esqueceu sua senha?         cadastre-se
busca   loja          aquele abraço  
 
 

Caetano Veloso

Ana de Oliveira: Antes do lançamento de “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”, você e Gil já falavam da necessidade de um movimento de renovação da música popular brasileira.
Caetano Veloso: A gente já falava nisso em 66. Você pode ler na contracapa do disco Domingo:
“vou cantar essas canções que compus tempos atrás à vontade porque hoje estou pensando em coisas
e projetos completamente diferentes.” Gil já tinha feito até umas reuniões no Rio com os outros compositores e músicos pra tentar transmitir o novo modo de ver. Ele marcou na casa de Sérgio Ricardo, chamou Edu Lobo, Chico Buarque, o irmão de Sérgio Ricardo, várias pessoas. Gil queria que todos participassem, mas o pessoal não entendeu. A gente vinha pensando nessas questões já fazia
um bom tempo. Eu vinha conversando muito com Rogério Duarte sobre a falta de capacidade de aventura do criador de música popular no Brasil, sobre os resguardos dentro do mundo do bom gosto e do politicamente correto na época. Também sobre o preconceito contra o rock e o iê-iê-iê, que, embora
não interessassem tanto em princípio, tinham uma vitalidade que a gente foi descobrindo. Bethânia
já havia me chamado a atenção pra Roberto Carlos. Tudo isso entre 65 e 66.

Ana: Quando você ouviu pela primeira vez o termo Tropicália?
Caetano: Num almoço em São Paulo, dito por Luiz Carlos Barreto, em 1967. O disco já estava praticamente pronto, e a música já estava gravada, mas não tinha título. Luiz Carlos pediu pra cantar as músicas novas – naquela época se cantava muito com violão em reuniões assim. Quando eu cantei essa, ficou maravilhado. Achou parecida com o filme Terra em Transe e com a obra de um artista do Rio,
Hélio Oiticica, chamada “Tropicália”. Dizia que eu devia dar esse título à música. Respondi que não conhecia nem a pessoa nem a obra, e que não ia botar o título de uma coisa de outra pessoa na minha música.
A pessoa podia não gostar. Manoel Barenbein, produtor do disco, adorou e escreveu na lata: Tropicália.
Era provisório, mas ficou lá.
 
Ana: Mas você não achava bonito o nome Tropicália?
Caetano: Até que é uma palavra bonita. Mas é o nome de uma outra coisa. E depois essa coisa de tropical... Naquela época, queria evitar isso.

Ana: Parece que o termo Tropicália sempre agradou a você mais do que Tropicalismo, não é?
Caetano: É. “ismo” já dá uma idéia meio chata, mas mesmo assim me acostumei depois.

Ana: Que significado da palavra Tropicalismo você percebia e rejeitava?
Caetano: Tropicália parece uma coisa viva, que está acontecendo. Tropicalismo parece uma escola,
um movimento num sentido mais convencional. A palavra Tropicalismo apareceu na imprensa num texto
de Nelsinho Motta e noutro de Torquato Neto, parecido com o de Nelsinho. Até hoje acho simpáticos ambos os textos, mas equivocados e ingênuos, tal como achava na época. Eu não sentia tanta atração pela idéia de Tropicalismo, porque botar esse nome parecia que a gente queria fazer um negócio dos trópicos,
no Brasil e do Brasil. Não queria que fosse esse o centro da caracterização do movimento, porque ele queria ser internacionalista e anti-nacionalista.  Tendia mais pra o som universal, outro apelido que a gente ouviu e adotou também durante um período, mais pra idéia de aldeia global, de Marshall MacLuhan, muito presente na época. A gente tinha muito interesse nas conquistas espaciais, no rock’n’roll, na música elétrica e eletrônica, enfim, nas vanguardas e na indústria do entretenimento. Tudo isso era vivido como novidade internacional que a gente queria abordar assim desassombradamente. Mas hoje acho que foi o nome mais certo possível.

Ana: Num texto do livro Expresso 2222, Antonio Risério diz que a Tropicália foi básica e essencialmente coisa da cabeça de Caetano. Jamais nenhum tropicalista disse outra coisa. Você concorda, ou isso foi exagero de Risério?
Caetano: Talvez seja um pouco de exagero de Risério. Num dos prefácios da coletânea de poemas
de Torquato, organizado por Waly Salomão, Décio Pignatari escreveu que o verdadeiro intelectual
do Tropicalismo tinha sido o Torquato. Acho que talvez Risério tivesse dito isso porque não gostou de ver Décio dizer aquilo. Também não gostei. Porque não está certo, quer dizer, seria uma injustiça comigo
e com Torquato.

Ana: Então qual teria sido a nascente da Tropicália?
Caetano: Eu diria que é mais o resultado da aproximação das personalidades de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Sem ele eu não faria nem música, quanto mais essa coisa toda dentro da música. Ainda assim, uma vez que eu já estava dentro da música, sobretudo por causa de Gil, só desencadeei esse movimento tão responsável pela questão da música popular no Brasil porque o próprio Gil estava muito excitado pra que algo nesse sentido acontecesse. Dizer que a Tropicália é exclusivamente da minha cabeça peca contra essa verdade.

Ana: Eu disse a Gil: você, Gil, uma antena, e Caetano a liderança. Você concorda?
Caetano: É, talvez. Tenho uma capacidade de fazer a articulação final dos elementos. Muitos foram trazidos por mim mesmo, mas muitos não. Muita coisa eu trouxe das conversas com Bethânia, muitas
das conversas com Rogério, que só aconteceram porque eu sou quem eu sou, com os meus próprios pensamentos, o que eu observava e sentia. Mas a organização desses elementos todos num projeto
foi intuição de Gil. Gil propôs falar. Falar dos Beatles e da cultura de massa.

Ana: Além disso, Gil propôs falar das coisas de Pernambuco que ele tinha visto e com as quais tanto
se entusiasmou.
Caetano: Justamente. A arte popular pernambucana e a questão propriamente social e política do Brasil
no momento. Como ele sentiu a partir de Pernambuco. Essa mistura de vontade de atuar na história com
a audição da Banda de Pífaros de Caruaru e a consciência do que significavam os Beatles na cultura
de massas, essa conjunção incendiou a cabeça de Gil.

Ana: Como você respondeu a esse estímulo de Gil? 
Caetano: Logo que me senti engajado no que ele propunha, como já vinha pensando em muitas dessas coisas, organizei esse estímulo numa estrutura intelectual coerente. Porque Gil tem essas intuições.
Ele é muito articulado, muito brilhante, mas é mais de rompantes. De repente se fecha e pára, como
se não tivesse mais nada a ver com aquilo, para depois se entusiasmar de novo. Eu não. Criei uma linguagem coerente pra isso e, nesse sentido, exerci uma liderança mais visível por ter feito a articulação final da proposta.

Ana: Qual foi o papel de Maria Bethânia na Tropicália?
Caetano: Ela foi um estopim quando disse que assistia todo domingo ao programa de Roberto Carlos e que eu deveria fazer o mesmo. Ela me disse que a Jovem Guarda tinha muito mais vitalidade do que o nosso ambiente de pós-bossa nova, bom gosto e tudo, que era muito defensivo. Como também aqueles slogans de esquerda, aquelas músicas... Todo mundo com medo do iê-iê-iê. De repente as pessoas não estavam ouvindo o que se passava. Eu, pra ser sincero, morava no Solar da Fossa e nem suportava televisão. Mas por causa do conselho de Bethânia procurei ver, quando podia, na casa da avó de Dedé, aos domingos,
o programa de Roberto Carlos, e percebi, de fato, que Bethânia tinha razão.

Ana: De certo modo, você também já sentia essa inquietude naquele ambiente meio estagnado da música popular brasileira?
Caetano: Sentia isso quando ouvia o que os meus amigos faziam, o seu tipo de crítica às coisas, essas limitações do bom gosto e da estilização que se aprovava. Eu tinha vindo da Bahia fazia pouco tempo, e Bethânia foi fundamental porque trouxe esse primeiro estímulo.

Ana: O que vocês absorveram da relação com os eruditos, Rogério Duprat, Júlio Medaglia, Damiano Cozella e Sandino Hohagen?
Caetano: Isso veio depois. Eles apareceram quando a gente foi pra São Paulo, com repertório e idéias desenvolvidas. Eu já estava ensaiando “Alegria, alegria” com os Beat Boys quando encontramos Julio Medaglia, que me levou a Augusto de Campos. O que Augusto e o seu grupo queriam fazer com poesia estava próximo do trabalho de vanguarda desses músicos. Mas naquele momento eles estavam interessados em ser o mais anti-eruditos nas atitudes e nas conversas, sobretudo Rogério Duprat,
que colaborou mais significativamente com os tropicalistas. Embora não fosse nada desprezível o trabalho de todos. Eles vinham de um grupo erudito muito bem formado, que queria justamente quebrar com
a criação de uma obra séria. Eles eram pós-John Cage. Sobretudo Rogério, que já queria fazer música pop como músico erudito de vanguarda. Embora trouxesse a técnica toda de quem era maestro. Também
era o caso de Julio Medaglia, que era mais regente, enquanto Rogério era um compositor mais importante. Ele se postava de maneira muito descontraída do ponto de vista cultural. Por isso, não houve uma doutrinação estética na nossa relação.

Ana: O que rendeu à tropicália a aproximação com os concretos, Décio Pignatari e os irmãos Augusto
e Haroldo de Campos?
Caetano: A experiência de acompanhar os embates que eles tiveram que travar, depois que nos conheceram, em defesa crítica do Tropicalismo. Isso trouxe novos atritos entre o grupo deles e o resto da intelectualidade brasileira, e também no próprio meio da criação de música popular. Augusto foi o primeiro defensor crítico do Tropicalismo. Antes que o movimento começasse, e antes que nos conhecêssemos, ele já tinha escrito um artigo profético sobre o que faríamos. As suas traduções dos poemas de e. e. cummings e dos textos de James Joyce, o livro sobre Sousândrade, o ABC da Literatura, de Ezra Pound, tudo isso foi importante. Mas o essencial foi o contato com Oswald de Andrade que aconteceu através deles. O meu disco já estava pronto, o repertório do de Gil também, mas à luz do pensamento, da poesia e da ficção de Oswald tudo o que a gente estava fazendo ganhava um sentido mais preciso, e eu me sentia reconfirmado nas minhas intuições. O Oswald foi um presente de uma precisão absoluta que Augusto nos deu.

Ana: Qual foi a importância de Rogério Duarte?
Caetano: Ele foi anterior às nossas experimentações tropicalistas. Ele nos influenciou, a mim sobretudo, pra que tudo se tornasse possível. Não foi como Augusto, Rogério Duprat ou Julio Medaglia, que já viram a coisa pronta. Eu não chegaria aonde cheguei se não tivesse tido as conversas todas que tive com Rogério.

Ana: E Guilherme Araújo?
Caetano: Foi igualmente importante.

Ana: Tanto quanto Rogério Duarte?
Caetano: É. Porque também foi anterior e também influiu muito nas decisões. Mas pelo lado oposto
ao de Rogério. O próprio Rogério dizia: “Eu nunca posso me entender com o Guilherme porque ele
é o empresário e eu sou o desempresário.”

Ana: Como surgiu a idéia de fazer o disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis?
Caetano: Acho que a idéia partiu de mim. Quem tocou mais esse disco fui eu.

Ana: É o disco tropicalista de que você mais gosta, não é?
Caetano: É. Assim que ficou pronto, Gil não gostou, mas eu adoro.

Ana: O que você recorda do agressivo debate com os estudantes da Faculdade de Arquitetura da USP (FAU), em 68?
Caetano: Os estudantes organizaram um debate sobre Tropicalismo e convidaram Torquato, Gil, Décio, Augusto e a mim. Na porta, os garotos entregavam um panfleto contra o Tropicalismo, um texto de Augusto Boal escrito talvez pra Feira de Opinião, e entregaram até pra gente. Lá dentro, em vez de deixar a gente falar e fazer o debate como tinham proposto, jogavam banana e bombinhas de São João na nossa cara. Foi duro. Mesmo assim discutimos, tentamos superar a agressão. Algumas pessoas na platéia contiveram os mais exaltados. Mas todo mundo era unanimemente contra nós. Todas as perguntas tentavam nos botar na parede. Mas respondemos muito bem porque, modéstia à parte, tratava-se de uma mesa de pessoas muito inteligentes.

Ana: Houve posteriormente algum encontro/confronto entre os tropicalistas e os seus opositores daquele episódio?
Caetano: Nunca ouvi um depoimento que dissesse: “Eu estava ali! Vaiei e depois reconheci isso ou aquilo”. As pessoas que foram covardes naquele momento continuaram covardes pro resto da vida.

Ana: E o Festival Internacional da Canção, em 1968, no qual você e os Mutantes defenderam “É Proibido Proibir”?
Caetano: Eu não queria botar música ali. Não gostava desse festival da TV Globo, no Rio. Achava mais legal o da Record. Sem sombra de dúvida, achava o ambiente de São Paulo muito melhor do que o do Rio.

Ana: O que lhe parecia tão terrível nos festivais do Rio?
Caetano: A total incapacidade de admitir que alguma coisa nova ou diferente pudesse acontecer, característica muito violenta do Rio. Naquela época, isso era asfixiante. Em São Paulo havia uma certa sensação de território virgem, uma capacidade de surpresa e confiança, uma pureza de olhar de que
o Rio era incapaz. No Rio havia o tom que há nas cortes, nas capitais de países onde o mundo cultural
ficou centralizado.

Ana: Certa indisposição ou má vontade...
Caetano: É. Um tom blasé. E São Paulo oferecia aquela energia sem muita sutileza na percepção.
A reação, por exemplo, dos meninos da FAU, é negativa. Mas muito ingênua, muito pura. O Festival da TV Globo, no Maracanãzinho, era uma confusão porque se chamava internacional, mas era no Brasil.
As platéias do Maracanã, além de muito grandes pra se definirem, eram também cariocas no sentido
de que não estavam acompanhando com atenção a nitidez de determinadas posições.  Vaiavam umas coisas, aplaudiam outras, uma coisa disforme. Por isso eu não queria participar.  Mas os organizadores convenceram Guilherme a tentar nos convencer. Então pensei em pegar uma música e fazer um happening pra arrebentar.  

Ana: Você não gostava da música “É proibido proibir”?
Caetano: Não! Achava “É proibido proibir” uma música boba. Não queria usar esse refrão porque era o que os estudantes de Paris tinham escrito na parede em maio de 68. Apareceu na revista Fatos & Fotos, Guilherme achou bonito. Também achei, mas daquele tipo de bonito meio fácil, meio enjoativo.

Ana: Um bonito surrealista de uma frase que é um paradoxo, não é?
Caetano: É. Tem certa graça, mas não se pode extrair muita coisa dali. Há uma alegria de brincar de dizer que é “proibido proibir” porque uma coisa nega a outra e o paradoxo nunca pára de girar. Só que não é o meu jeito de fazer as coisas. Transformando a música num happening, salvava a situação. Fiz isso de uma maneira bem escandalosa, e aí veio uma vaia brutal, que aproveitei pra dizer tudo o que eu pensava sobre a atitude daquela juventude de esquerda. Fiz um discurso inflamado na segunda apresentação da música. Eles vaiavam e jogavam coisas pra cima da gente.

Ana: Em poucas palavras, como você definiria a Tropicália?
Caetano: A Tropicália foi simplesmente um esforço no sentido de defender o que era essencial na Bossa Nova.

 
  voltar      topo      home produção acadêmica      bibliografia      filmografia      ficha técnica      fale com a gente      cadastre-se  
  Parceria:
Realização:   Patrocínio: