Ana de Oliveira: Duprat, o que levou um músico de formação erudita como você, ligado à vanguarda européia, se interessar pela música popular brasileira?
Rogério Duprat: Na verdade, não foi tão assim de supetão. Eu tinha feito parte de um grupo de arranjadores que acompanhou a Bossa Nova. Cheguei a gravar muito em São Paulo, já como arranjador, entre 61 e 63. Num certo momento, resolvi aceitar um convite de Cláudio Santoro pra lecionar música em Brasília. Mas os milicos acharam que eu, meu irmão Régis, Damiano Cozzela, Moacir del Picchia, o próprio Santoro, estávamos fazendo subversão. De fato, tínhamos um jeito excêntrico de lecionar, sem esse negócio de professor e aluno. No fim de 65, começaram a prender gente. Então, nós e mais duzentos professores pedimos demissão. Voltei pra São Paulo, recomecei a compor jingles e a tocar violoncelo
no Teatro Municipal. Em 67, Júlio Medaglia me aproximou de Caetano e Gil. Foi Júlio também que me apresentou aos poetas concretos.
Ana: De cara, o que chamou a sua atenção na música e na atitude de Caetano e Gil?
Duprat: O desejo de abandonar a caipirice da musiquinha de esquina e de absorver a cultura universal,
a música eletrônica, os Beatles, integrando novos instrumentos na música popular brasileira. Tivemos então que enfrentar os defensores da tradição, alguns até bem intencionados, mas que preferiam confinar o povo ao morro. Além disso, eu, Júlio, Damiano e Gilberto Nunes éramos muito ligados aos poetas concretos paulistas. Caetano e Gil já nos conheciam de trilhas de filmes que tínhamos feito. Seria interessante um dia estudar melhor o que nos uniu tanto.
Ana: A idéia de convidar os Mutantes para gravar “Domingo no parque” foi sua ou de Gil?
Duprat: Foi minha. Quando voltamos de Brasília, procuramos Solano Ribeiro, produtor dos festivais da Record. Queríamos achar entre os participantes do programa da Jovem Guarda e do Fino da Bossa grupos mais modernos, tipo Beatles. Foi Alberto Lima Júnior que nos apontou os Mutantes. Eles eram o rock mais avançado da época. Levei-os a Gil e disse: esses caras vão mudar teu som.
Ana: Fale do incidente com Geraldo Vandré. Depois da gravação de “Baby”, você, Gal e Caetano saíram entusiasmados e foram pra um bar. Vandré apareceu, pediu que Gal cantarolasse um trechinho e acabou espinafrando a canção.
Duprat: Vandré era um ídolo de uma facção da esquerda paulista. Aliás, ele não era nem paulista nem músico, só um letrista que encobria os próprios parceiros. Um retrógrado. Foi ser comuna quando eu já tinha deixado de ser há muito tempo. Era uma bobagem a reação da MPB contra nós.
Ana: Em razão de um conservadorismo exacerbado?
Duprat: Exatamente. Pretendiam ser uma esquerda radical, mas não eram radicais coisa nenhuma, porque na verdade defendiam valores ultrapassados.
Ana: A sua participação tropicalista lhe rendeu inimigos ou retaliações na área musical?
Duprat: Até que nem tanto, porque com o tempo… Nem considero maus caracteres esses caras que mudaram depois. Chico Buarque, por exemplo, que nos primeiros tempos da Tropicália era de certo modo retrógrado, acabou fazendo coisas radicais. Fiz com entusiasmo o arranjo de “Construção”, quando os baianos estavam no exílio.
Ana: Você e os Mutantes foram a Cannes participar do MIDEM, não foram?
Duprat: Pois é, a Europa sempre enfeitando as coisas… E, quando voltamos, no começo de 69, todos, inclusive Gal Costa e Nara Leão, tínhamos perdido o emprego, porque as gravadoras multinacionais não queriam se comprometer com a situação política do país. Tive que radicalizar a minha produção de jingles, e os outros aos poucos foram sobrevivendo de shows.
Ana: O que lhe encantou nos Mutantes?
Duprat: O jeito mais moderno e internacional de cantar, compor e tocar. Eles eram a vanguarda do rock.
O resto era o programa do Roberto Carlos. Nada contra ele, mas aquilo era uma vertente simplificada do rock internacional.
Ana: E como era o clima das gravações e das reuniões de vocês?
Duprat: Os Mutantes tinham um humor genial. E havia Lenny, um cara completamente pirado, que tocava uma guitarra espetacular. Chegou a gravar com Gal. Ainda em 68, fiz um disco chamado, à minha revelia, de A Banda Tropicalista. Usei os Mutantes em três ou quatro faixas cantando em inglês, inclusive a “Canção pra Inglês Ver”, de Lamartine Babo, toda num inglês macarrônico. E também “Lady Madonna”, dos Beatles.
Ana: Que considerações você faz sobre a música brasileira na época em que irrompeu o movimento tropicalista?
Duprat: Naquela época, o mundo já estava rodando. Desde Elvis Presley, já vinha nascendo uma civilização forte. Vieram os Beatles, os Rolling Stones, e o Brasil continuava tocando o seu pandeirinho. Nada contra, mas para se impor com algo mais moderno o Brasil tinha que mudar de instrumental
e de composição. A despeito dos nacionalistas, isso representava uma internacionalização. E Roberto Carlos e Wanderléa já estavam fazendo sucesso. Trabalhei com eles antes de Caetano e Gil, como
maestro de gravata borboleta no programa Roberto Carlos à Noite, da TV Record. Lá também conheci Jorge Ben. Era inevitável que aqui se fizesse algo no nível do que acontecia no mundo. A Tropicália
foi o único movimento que fez algo difícil de fazer no mundo, e com originalidade. Não conheço nada
do repertório do rock internacional do tempo que se compare em termos de texto e música à canção “Tropicália” de Caetano, com arranjo de Júlio Medaglia.
Ana: Tem sido freqüente a publicação de matérias jornalísticas estrangeiras sobre a Tropicália. Como você vê esse interesse internacional que chega com mais trinta anos de atraso?
Duprat: Não estou tão a par assim. São arroubos editoriais que a gente tem que ler com cuidado, porque
a mídia é efêmera por natureza.
Ana: Como foi o ensaio daquele show na Gafieira Som de Cristal, quando vocês tiveram a notícia da morte de Vicente Celestino?
Duprat: Esse show fazia parte da intenção tropicalista de retomar coisas antigas da música popular brasileira. Vicente Celestino era o homem da tragédia. Foi isso que o atraiu ao evento na Som de Cristal, um ambiente dancing cafona, com dançarinas profissionais. A cada dança, os cavalheiros tinham os seus cartões perfurados, pra pagar na saída. O cafonismo era outra forma de manifestação tropicalista. Com todas as Ângelas Marias da vida, o cafonismo enraizou-se nos corações brasileiros. Contratamos a Som
de Cristal para o show, e lá estavam as dançarinas também, a postos pra trabalhar normalmente. Vicente Celestino chegou a mim e disse: “Maestro, estão todos loucos aqui!” Ficou tão chocado que de noite não voltou. Morreu na hora do jantar.
Ana: O que você tem a dizer sobre a herança da Tropicália no panorama atual da música popular brasileira?
Duprat: É uma pergunta difícil, porque à primeira vista a Tropicália não teve herdeiros. Há pagodeiros,
não é? Não os agüento mais, especialmente se mostram a bunda na TV. Se não é isso, são roquinhos
pra todo lado.
Ana: E os artistas mais jovens da chamada MPB?
Duprat: Esse pessoal é um pouco mais digno. Zeca Baleiro, Chico César… Infelizmente, os Mamonas Assassinas morreram…
Ana: Você acha que os Mamonas Assassinas tinham a ver com a Tropicália?
Duprat: Talvez não tivessem consciência disso. O seu deboche era super-engraçado…
Ana: E Carlinhos Brown?
Duprat: Ele pensa que é o maior gênio das últimas décadas na música planetária, não é? Um saco. Justamente o que eu não agüento dentro da música de Caetano e Gil são essas Timbaladas o tempo todo.
Ana: Mas foi você que colocou berimbau em “Domingo no parque”!
Duprat: É outro som, não é? Talvez eu esteja completamente por fora, mas não vejo herdeiros da Tropicália.
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