Eubioticamente atraídos

tempos de audácia

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Visões estrangeiras

Tempos de audácia
Bruce Gilman
Brazil Magazine, 01 de Dezembro de 2002

Tudo começou em 1967, mas a comoção em volta do trigésimo aniversário do Tropicalismo faz tudo parecer mais com um centenário. Reportagens especiais são exibidas na TV, jornais e revistas. Gilberto Gil e Caetano Veloso, dois ícones do movimento, lançam novos CDs. Será que tudo isso não passa da promoção espalhafatosa de uma cultura que sofre de certo complexo de inferioridade? O Brasil tenta responder esta e muitas outras perguntas.

“Sou um tropicalista, sempre tenho dúvidas sobre o critério usado para avaliar arte. Este é o motivo pelo qual muitas vezes preferi o joio ao trigo”.
Caetano Veloso

Trinta anos depois da Tropicália, a Prefeitura de Salvador, Bahia, anunciou que o tema para o carnaval no próximo ano será o Tropicalismo. Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa tocarão músicas que marcaram época em homenagem a Osmar Macedo, pai do trio elétrico, que faleceu recentemente. O evento será uma oportunidade de relembrar um momento marcante na cultura brasileira e relembrar não somente o trabalho de três lendários músicos baianos, mas também outros baianos, especialmente o poeta Torquato Neto, que em parceria com Gil escreveu o hino do movimento Tropicália, “Geléia Geral”.

E a celebração já começou com o lançamento do álbum Tropicália 30 anos pelo selo Natasha Records. Sendo reduto do movimento liderado por Caetano, Gil e companhia, o disco (veja a lista de títulos e artistas abaixo) lança novas versões dos clássicos da Tropicália e reúne os tropicalistas Caetano, Gil, Tom Zé e Gal Costa com uma nova geração de Baianos como Margareth Menezes, Daniela Mercury, Carlinhos Brown e Banda Eva.

As comemorações adicionais do movimento incluem especiais de radio e TV, a publicação das correspondências do produtor de cinema de vanguarda Glauber Rocha, a terceira edição do magnífico trabalho do poeta Torquato Neto, o livro Tropicália: A História de Uma Revolução Musical pelo jornalista Carlos Calado, uma exibição na Alemanha dos trabalhos do artista plástico Hélio Oiticica, e uma retrospectiva em Barcelona dos trabalhos de Lygia Clark. Porque todo esse alvoroço? Há apenas cinco anos celebrávamos “25 anos de Tropicália!”

Há anos o movimento faz barulho e é ostentado e estudado pela comunidade artística e acadêmica. Muito foi escrito a respeito, mesmo fora do Brasil. Começam a suspeitar que o “barulho” sobre o Movimento Tropicalista não passa de uma onda repetitiva, uma outra ramificação de um complexo de inferioridade cultural que existe no Brasil.  A Tropicália não foi mais o processamento de várias coisas do que o começo de um novo gênero? Em entrevista durante o especial de TV Som Brasil, Gal Costa afirmou: “O Tropicalismo é ainda hoje referencia para uma geração. É importante que estas músicas sejam lembradas”. Gilberto Gil diz, “A Tropicália trouxe uma nova atitude, um novo jeito de olhar para música dentro da cultura, um sentimento de pluralidade e democracia”.  O que aparece agora, depois de trinta anos, são trabalhos influentes e depoimentos de pessoas que de fato viveram a Tropicália.

Nas últimas três décadas, a Tropicália tornou-se uma lenda. Suas idéias vêm se tornando tipicamente obscuras e exageradas. Não é incomum haver avaliações divergentes de um movimento, mas no caso da Tropicália há controvérsias sobre a que de fato veio este movimento. Seus admiradores discordam tanto quanto seus críticos. Esta situação conduziu à suposição que a Tropicália não foi uma filosofia coerente. Qualquer tentativa de contestar essa posição poderia afetar uma perspectiva histórica sem um breve esclarecimento de suas origens lendárias.

Ascendência e Decadência

A Tropicália foi o último movimento cultural brasileiro significativo; foi um movimento para acabar com todos os movimentos, e uma compreensão clara da realidade Brasileira. Não foi somente um movimento musical, mas um entendimento do movimento das artes que se manifestaram nas esculturas, literatura, pintura, filme, teatro, poesia e artes plásticas. O nome surgiu de uma exibição de arte ambiental em abril de 1967, “Tropicália”, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, realizada por Hélio Oiticica. Artistas que sonhavam com uma nova estética para o Brasil e que lutavam para dissipar as absurdas imagens de fantasia do país trouxeram à tona assuntos como a mentalidade de consumo e o impacto da mídia de massas ao mesmo tempo que demandavam a destruição da direita política e o conceito de um Brasil unicamente carioca.

É curioso que o surgimento deste movimento não se tenha originado nos principais centros culturais do Rio de Janeiro e São Paulo, e sim na Bahia, com seu turbulento contexto cultural nos anos 60. Havia uma distinta petulância na Bahia daquela época.  Artistas tinham a liberdade de criar, de serem ambiciosos e audaciosos.  Até certo ponto, essa atitude foi o resultado do trabalho realizado pelo reitor da Universidade da Bahia, Edgar Santos, que abriu as escolas de teatro, dança e musica. A Universidade da Bahia (UFBA) foi um fábrica de idéias onde os novos Baianos formularam a visão de uma vanguarda artística e criaram trabalhos que poderiam parecer arrojados mesmo para o “Primeiro Mundo”. Professores como o inventor de instrumentos Walter Smetak e autor/diretor de teatro Luis Carlos Maciel ensinaram conceitos pioneiros sobre arte e influenciaram uma geração inteira. Em virtude dessa atitude e pela presença de mentes inovadoras, o palco foi “montado” para uma explosão cultural. Se o público não entender que se dane.

A Tropicália teve a mesma intenção de modernizar a cultura brasileira que o movimento da Semana de Arte Moderna de 1922, estabelecido em São Paulo para representar uma revolta contra a tradição conservadora. A Semana de Arte defendia a libertação das noções de preceito e preconceito e rebelou-se contra a eloqüência exagerada e falsa reverência pelas artes clássicas. Metáforas de canibalismo foram adotadas para encorajar a adaptação criativa e a integração das idéias estéticas européias. Artistas devoraram a arte clássica considerada passé e a infundiram com suas visões pessoais, reconstruindo-a em formas novas e originais. A Semana de Arte caminhou em direção a uma visão brasileira do mundo sob o estandarte canibalista, em direção a uma assimilação crítica da experiência estrangeira e sua reconstituição nos termos e circunstâncias brasileiros. O movimento de 1922 foi marcado por um espírito de rebelião contra o establishment, mas, em termos de ideologia, desenvolveu-se como nacionalismo dinâmico.

As raízes da Tropicália localizam-se no movimento da Semana de Arte Moderna, mas seu desabrochar foi ligado a algo totalmente novo para o Brasil, um fenômeno para o qual o governo e o público não estavam preparados: uma contracultura. Foi algo simultaneamente “Primeiro Mundo” e genuinamente brasileiro. Foi uma contracultura deslumbrada pelo que estava acontecendo nos Estados Unidos e Inglaterra, onde o artista era colocado diante da realidade, livre e incondicionalmente. Havia uma sensação de alegria que manifestava a incontrolável vontade de absorver tudo.  As percepções de arte foram reduzidas a seus componentes mais fundamentais, a seguir foram re-organizadas, recicladas e recombinadas em novos padrões e novos relacionamentos até que restassem apenas fragmentos distantes do conceito original. Valia tudo.

Em 1964, com inflação desmedida e uma divida externa crescente, o Brasil se encontrava num estado de caos financeiro. Convencido que o país havia se tornado ingovernável e que a política de esquerda teria ido longe demais, um grupo de generais do exército tomou o controle e embarcou em uma campanha de violência física. Mangueiras de incêndio foram ligadas rapidamente sobre os cidadãos do país e oponentes políticos foram torturados e assassinados. A repressão após o golpe militar de 1964 fez com que o Brasil se tornasse um deserto criativo. Ironicamente, essas medidas deploráveis nutriram a criatividade dos artistas. Ter coragem tornou-se moda. Todas as disciplinas exibiam soluções imaginativas e ágeis para poder “co-existir” com as rígidas proibições do regime. Artistas tornaram-se especialistas em metáforas já que política e arte caminhavam lado a lado.

O perfil musical da Tropicália foi o seu lado mais controverso. Na corrente evolucionária dos movimentos musicais de protesto, o Tropicalismo foi o principal desenvolvimento que ocorreu após a bossa nova. Desafiando os costumes artísticos aceitos, os tropicalistas se propuseram a superar o que sentiam ser subdesenvolvido em termos de musicalidade.  Construíram uma estratégia neo-canibalista inspirada livremente no Modernismo literário radical dos anos 20, nos poetas concretos dos anos 50, e no samba, na música indígena, em Jimi Hendrix e nos Beatles. A ênfase foi colocada na unificação das mais avançadas idéias musicais.

As composições eram misturas inteligentes, bem humoradas e muitas vezes paradoxicais que criavam controvérsias, avaliavam criticamente as tradições culturais, ou se concentravam nas incongruências da sociedade. Vários artistas examinaram a estrutura sócio-econômica contraditória, uma construção açoitada pela inflação onde o arcaico e o moderno coexistiam e colidiam. Em seus esforços para estimular a música popular Brasileira, os Tropicalistas usavam radicais cabelos longos e vestimentas psicodélicas e tocavam guitarras como táticas em sua guerra cultural.

Caetano Veloso e Gilberto Gil, dois músicos baianos que defendiam uma abertura criativa e uma versão critica da música popular brasileira de modo geral, impulsionaram esse breve, porém tremendo movimento de influencias. Gil é um músico com enorme percepção rítmica, temperamento artístico e entendimento emocional. Caetano, intelectual e filósofo, pessoa irracional fascinada pela razão, é considerado muitas vezes a figura central do movimento como compositor e agitador cultural. Caetano recentemente afirmou, no entanto, que foi Gil quem sempre esteve à frente de todos, que foi Gil o mais corajoso, e que Gil liderou e abriu o caminho para o que Caetano, vindo atrás, viria a organizar e moldar mais tarde. Todavia, a força do Tropicalismo é atribuída às diferenças únicas dos dois artistas.

Em 1965 Gil e Caetano estavam em São Paulo e foram expostos ao próspero mundo das artes da cidade. Foi aí que eles desenvolveram o som quente e o conceito de mistura, que antecipou os “mixologistas” de hoje. A idéia dos dois artistas era criar música na qual tudo tivesse o seu lugar: Luiz Gonzaga, os Beatles, Chuck Berry, João Gilberto e na qual a guitarra e o pandeiro fossem filhos da mesma mãe.

Juntamente com Caetano e Gil estavam os poetas e letristas Torquato Neto e José Carlos Capinam, o compositor Tom Zé, as vocalistas Gal Costa e Nara Leão, o trio de rock Os Mutantes e o compositor e arranjador Rogério Duprat. O grupo agregou um valor particular à interação entre música e texto, e extraiu uma inspiração especial dos mais radicais do Modernismo Brasileiro, Oswald de Andrade (1890-1954). Com Oswald de Andrade como guia, seu objetivo era recapturar a linha evolucionária da música brasileira.

As energias criativas do Grupo resultaram no álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circensis (Tropicália ou Pão e Circo), uma declaração pública dos motivos e uma realização dos princípios estéticos do movimento. O título, uma mistura de línguas, foi extraído do poeta Juvenal que falou com desdém para cidadãos romanos que viviam como rebanho, pedindo por nada mais que comida e entretenimento.  Várias faixas do álbum Tropicália falam de questões sociais, mas em vez de denunciar injustiças ou a condição da pobreza rural, o grupo zomba do entusiasmo pelo desenvolvimento do país e foca na alienação pessoal da sociedade brasileira.

“Parque Industrial”, de Tom Zé, satiriza o entusiasmo com o qual a industrialização e a implementação de uma economia de exportação eram vistas como soluções para os problemas brasileiros. A música também critica os estereótipos utilizados em propagandas e desafia a hipótese de pró-desenvolvimento do período. “Baby”, escrita por Caetano Veloso, desvela a importância exagerada colocada nas formulas de sucesso em relação ao Inglês, a preocupação da juventude em estar atualizada, e a criação de falsas necessidades de consumismo. Com isso, levanta questões sobre a influência de nações super poderosas em assuntos estrangeiros – havia suspeitas que a CIA estava por trás do golpe de 1964.

“Geléia Geral”, composta por Gil e Torquato Neto, sintetiza os objetivos do grupo Baiano em texto e música sobrepondo o rústico com o industrial. O tradicional gênero folclórico bumba meu boi foi usado como base rítmica, mas houve grande contraste com o instrumental do rock elétrico, enquanto as melodias líricas zombavam do patriotismo desenfreado e da pomposa estrutura da arte tradicional. Um álbum com conceito coletivo, Tropicália ou Panis et Circencis, misturou a forte controvérsia com discussões estimulantes sobre a história da música e o papel da música popular na sociedade. O LP vem mantendo a posição de ser um dos mais importantes documentos da cultura Brasileira contemporânea.

Gil e Caetano decidiram usar o terceiro festival de MPB (Outubro 1967) como fórum para lançar seu radical e novo movimento musical. Na época os festivais anuais de música pop eram um dos mais importantes desenvolvimentos no cenário musical. Os festivais eram tão importantes no Brasil quanto o futebol. Caetano cantou “Alegria, Alegria” acompanhado pelos Beat Boys, um grupo de rock da Argentina. A música era uma marcha com uma relação interessante com “A Banda” de Chico Buarque. Chico Buarque e Caetano Veloso foram grandes “rivais” na época. Pode-se, na verdade, cantar a música de uma com a melodia da outra. A audiência, intensamente nacionalista, honrava a autêntica música brasileira. Ao ouvir “Alegria, Alegria”, uma música de rock anti-nacionalista, Caetano foi vaiado. Muitos dos ouvintes não podiam se identificar com esta imagem fragmentada.

Caminhando contra o vento
Sem lenço sem documento
No sol de quase Dezembro, eu vou
O sol se reparte em crimes, espaçonaves, guerrilhas
Em dentes, pernas, bandeiras
Bombas e Brigitte Bardot (dois pedaços da música estão misturados)

Entrada de Gil, Domingo no Parque, incluindo o ritmo baiano da capoeira, instrumentos elétricos e letras cinematográficas. O arranjo da música era de Rogério Duprat, regente de orquestra com sólido histórico em música experimental, e fortemente influenciado pelos Beatles, especialmente por “A Day in The Life”, do álbum Sgt. Pepper de 1967.

No ano seguinte, no Terceiro Festival de Música em São Paulo, Gil afrontou o júri e o auditório com a clamorosa “Questão de Ordem”. A composição foi desclassificada pouco tempo antes de Caetano apresentar sua última injúria, “É Proibido Proibir”. Veloso apareceu com o grupo de roque Os Mutantes – Sergio Dias Baptista (vocal e guitarra), seu irmão Arnaldo Dias Batista (baixo, teclado e vocal) e Rita Lee (flauta e vocal) – que estavam vestidos com roupas de plástico para o evento. Veloso foi vaiado mais alto ainda do que havia sido com “Alegria, Alegria” e impossibilitado de terminar a canção. Caetano, no entanto, fez um discurso inesperado, hoje em dia conhecido, criticando a intolerância do público.

Este confronto de purismo implacável com liberdade excessiva parecia vendável, e breve interesses comerciais aproveitaram-se do não estabelecimento do movimento Tropicália para criar um modismo. Mas Caetano e Gil estavam vivendo à beira do abismo. Eles haviam irritado as autoridades com seu “caos” tropicalista. O regime militar temia que o movimento pudesse induzir a juventude brasileira em direção a uma vida de drogas e anarquia.

Em Dezembro, 1968, o regime militar decretou o (Ato Institucional No. 5 ou Al-5) e liquidou com o pouco que restava da liberdade democrática que ainda sobrevivia após o golpe de 1964. O Al-5 removeu todos os direitos humanos, tudo que a constituição havia garantido. Pessoas foram presas sem defesa legal, sem julgamento. De acordo com os princípios da revolução militar, as pessoas do Brasil não tinham direito algum. O movimento Tropicália foi dissolvido com seu único esforço coletivo de gravação, Tropicália ou Panis Circensis.

O ato institucional No 5 deixou conseqüências para vários tropicalistas. Diferente de vários de seus amigos de esquerda, eles eram mais inclinados a enfrentar a ditadura; isto fez com que o sofrimento aumentasse. Carreiras artísticas foram interrompidas pelas prisões, tortura e espancamentos. A censura à imprensa impedia que o público tomasse conhecimento da violência absurda que estava sendo direcionada contra intelectuais, jornalistas, e resistentes democráticos.  Programas de televisão eram frequentemente interrompidos com a palavra “censurado” escrita em negrito de lado a lado da tela. Os confinamentos não foram motivados apenas pela política; o regime também censurou temas ligados à sensualidade e sexualidade. Estudantes informantes –para o regime – foram infiltrados nas universidades e denunciavam professores e estudantes. A liberdade de expressão foi severamente restringida por um senso geral de inquietude e desconfiança gerada pelos informantes. As pessoas tinham medo de falar com seus próprios vizinhos.

Artistas como Chico Buarque e o cantor e compositor Geraldo Vandré, que estavam justamente iniciando suas carreiras e se sentiam nervosos com os cortes, imposições, e técnicas que eram forçados a usar devido aos informantes, saíram do país. Buarque procurou refúgio na Itália; Geraldo Vandré foi para o Chile após um perigoso escape. O critico de música Tárik de Sousa, que começou a trabalhar na imprensa em 1968, descreveu o período como um pesadelo. “Nós não podíamos mencionar nomes como Chico Buarque e nem mesmo escrever notícias que não tivessem nada a ver com música”.

Caetano e Gil foram detidos em 27 de Dezembro, 1968 em São Paulo. Os baianos foram levados para o Rio e presos. Alguns meses depois foram levados para Salvador e “convidados” a saírem do país. Os tropicalistas acharam um refugio frio em Londres, onde ficaram em exílio até 1972. Gal Costa, uma cantora cujo estilo de vida simbolizava abertura e liberdade da Tropicália, gravou suas músicas e serviu de intermediária para Caetano e Gil enquanto estavam no exílio. Como o AI-5 havia marcado a morte do movimento, a prisão de Caetano e Gil marcou a procissão de seu funeral.

A Hipótese do Conforto

Gilberto Gil não aceitou a teoria de que o Brasil sob a ditadura militar havia tido um de seus períodos mais criativos na MPB, precisamente porque existia a necessidade de driblar a censura. Gil disse recentemente que acabou de escrever melodias que não faria de outra forma. O letrista Aldir Blanc também não concorda que as sementes da criatividade foram melhores devido à censura. O poeta Waly Salomão sente que existiram poucas vezes na história do Brasil em que a juventude foi tão criativa quanto hoje. “São carneiros batendo seus chifres contra os muros da mediocridade”.

Ainda assim, Luis Carlos Maciel (jornalista, autor e diretor de teatro) sente que ter coragem era mais fácil no final dos anos 60 e que hoje o conforto controla muito da audácia artística no Brasil. Ele argumenta que os artistas querem ter uma casa, um bom carro, um computador, Internet, e que esta parafernália contemporânea os está seduzindo para uma dependência. Numa entrevista com o Jornal do Brasil, Maciel diz, “Quando as pessoas negam disposição para abandonar o conforto e ter coragem de arriscar, as coisas permanecem estáticas. Num contexto de conforto, ser corajoso é difícil. Mas arriscar foi exatamente o que os artistas fizeram no final dos anos 60. O Tropicalismo foi mais que uma revolta contra a ditadura militar”.

Maciel sente que o espaço para contracultura foi significantemente reduzido e que criar música, teatro ou filme de vanguarda é mais difícil agora, pois trabalhos de arte têm que ser feitos para agradar ao público e “se o público não aprova, o artista está acabado”.  Ele admite que as regras de marketing são mais fortes hoje do que eram nos anos 60 e que é pouco provável que haja outro movimento de arte brasileira com a magnitude da Tropicália.

É difícil avaliar o que seria da MPB sem essa interrupção abrupta. Aquele período obscuro de dois anos na história conduziu a um vasto espectro de influências. Tropicália acelerou fortemente a diversificação e experimentação textual da MPB e deu a todos aqueles que vieram depois um grande senso de liberdade. O rock dos anos 70 e 80 foram descendentes diretos da tropicália. Grupos vanguardistas como Blitz e Titãs, os mais tropicalistas em suas abordagens, foram responsáveis por abrir as portas do rock para sua geração. Existem marcas da Tropicália no Axé, na música de Carlinhos Brown e Chico Science, e no carnaval Afro-Baiano.

Seria seguro dizer que desde o Tropicalismo, nada foi o mesmo.  A ex-Mutante Rita Lee declarou em uma recente entrevista, “a Tropicália foi uma tatuagem para o resto da minha vida, o jardim de infância musical onde eu aprendi a escrever letras em português, a cantar em espanhol, a tocar em inglês, a dançar em africano, e a compor em esperanto”.  O diretor tropicalista José Celso Martinez Corrêa (Zé Celso) disse, “Estamos sentindo isso agora. Não é um vestígio. A Tropicália é um sentimento extremamente atual no Brasil, agora que o Brasil está tentando achar seu próprio caminho em meio à globalização”.  O que aconteceu aos líderes intelectuais e artistas por trás do movimento e as modificações que o movimento trouxe para a MPB e, consequentemente para a cultura brasileira, tudo isso é herança da Tropicália.

Sobreviventes e Casualidades

O pai intelectual da Tropicália, escritor, músico e artista plástico Rogério Duarte, baiano de Ubaíra, foi detido e torturado pelo regime militar. A tortura foi um duro choque para Duarte.  Após ser detido, ele foi transferido de uma cela na principal sede do regime para um cubículo no Hospital Pinel. – um hospital para loucos. Tornou-se uma pessoa introvertida e auto-destrutiva.  Seus próximos anos foram passados em reclusão no monastério Budista de Santa Teresa no interior da Bahia e hoje vive em Brasília. Recentemente, Duarte vem saindo das sombras para lançar a tradução de parte do épico Mahabharata – a concepção Hindu do céu e do inferno.

Rita Lee e Gal Costa, as duas na casa dos cinqüenta anos, continuam cantando e gravando ativamente. A segunda, musa da Tropicália, tornou-se uma das principais vocalistas femininas do país.  Arnaldo Baptista do grupo Os Mutantes, que também passou por “tratamento psicológico”, jogou-se do terceiro andar de uma enfermaria psiquiátrica em 1981. Tom Zé desapareceu da mídia, apesar do seu trabalho referencial no início dos anos 70, durante a repressão aos partidos da esquerda.

O poeta e letrista Torquato Neto, que em parceria com Gil escreveu o hino da Tropicália, “Geléia Geral”, presença constante no pop universal de vanguarda, viveu na pele os anos marcados pela tortura e perseguição política, fechou todas as janelas do seu apartamento no Rio de Janeiro em 10 de novembro de 1972 e ligou o gás. Tinha vinte e oito anos e também havia passado por um período de internação em um hospital psiquiátrico. Neto deixou pra trás um trabalho pequeno em quantidade, mas vasto em qualidade criativa. A morte de Torquato Neto causou uma onda de choque na comunidade artística.

Em 1973, Waly Salomão organizou e publicou material escrito por Torquato Neto em Os Últimos Dias de Paupéia – um jogo de palavras com Os Últimos Dias de Pompéia. Em 1982, Salomão e Ana Maria Duarte reeditaram o trabalho revisado e ampliado. A editora José Olympio está agora planejando lançar a terceira edição do trabalho de Neto, ainda sem título, que vai incluir trechos nunca publicados, uma troca de cartas entre Neto e Hélio Oiticica, e cartas que foram deixadas fora das edições anteriores. Torquato Vive!

O extraordinário lançamento de Quanta, de Gilberto Gil, é seu trabalho mais atrativo. Dedicado à memória de Chico Science, Quanta trata de um projeto elaborado com letras férteis, música inesquecível e embalagem sedutora. O prefácio do livro abre com uma carta do médico mais famoso do Brasil, César Lattes, e apresenta um glossário de palavras, expressões, celebridades, divindades e fatos históricos citados nas letras de Gil.  Essas entradas são colocadas entre palavras do universo de física quântica, a disciplina da qual Gil tirou o título do CD.  O lançamento brasileiro destaca a música “Objeto Ainda Menos Identificado” e uma aparição do convidado Rogério Duarte, co-autor da composição de 1969: “Objeto semi-Identificado”, um dos mais radicais experimentos poético-musicais.

Se o Tropicalismo foi verdadeiramente importante na história da musica e cultura brasileira, e não somente um rato que rugia, então Verdade Tropical de Caetano será um livro de conseqüência e debate provocativo sobre seu polemico conteúdo. Em seu livro, Caetano lembra, analisa, relata, traça um perfil, e reflete sobre o passado da música popular brasileira para retomar sua versão de um país que vivia sob a ditadura militar. Um dos méritos do livro é a profundidade com a qual Caetano explora por que os eventos aconteceram da maneira que aconteceram.

Além de explicar a razão da violência e tortura cometidas pelo regime militar, a corrupção e os aspectos irreverentes do perfil brasileiro, Verdade Tropical revela algumas surpresas sobre sexo, drogas e rock´n roll, e sobre os principais autores do terremoto cultural do final nos anos 60.  Ler Verdade Tropical (524 páginas, Companhia das Letras) é um exercício obrigatório para quem tem questões fundamentais sobre o que aconteceu no Brasil. O livro está programado para ser traduzido em inglês por Arto Lidsay e Robert Myers para publicação nos Estados Unidos por Alfred Knopf.

Onde quer que seja que alguém deseje colocar barreiras para o movimento, a Tropicália foi um ponto decisivo, um momento fundamental no desenvolvimento da cultura brasileira. No entanto, alguns sentem que a produção artística de hoje está presa às tendências do marketing. A música pop brasileira não teria progredido como progrediu, se não fosse pelo tropicalismo. A comoção causada pelo grupo baiano fez uma marca impossível de ser apagada no cenário artístico.  Após trinta anos, o Tropicalismo ainda germina suas sementes e permanece uma fonte de inspiração. Foi um momento de verdadeira coragem.

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