Ana de Oliveira: Como você e os seus parceiros, músicos ligados à vanguarda européia, começaram
a se interessar pela música popular brasileira?
Júlio Medaglia: Nós tivemos a cabeça feita por Hans Joachim Koellreutter, que fez com que a nossa geração tivesse uma relação cultural mais ampla. É claro que a música popular nos interessava, assim como o teatro, o cinema expressionista, tudo o que havia na época e fora dela, inclusive música anterior
a Bach. Mas, a partir de João Gilberto, sentimos que a música popular ganhou mais presença
no pensamento brasileiro. Ainda mais naqueles anos 60.
Ana: Como se deu a sua aproximação com o grupo baiano?
Medaglia: Fiz a música da peça Isso Devia Ser Proibido, de Bráulio Pedroso, com Walmor Chagas e Cacilda Becker. Foi a única vez na sua carreira que Cacilda cantou. A peça era uma espécie de cabaré brechtiano, entre outras coisas uma crônica da ligação de Cacilda com o teatro brasileiro. Caetano foi assistir e no dia seguinte bateu no meu apartamento da Lapa com uma fitinha, querendo que eu fizesse o arranjo de uma música. Era “Tropicália”, mas o nome ainda não estava certo. Então conheci Gil e Manuel Barembein,
o produtor do disco. Ficávamos em casa conversando sobre as coisas da época. Logo em seguida
à gravação, explodiu o Tropicalismo.
Ana: Foi você que apresentou Caetano e Gil aos poetas concretos?
Medaglia: Sim. Eu já tinha trabalhado com os concretos, Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari,
e com o diretor do Teatro Oficina, Zé Celso Martinez Corrêa. Aproximei o pessoal de música popular
do pessoal da chamada cultura superior.
Ana: Além do arranjo de “Tropicália”, você realizou outros trabalhos dentro dos moldes tropicalistas?
Medaglia: A experiência do Tropicalismo já tinha se dado anos atrás na música erudita. Quando fiz
a música da peça Galileu Galilei, de Brecht, dirigida por Zé Celso, coloquei sambinhas e marchas-rancho
no meio.
Ana: Dê-nos uma visão panorâmica da cultura musical do pós-guerra.
Medaglia: Nos anos 60, os festivais europeus eram um ímã da cultura de vanguarda. A Alemanha colocou todas as suas rádios e orquestras pra fazer música contemporânea. John Cage, o líder da vanguarda
norte-americana, foi um dos mais corajosos revolucionários dessa época. Depois da Segunda Guerra,
o dodecafonismo e a música serial voltaram à cena. Schönberg chegou a ter uns poucos dias de glória.
No fim dos anos 50, a música seguia um construtivismo milimétrico, que correspondia, por exemplo,
à sofisticação do cool jazz e à música de câmara popular de João Gilberto. Aí se tentava eliminar o acaso
e trabalhar com o mínimo de elementos. Era o que o concretismo fazia na poesia e na pintura: despojamento total, sem nenhuma redundância. Chegou um ponto em que esse construtivismo passou
a influenciar a cultura como um todo. Nos anos 60, os próprios líderes construtivistas quiseram explodir
os seus princípios para fundar novas experiências. A explosão da música trouxe uma quantidade de novos elementos, inclusive com o uso dos meios de comunicação de massa.
Ana: Então Caetano e Gil corresponderam à tendência da época de misturar componentes, questionar códigos, explodir sistemas?
Medaglia: Na música popular brasileira, eles corresponderam à música de happening dos Estados Unidos
e da Europa.
Ana: Como foi a explosão do rock?
Medaglia: O rock começou como música quadradinha de dois minutos e meio com acordes perfeitinhos pra dançar, mas logo explodiu pra ser uma proposta muito mais ampla. A pintura invadiu a música com cores psicodélicas e capas de discos deslumbrantes. No Brasil, o Tropicalismo foi essa abertura, com a música
se libertando de todos os vínculos pra abarcar muitos componentes culturais, não só musicais.
Ana: Como se dava a criação no meio tropicalista?
Medaglia: Confunde-se loucura com criação musical. Esta é matemática. Faz-se um arranjo com pinça
e lupa, num frio debate de engenheiros. O resultado é que parece porra-louca.
Ana: Mas houve algo muito interessante que aconteceu ao acaso: o discurso de Dirceu na introdução
da música “Tropicália”.
Medaglia: O baterista Dirceu, testando o seu microfone, começou a fazer de brincadeira um discurso sobre o Brasil, que poderia ter sido um gesto tropicalista de Caetano, por exemplo. Quando notei aquilo, disse
a Gaos, o técnico, que estimulasse Dirceu a falar mais. Então ele soltou os cachorros: “Quando Pero Vaz
de Caminha viu que as terras brasileiras…” Logo em seguida acionei a orquestra e os efeitos. Foi um acidente sintonizado com a época. Muita gente boa não entendeu a abrangência do Tropicalismo. Sobre
o discurso de Dirceu, até o mestre Guilherme Araújo disse: “Tem que acabar com essas gracinhas aí!”
Mas Guilherme sabia conduzir os artistas.
Ana: Qual era a sua visão do rock que os Mutantes faziam?
Medaglia: Eles não faziam rock, e sim uma paródia do rock. Os Mutantes são grandes criadores, com eles o rock acontece de uma forma agressiva. Num texto que escrevi para a revista Veja em 69, sobre
o terceiro disco dos Mutantes, eu goleava os Beatles: “Vocês ainda vêm encher o saco com esses violininhos…” Felizmente, depois veio o Sargent Pepper’s.
Ana: O Brasil dos anos 60 era conservador demais pra entender a Tropicália?
Medaglia: Qualquer país é conservador. Não sei de nenhum revolucionário que tenha encontrado
o caminho aberto. Igor Stravinsky, que viveu em Paris, capital cultural do início do século XX, fez
a “Sagração da Primavera”, tão importante quanto a Divina Comédia, de Dante. Na prémiere, atiravam cadeiras no palco. Os próprios músicos faziam gracinhas na orquestra, e tiveram que fugir pelos fundos
do teatro. Beethoven, Satie, João Gilberto, os inovadores nunca são bem recebidos.
Ana: Como você vê as seqüências e as conseqüências do Tropicalismo na cultura brasileira atual?
Medaglia: Hoje em dia os esforços culturais são todos individuais. Naquela época, idéias convergentes acabavam formando um movimento. Os próprios tropicalistas viraram pop stars de primeira qualidade
em relação ao pop mundial. Eles eram a área da inteligência da música popular brasileira, enquanto
Tom Jobim, por exemplo, era a área da sensibilidade. Ele fazia uma canção que repetia trinta vezes
a mesma nota e o mundo caía de joelhos. Um talento assim, só Mozart ou Satie. Mas os tropicalistas,
e mais Chico Buarque e Capinan, eram a provocação, que fez com que a música colaborasse inclusive para a reabertura do processo político brasileiro. Quando Caetano saiu da prisão, me contou que um general lhe disse que, demolindo os conceitos culturais, políticos e sociais daquela maneira, eles estavam usando
a forma mais moderna de subversão. Até os militares sabiam que aquela revolução não estava em cada setor, e sim no comportamento em geral. Mas, com o tempo, cada um foi pro seu lado, como se nada tivesse acontecido.
Ana: Então você acha que os tropicalistas de ontem estão desatentos hoje?
Medaglia: Hoje, quando o lixo tomou conta da mídia, os provocadores daquela época assistem a tudo
e ainda vão entregar troféus pro pessoal da indústria cultural mais cafajeste do mundo. Chitãozinho
e Chororó são grandes cantores, mas a sua música é digna de bordéis de quinta. E todos esses pagodes não valem uma pausa de um samba de Cartola, Nelson Cavaquinho ou Nelson Sargento. Fomos habituados a uma época em que o melhor da música popular brasileira circulava nos meios de comunicação. Hoje,
o que se faz de bom acontece em palcos subterrâneos, enquanto a indústria cultural massacra
a sensibilidade brasileira com o pior lixo sonoro, que vem bem embalado pelo profissionalismo. Eu não assisto a isso de camarote. Fui pro Amazonas fazer a melhor orquestra sinfônica do país, com músicos
do mundo todo. Tento fazer o melhor com artigos e entrevistas, mas não tenho a força que esse pessoal tem, não é?
Ana: E Tom Zé? Você não acha que Tom Zé continua provocativo?
Medaglia: Esse sim. Esse continua me surpreendendo. Caetano e Gil fazem coisas bonitas sim, mas quando vejo Tom Zé na TV levo um susto.
Ana: O que lhe parece ter sido o substrato estético-crítico-revolucionário da Tropicália?
Medaglia: O Tropicalismo colocou o erudito em convívio com o popular, o supervalor ao lado do desvalor, porque mil valores caracterizam a personalidade brasileira. Trouxe pro presente coisas consideradas do passado, como Cartola ou Elizete Cardoso. Desmistificou conceitos de qualidade, mostrando que não só João Gilberto como também Vicente Celestino são Brasil. Nós os eruditos não fomos pra música popular brasileira fazer média, e sim pra nos auto-alimentarmos dela. Depois da Tropicália, a música tinha que ser uma coisa gigantesca, porque nela cabia tudo, tanto a Filarmônica de Berlim quanto um analfabeto tocando berimbau, tanto Miles Davis quanto Vicente Celestino.
Ana: Que análise você faz sobre a evolução da música popular brasileira?
Medaglia: Em todas as décadas ímpares, e quando está fraca de idéias, a música brasileira vira bolero. Anos 30: boleros, mas bons, com Orlando Silva, etc. Anos 50: Cauby Peixoto, Ângela Maria, Maysa, Dalva de Oliveira. Anos 70: Caetano voltou e toda uma geração foi lhe pedir desculpas por tê-lo exilado. Ele deu uma de Carmen Miranda, rebolou e deu a volta por cima. Mas, fora isso, boleros: Ângela Rô Rô, Simone, Marina… Nos anos 80, demos uma subida: Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Premeditando o Breque.
E os anos 90 são os boleros das duplas caipiras. Eu me envergonho da música do Brasil, o país mais rico do mundo em matéria-prima musical. Já nos anos 70 não havia vestígio do Tropicalismo. Se levassem adiante as idéias tropicalistas, teriam que trabalhar muito. Agora que há liberdade, onde é que está
a produção cultural? O músico brasileiro precisa acabar com a preguiça e ter uma consciência cultural mais responsável. A música brasileira não é mais caixinha de fósforos do botequim, como no tempo de Noel Rosa. É por isso que os americanos, com a sua música boa e ruim, mandam no mundo. Madonna deve trabalhar feito uma condenada.
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