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Sérgio Dias

Ana de Oliveira: O movimento tropicalista não se restringia só à questão musical. Apresentava-se, sobretudo, como uma atitude crítica. Como você define a Tropicália?
Sérgio Dias: Foi a versão brasileira do que estava acontecendo no mundo em torno de 68.

Ana: O Tropicália ou Panis et Circensis, o disco-manifesto, foi o nosso Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club Band?
Sérgio: Eu não iria tão longe. Com certeza teve um conteúdo político, mas não foi, como o Sargent Pepper’s, um marco musical.

Ana: Fale sobre as suas recordações do Festival Internacional da Canção (FIC), quando Caetano defendeu “É proibido proibir” e os Mutantes o acompanharam, dando as costas à platéia.
Sérgio: Não houve medo, mas surpresa de ver tamanha manifestação de raiva e loucura das pessoas.
E era um barato poder desafiá-las lá de cima, porque não havia nada que pudessem fazer. Demos-lhes
as costas porque as pessoas jogavam ovos e pedaços de cadeira. Foi coisa de momento que acabou virando atitude política.

Ana: Mas vocês tinham uma atitude de provocar mesmo a platéia…
Sérgio: Não só a platéia, mas qualquer coisa que fosse careta. Tudo o que fosse establishment. A nossa guerrilha era dar risada.

Ana: Qual foi a principal contribuição de Caetano e Gil e de Rogério Duprat pra formação dos Mutantes?
Sérgio: Na formação, nenhuma. Foi complexo. Antes dos baianos, os Mutantes já estavam à toda.
E os baianos também. A química da nossa união é que contribuiu no nosso processo criativo. Gil trouxe harmonia, Caetano letra e a gente guitarra. Hoje Gil toca guitarra…

Ana: Como vocês se encontraram?
Sérgio: Como se fosse uma guerra. Vamos formar um pelotão: eu venho de São Paulo e o outro vem
da Bahia. Mas é o que se vive dentro do pelotão que muda as pessoas e a batalha. Se a gente não se modificasse mutuamente, eles seriam mais dois baianos tocando música baiana, e a gente mais um grupo paulista tocando música paulista.

Ana: Gil ressalta o espírito de liberdade e o frescor adolescente dos Mutantes.
Sérgio: Gil era bem diferente do que é hoje. Agora é mais zen, antes era mais gordinho… Era o que tinha o gabarito musical mais alto deles todos. E a gente vinha com um gabarito muito alto de clássico, rock e jazz, que ele não tinha. Isso deu nesse remelexo.

Ana: O clima era naturalmente descontraído durante as gravações e reuniões de vocês, não era?
Sérgio: Uma curtição. Já trabalhei com os melhores músicos do mundo, em diversas turnês, mas nunca me diverti tanto quanto naquela época.

Ana: Gil cita especialmente você: “Serginho, o guitarrista dos Mutantes, tocava Beethoven e Jovem Guarda sem nenhum problema…”
Sérgio: Isso eu devo aos meus pais. Minha mãe era uma grande concertista. Pra estudar, eu tirava trechos difíceis da Aída, além de Bach e Mozart.

Ana: O fato de você crescer ouvindo sua mãe tocar repertório clássico ao piano influiu nas relações de você e seu irmão com os maestros tropicalistas?
Sérgio: Acho que sim. Não que a gente soubesse escrever pra orquestra, mas lidar com música clássica era uma coisa corriqueira, sem pudores nem limites.  O começo de “D. Quixote”, se não me engano,
é Aída, em tom menor, misturada com Ben-Hur.

Ana: Que importância você atribui à cultura das drogas psicodélicas no processo de criação dos Mutantes, tanto na fase tropicalista quanto na pós-tropicalista?
Sérgio: No processo de criação, nenhuma. As drogas talvez afinassem as psiques entre as pessoas,
mas não mudaram tanto assim a nossa música. Ouvir um disco dos Beatles talvez mudasse mais. O LSD, como todas as drogas místicas, ajudam no desenvolvimento interno, mas talvez tenham trazido um pouco de seriedade demais.

Ana: Que comparação você faz entre os Mutantes tropicalistas e os pós-tropicalistas?
Sérgio: Depois que Caetano e Gil foram exilados, ficamos sem pai nem mãe. Provavelmente decaímos
em termos musicais. Mas não é questão de antes e depois da Tropicália, e sim antes e depois do LSD.
Com as drogas e o flower power, vieram à tona os problemas pessoais, e não tanto a música. A separação de Arnaldo e Rita… Essas coisas é que magoaram a estrutura da banda.

Ana: Como ficou a banda depois da saída de Rita Lee?
Sérgio: Muito mais instrumental. Entramos mais fundo na música. Fizemos discos maravilhosos nessa fase, que recebeu o rótulo pejorativo de “progressiva”. Na verdade, tratava-se muito mais de uma cultura do LSD, que o mundo inteiro praticava, inclusive os Beatles. Discos como Tudo Foi Feito pelo Sol e O A e o Z, sem tantas risadinhas e galhofas, tinham mais profundidade musical. Também os Beatles foram ficando mais sérios.

Ana: No livro Verdade Tropical, Caetano diz que os Mutantes pós-Rita Lee e já com Liminha elevaram
a ambição e o nível técnico do rock brasileiro e mesmo latino-americano.
Sérgio: Pois é. Não acho concreto julgar os Mutantes ou a Tropicália só pela irreverência. Lembro que tocamos uma Fuga de Bach à capela no programa do Ronnie Von, antes de tudo acontecer. Tocando
em “Domingo no parque”, faço citações clássicas… E eu tinha quinze anos. Em termos técnicos
e tecnológicos, sempre estivemos na frente.

Ana: Como você encara a descoberta dos Mutantes pelos americanos de uns anos pra cá, e o fato de muitos deles colocarem vocês na história da vanguarda do rock internacional?
Sérgio: É como você ter tido um filho há trinta anos e de repente ver que ele hoje está se dando bem pelo mundo. Recebo e-mails de garotos de dezessete anos, que me descobrem não sei como lá nos Estados Unidos, dizendo que a nossa música é um barato. Pra mim isso vale mais do que Beck ou Sean Lennon.
É mais legal ver a música sobreviver no coração de quem não tem nenhum interesse político, monetário
ou histórico.

Ana: Você curtia a Jovem Guarda?
Sérgio: Lógico. E nem curtia tanto a música quanto o pessoal que tocava. O programa do Ronnie Von era mais a nossa cabeça, porque era sofisticado sem ser elitista. Erasmo e Roberto Carlos sempre foram muito bons. E abertos. Não como a turminha da MPB, que fazia abaixo-assinados enquanto você estava tocando pra te tirar do festival.

Ana: Que figuras da época você se lembra de terem sido mais contundentes contra a Tropicália?
Sérgio: Geraldo Vandré pelo menos nos xingava na cara. Havia piores, que de perto sorriam e pelas costas te detonavam. Sempre admirei profundamente Edu Lobo. Quando ele tocou “Ponteio”, fiquei louco, fui ao camarim e pedi que me ensinasse a tocar aquilo. Fomos tocar em Portugal, tocávamos no mesmo teatro… E ele dava entrevistas malhando a gente. Com certeza isso não seria assim hoje, mas na época
foi meio deselegante. 

Ana: Que fatos marcaram você no período tropicalista?
Sérgio: A alegria era constante. Em comparação com a Tropicália, hoje quase nunca acontece de você virar o Capitão Marvel por causa de alguma coisa. Não é saudosismo, não. É que havia uma constante busca de informações das pessoas em relação a você e vice-versa, até mesmo na rua. Era tudo muito
mais simples e honesto. Hoje você tem que passar por trinta antes de falar com um. Uma das coisas
que mais me lembro é o olhar de revolução das pessoas, de Caetano, Gil, Rita. Há quanto tempo não pinta um Einstein na parada? A gente ainda está se acomodando depois do terremoto dos anos 60. A gente destruiu a família, mas não botou nada no lugar. A humanidade não está pronta pra viver a grande família. Tudo foi um ensaio. Mas foi bonito de ver.

 
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