular, em particular o rock, fornecia uma linguagem e um contexto para a circulação de atitudes e práticas contraculturais no Brasil. Os tropicalistas foram os primeiros a fazer experiências com guitarras fortemente amplificados e distorcidas, características do rock ácido e psicodélico. As etapas eliminatórias do Festival Internacional da Canção de 1968 forneceram o contexto para um primeiro “happening” musical contracultural instigado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Naquele momento, os tropicalistas já tinham lançado sua intervenção cultural com um álbum conceitual do grupo, uma série de álbuns solo e aparecimentos os freqüentes na televisão. Na seção cultural dos maiores jornais diários do Brasil, eles se envolviam em polêmicas com seus muitos detratores, que viam o projeto tropicalista como uma subversão da tradição da canção brasileira.Sua apresentação no festival da TV Record no ano anterior constituíra uma intervenção crítica, mas foi marcada pela conciliação e pela síntese, simbolizadas pela apresentação de Gil com guitarras elétricas e um berimbau. As apresentações de 1968 eram orientadas mais para a ruptura e geraram muito mais controvérsia. Gilberto Gil apresentou “Questão de ordem”, um número de rock em estilo soul com guitarras elétricas distorcidas, percussão afro-brasileira e vocais berrantes. A letra critica todas as maneiras de “ordem” impostas pelo regime e pela esquerda ortodoxa:

Se eu ficar em casa
fico preparando
palavras de ordem
para os companheiros
que esperam as ruas
pelo mundo inteiro
em nome de amor

A canção de Gil ecoa slogans contraculturais do Primeiro Mundo o (“faça amor, não faça guerra” etc.), defendendo uma política de anarquia. Ela provocou uma resposta indignada de membros do público, que começaram a jogar lixo no palco. Gil foi depois desqualificado do festival por se desviar ostensivamente das normas da música popular brasileira.

A apresentação de Gil da canção foi particularmente chocante. Em um ensaio de 1968 apresentado neste volume, Hélio Oiticica descreveu a apresentação de Gil: “Gil parece cantar e compor com todo seu corpo, sua garganta é de fera, num canto forte que se relaciona com o dos cantadores nordestinos, incisivo, sem meios tons: sua apresentação foi um momento de glória, contido e sem heroísmo aparente, certo do que fazia, enquanto a vaia fascista comia”. Gil usou uma túnica que lembrava os dashikis da África Ocidental e uma trancinha de cabelo afro. Depois, em uma entrevista, ele explicouo significado de sua caracterização:

A roupa é a minha nudez. Como não posso andar nu, como qualquer pessoa gostaria, então apresento minha nudez disfarçada. E estou certo se tento ser bonito dentro da minha negritude, em mim a roupa não cai como uma abstração… No palco, a minha roupa faz parte do espetáculo.12

Pela primeira vez, Gil apresentou publicamente um discurso sobre a negritude em relação a sua música. É importante lembrar que o regime militar havia basicamente suprimido a discussão pública sobre as relações sociais no Brasil e desestimulado qualquer expressão cultural ou política orientada para a consciência negra. Nesse movimento, Gil se inspirava profundamente no trabalho de Jorge Ben (mais tarde conhecido como Jorge Benjor), um artista negro do Rio de Janeiro que havia desenvolvido um estilo pessoal singular que incorporava elementos de bossa nova, samba, rock, R&B e música soul. Embora geralmente evitasse explicitar uma crítica política e social, Jorge Ben celebrava a cultura negra jovem e das favelas e fazia referências freqüentes à história afro-brasileira em suas canções.

Logo depois de Gil ter sido desqualificado, Caetano Veloso apresentou “É proibido proibir” na etapa eliminatória dos do FIC de 1968. O nome da canção se baseava em um slogan do levante estudantil de Paris de maio de 1968 e foi sugerido a Caetano por seu empresário, Guilherme Araújo, que reconhecia a viabilidade comercial desse tipo de protesto. Como a canção de Gil, ele expressava uma atitude anarquista em relação à cultura e à política:

me dê um beijo meu amor
eles estão nos esperando
os automóveis ardem em chamas
derrubar as prateleiras
as estantes
as vidraças
louças, livros
sim
e eu digo não
e eu digo não ao não
e eu digo é proibido proibir

A apresentação de Caetano Veloso de “É proibido proibir” transformou-se em um happening caótico. Ele havia convidado um amigo americano, Johnny Dandurand, para se reunir a ele no palco, e provocar o público de estudantes universitários que eram basicamente antipáticos aos tropicalistas. Ele foi apoiado pelos Mutantes, que apresentaram uma introdução de música atonal distorcida. No meio da canção, os estudantes começaram a jogar objetos no palco, ao que Caetano respondeu com uma muito citada diatribe divagante sobre cultura e política:

Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? […] São a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem. Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada! […] Hoje vim dizer aqui que quem teve coragem de assumir a estrutura do festival, não com o medo que o senhor Chico de Assis pediu, mas com a coragem… quem teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto Gil! E fui eu! Nós só entramos no festival pra isso, não é, Gil? […] Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês em política forem como são em estética, estamos feitos!

Ele se refere a uma das principais idéias que estavam por trás do projeto tropicalista: os artistas tinham de se engajar agressivamente nos meios de comunicação de massa, ou “estruturas”, para efetuar a mudança. Sua intervenção no festival foi um dos happenings-chave do período ao lado de algumas montagens provocativas do Teatro Oficina, que também buscavam envolver e provocar audiências enraivecidas. Outra canção que prefigurou o surgimento de uma contracultura brasileira foi “Divino maravilhoso”, escrita por Gilberto Gil e Caetano Veloso como uma homenagem a seu produtor, Guilherme Araújo, que cunhou a expressão. Gal Costa apresentou a canção no IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1968, e depois a gravou para seu primeiro álbum solo. Sua interpretação da canção assinalou uma transformação radical em seu estilo de uma recatada cantora de bossa nova da Bahia para uma cantora impetuosa que lembrava Janis Joplin. A canção invoca a alegria e a energia criativa de uma contracultura emergente, mas também adverte contra a impassividade. A segunda estrofe comentar o lugar da cultura, a posição do artista, o papel da recepção e a primazia da interpretação crítica:

atenção
para estrofe para o refrão
pro palavrão
para palavra de ordem
atenção
para o samba exaltação

Os últimos versos se referem aos pólos opostos na cultura política brasileira — palavra de ordem era uma expressão que aludia à ortodoxia da esquerda, enquanto samba exaltação se referem ao samba exultantes e patrióticos favorecidos pelo regime militar. A estrofe final faz uma referência velada ao conflito armado entre as autoridades e oposição:

atenção
para janelas no alto
atenção
ao pisar no asfalto o mangue
atenção
para o sangue sobre o chão

A seqüência de violência política, sugerida pela referência ao sangue no chão, dá testemunho da repressão oficial que era parte cotidiana da vida urbana do Brasil durante o final da década de 1960.

“Divino maravilhoso” também forneceu o nome para um programa de televisão tropicalista transmitido durante pouco tempo pela hoje extinta TV Tupi de São Paulo. O programa acabou sendo um experimento inicial em “happenings” que provocaria cartas irritadas de protesto dos setores mais conservadores da sociedade paulista. Naquele momento, os tropicalistas estavam sendo vigiados por agentes do regime militar, que haviam começado a compreender a intenção subversiva de suas canções e apresentações. As tensões entre os tropicalistas e as autoridades militares foram mais exacerbadas em novembro de 1968, durante uma apresentação na boate Sucata, no Rio de Janeiro, quando um agente do Departamento de Ordem Pública e Social (DOPS) denunciou publicamente Caetano e Gil por exporem um estandarte criado por Hélio Oiticica que apresentava a imagem de Cara de Cavalo, um famoso criminoso urbano executado pela polícia em 1964, com o slogan “Seja marginal, seja herói”.No final de dezembro de 1968, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos em seus apartamentos em São Paulo, iniciando uma tormentosa experiência em uma prisão militar no Rio de Janeiro, seguida por um período de prisão domiciliar em Salvador. Em junho de 1969, eles foram exilados para Londres, onde permaneceram até 1972. Nessa época, a Tropicália havia terminado como movimento, mas permanecia como um ponto de referência central para atitudes contraculturais e práticas culturais que floresceriam no Brasil urbano na década de 1970.A influência da música tropicalista minguou com o surgimento de um movimento de rock brasileiro disseminado e popular que dominou a cultura jovem na década de 1980. Durante esse período, os músicos de rock tenderam a seguir tendências norte-americanas e européias em new wave, punk e pós-punk, muitas vezes com um esforço consciente de se distanciarem das figuras estabelecidas da MPB que haviam surgido na década de 1960. Os tropicalistas, no entanto, acompanharam o fenômeno do rock com simpatia e também defenderam desenvolvimentos paralelos na música popular afro-brasileira, especialmente os blocos afro de Salvador, Bahia, que introduziram novas formas de protesto social e racial na música de carnaval.13 Ao longo desse período, os tropicalistas mantiveram uma postura eclética e ecumênica em relação à música popular, experimentando e comentando os novos sons e tendências à medida que ele se desenvolviam.

Re-Tropicália

É possível falar de uma revivescência tropicalista na música popular brasileira, embora haja um debate permanente sobre a influência e o legado do movimento. Em 1993, Gil e Caetano gravaram “Tropicália 2”, um projeto colaborativo que comemorou o movimento e ao mesmo tempo buscou reafirmar sua relevância contemporânea. A trilha mais poderosa dessa gravação, “Haiti”, foi arranjada em uma batida lenta de rap e denunciava a violência política contra jovens negros, apontando ao mesmo tempo para questões sobre o significado da cidadania na sociedade brasileira. Nesse ínterim, Tom Zé, que havia basicamente desaparecido do cenário público depois de vinte anos de experimentalismo desabrido, recebeu aclamação crítica e atraiu uma nova geração de fãs no Brasil e no exterior após uma série de gravações produzidas por David Byrne para seu selo Luaka Bop. Material tropicalista do final da década de 1960, relançado, começou a circular no exterior e atrair a atenção entusiástica de críticos e músicos nos Estados Unidos. Beck homenageou o movimento em sua gravação de 1999 Mutations, uma referência à banda Os Mutantes, cujos primeiros discos alcançaram o status de cult em círculos de rock alternativo. Nesse mesmo ano, Tom Zé excursionou pelos Estados Unidos com um grupo instrumental de Chicago, o Tortoise. Hermano Vianna opinou que “o lugar da cultura brasileira no ‘concerto das nações’ já sofreu um pequeno, mas decisivo, deslocamento com o tal ‘culto’ do tropicalismo”.14 Vianna argumentava que a Tropicália não era consumida no exterior como “world music”. Antes, ela era “saudada quase como se fosse uma escola de vanguarda dentro da já longa história do rock ou da música pop internacional “.No Brasil, o legado da Tropicália é um tanto mais complicado, por várias razões. Primeiro, toda a categoria de MPB que antes funcionava como uma designação significativa para a música popular brasileira que estava simultaneamente comprometida com “tradição” e “modernidade”, tal como era entendida nas décadas de 1960 e 1970, implodiu nas décadas de 1980 e 1990, com a consolidação de formas nacionais e regionais de gêneros internacionais como rock, reggae e rap. Só os puristas mais irresconstruídos e dirigiriam a acusação de “inautenticidade” ou “alienação” contra os músicos brasileiros que forjaram linguagens musicais e poéticas localizadas para esses gêneros. Em segundo lugar, as últimas duas décadas também assistiram à proliferação de estilos e movimentos regionais e nacionais que desafiam explicitamente a folclorização, optando antes por uma postura cosmopolita orientada em graus variados para o mercado de música pop. O modelo de produção musical estabelecido pelos tropicalistas no final da década de 1960 foi plenamente assimilado. Em 1997, Caetano Veloso publicou um livro de memórias best-seller, Verdade tropical, que reforçou ainda mais seu perfil como intelectual público e canonizou sua interpretação do movimento tropicalista. Gilberto Gil, por seu lado, foi nomeado ministro da Cultura do governo Lula em 2003 e desde então ganhou tremenda visibilidade, tanto no Brasil como no exterior. Seria difícil encontrar equivalentes da mesma geração em outros contextos nacionais com níveis comparáveis de influência.Essa situação produziu uma ambivalência por parte de alguns jovens artistas em relação aos tropicalistas, em particular a Caetano Veloso e Gilberto Gil, os mais visíveis e bem-sucedidos do grupo baiano original. Muitas das intervenções incisivas ma música popular brasileira dos últimos anos têm uma dívida com os tropicalistas e seu espírito de ecletismo radical enraizado em tradições locais, embora plenamente engajados com o pop internacional. Mas Gil e Caetano também alcançaram um nível de prestígio e poder cultural que se revelou oneroso para artistas mais jovens que poderiam de outro modo identificar-se com o legado da Tropicália. Em uma entrevista recente, por exemplo, Caetano expressou sua admiração pela banda Nação Zumbi, o mais aclamado entre os praticantes do mangue beat, um estilo desenvolvido em Recife que fundiu os ritmos afro-brasileiros locais do maracatu com riffs de guitarra heavy metal e “levadas” de baixo funk. Depois de assistir a um de seus shows ao vivo, um amigo disse a Caetano que os membros da Nação Zumbi não gostavam de sua música, Caetano gracejou, em uma atitude tipicamente tropicalista, que “Se é para fazer aquilo, então acho bom que não gostem do meu som”.15Gilberto Gil resumiu o legado do movimento tropicalista ao observar que “O Tropicalismo, na verdade, era uma premonição da situação em que a gente vive hoje, com a globalização e a pluralização internacionalista”.16 O trabalho recente de Gil tende a celebrar a globalização cultural, o desenvolvimento de novos estilos híbridos e a expansão dos circuitos internacionais de comunicação possibilitados pela internet. Tom Zé também faz referência a uma ampla variedade de fontes musicais e literárias, tanto nacionais quanto internacionais, mas focaliza antes o crescimento da desigualdade e da exploração em um mundo crescentemente localizado. Suas gravações recentes Com defeito de fabricação (1999) e Jogos de armar (2000) articulam críticas incisivas à globalização, ou ao que ele chama de “globarbarização”, e à posição subalterna do Brasil na esfera internacional. Caetano, por seu lado, tem apresentado cada vez mais uma visão da Tropicália e de seu legado que enfatiza as qualidades singulares da cultura brasileira. Se, como ele observou, os tropicalistas contribuíram para um “sentimento de desencanto” na década de 1960, ele agora articula tipicamente uma visão muito mais otimista de seu país e do lugar que ele ocupa no mundo, chegando a imaginar novos projetos utópicos baseados nas qualidades singulares do Brasil como nação multirracial falante de português.17 Nessa visão, a Tropicália parece menos com uma crítica pesarosa das contradições da modernidade brasileira do que como um arauto de novas formas de produção cultural e modelos de sociabilidade para o novo milênio.

  1. Airton Lima Barbosa et al. “Que caminho seguir na música popular brasileira?” Revista Civilização Brasileira 1, nº 7 (maio de 1966): 378.
  2. Antonio Cicero, “O tropicalismo e a MPB”, in Do samba-canção à Tropicália, organizado por Paulo Sergio Duarte e Santuza Cambraia Naves. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
  3. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia de Letras, 1997, p. 247.
  4. Ibidem, 102.
  5. Geneton Moraes Neto, “A receita secreta do Tropicalismo: uma mistura de Caruaru com Liverpool”, Continente Multicultural 1:11 (novembro de 2001), 7.
  6. Frederic Jameson. Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University Press, 1991.
  7. Walter Benjamin. The Origin of German Tragic Drama. Nova York: Verso, 1998.
  8. Roberto Schwarz, Misplaced Ideas: Essays on Brazilian Culture. Nova York: Verso, 1992.
  9. Christopher Dunn, “Caetano Veloso: tropicalismo revisitado”, Brasil/Brazil 11:7 (1994), 105. Republicado em ingles como “The Tropicalista Rebellion,” Transition 30 (Summer 1996), pp. 130-31
  10. Essa citação foi publicada originalmente na revista literária de poesia concreta Invenção: Revista de Arte de Vanguarda (junho de 1963).
  11. Silviano Santiago, “Poder e Alegria: A literatura brasleira pós-64—reflexões,” in Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p.23
  12. Essa entrevista foi originalmente publicada no Jornal da Tarde (28 de setembro de 1968). Depois, foi reimpressa em Gilberto Gil: Expresso 2222, (Salvador: Corrupio, 1982), p. 34.
  13. A música dos blocos afro inspiraria uma nova música pop da Bahia, apelidada na imprensa de axé music em referência à palavra Yoruba para força animadora originalmente usada entre praticantes do candomblé, religião afro-brasileira, e depois appropriada como saudação coloquial entre os jovens urbanos. Veloso em particular empenhou-se na defesa e no elogio da axé music contra os críticss, basicamente do Rio de Janeiro e de São Paulo, que tipicamente depreciaram o pop baiano como comercialismo vulgar.
  14. Hermano Vianna, “A epifania tropicalista,” Folha de S.Paulo: Mais! (19 de setembro de 1999).
  15. Geneton Moraes Neto, “Caetano Joaquim Veloso Nabuco,” Continente Multicultural 1:1 (janeiro de 2001), 20.
  16. Moraes Neto, “A receita secreta do Tropicalismo”, p. 14.
  17. Caetano Veloso, “Utopia 2,” Folha de S.Paulo (25 de setembro de 1994).
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